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8 de dezembro de 2021

Opinião – “O Poder do Cão” de Jane Campion

Sinopse

Severo, de olhos claros, bonito, Phil Burbank é brutalmente sedutor. Todo o romance, poder e fragilidade de Phil estão presos no passado e na terra: ele pode castrar um bezerro com dois golpes rápidos da sua faca; ele nada nu no rio, encharcando seu corpo com lama. Ele é um cowboy tão cru quanto as peles obtidas nas suas caçadas. Corre o ano de 1925. Os irmãos Burbank são fazendeiros ricos em Montana. No restaurante Red Mill, a caminho do mercado, os irmãos encontram Rose, a proprietária viúva e seu filho gentil, Peter.

Phil se comporta tão cruelmente que leva os dois às lágrimas, deleitando-se com sua dor e levando seus companheiros vaqueiros ao deleite dos brutos – todos exceto seu irmão George, que conforta Rose e depois volta para lhe propor casamento. Enquanto Phil oscila entre a fúria e a astúcia, sua provocação a Rose assume uma forma estranha – ele paira no limite de sua visão, assobiando uma música que ela não consegue tocar no piano que George lhe ofereceu. Humilha o filho dela de forma aberta, amplificada pelos aplausos dos vaqueiros ao serviço de Phil. Posteriormente, Phil assume voluntariamente a educação do menino sob sua responsabilidade. Este último gesto é a suavização de uma relação que deixa Phil exposto ou uma trama que se transforma em ameaça?

Opinião por Artur Neves

Jane Campion tornou-se notada quando em 1993 foi vencedora do Óscar da Academia Americana com o filme “O Piano” em que uma pianista muda, a sua filha e um piano de marca, são enviadas para Nova Zelândia, para ela casar com um fazendeiro abastado. Os problemas começam quando um trabalhador local se apaixona por ela. A pianista muda era Holly Hunter que tem aqui a sua ascensão ao estrelato através da direção de Jane Campion que faz dela um personagem ainda hoje inesquecível quando é nomeada pelas suas novas realizações, como neste filme em que o pormenor, a descrição lenta e porfiada da caraterização dos personagens os tornam reais, próximos de nós e convincentes nas atitudes que os vemos tomar na interpretação da história que os suporta.

A sinopse é suficientemente descritiva sobre o enredo da história pelo que vou voltar-me para o desenvolvimento dos personagens que é o que Jane Campion faz melhor, ao seu ritmo lento, pormenorizado, detalhando as diferenças significativas de uma história passada em Montana em 1925, em plena conquista do oeste americano, mostrando-nos que nem só de tiros, índios e cowboys se faz um western. O argumento foi baseado no romance com o mesmo nome, escrito em 1967 por Thomas Savage e o filme teve a sua estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Veneza em setembro de 2021 que lhe conferiu o Leão de Prata de Melhor Realização. O trabalho foi realizado na Nova Zelândia, numa zona montanhosa do país mas que não se parece com o estado de Montana, todavia as tomadas de vista panorâmicas, em jeito do que faria Terrence Malick, são impressionantes e atestam bem a maestria da autora.

As quatro personagens mencionados na sinopse são-nos meticulosamente apresentadas, começando por Phil (Benedict Cumberbatch), que se apresenta como um fazendeiro machista, duro, naturalmente agressivo, que esconde uma homossexualidade latente, menosprezando tudo e todos, bem como todas as atividades que não revelem a virilidade inerente à sua necessidade de a mostrar, para ocultar a sua fraqueza profunda e o seu segredo escondido entre ramos e folhas de árvores da floresta, onde periodicamente se recolhe para solitariamente apreciar em revistas fotográficas da época, corpos musculados de homens. Nesses momentos ele perde-se em fantasias homoeróticas e lembranças do seu mentor Bronco Henry falecido há cerca de 20 anos, de quem ele guardou um lenço que usa para se masturbar. Na realidade ele é apenas um ser sofrido pela sua condição, não é intrinsecamente mau, apenas sente necessidade de compensar a sua fraqueza com demonstrações violentas. 

O seu irmão George Burbank (Jesse Plemons) tem o comportamento oposto dele. É calmo, ponderado a falar com frases curtas e por vezes insuficientes para concretizar uma ideia, e para a necessidade de exuberância do seu irmão Phil, pelo que se torna o alvo das suas provocações, tratando-o sistemáticamente por “gordo”, escarnecendo das suas premissas e da sua falta de apetência para a lidação com o gado. George tem estudos e outra visão da vida de que não abdica, como a constituição de uma família com a viúva Rose Gordon (Kirsten Dunst) dona do restaurante da cidade, que o gere com a ajuda do seu filho Peter (Kodi Smit-McPhee), de aparência esguia, delicado, aspirante a médico, metido consigo e com os seus livros e com as suas habilidades manuais de fazer arranjos de flores em papel colorido que se destinam à decoração das mesas.

É com estes quatro elementos que Jane Campion desenvolve uma história de competição e confronto de personalidades. Quando George e Rose depois de casados coabitam com Phil a casa de família no rancho, Phil envolve-se em provocações psicológicas a Rose que integra muita emoção no papel do seu personagem, mas a força está com Phil. Peter por seu lado, observa, regista, mastiga as humilhações e com base na religiosidade da sua formação folheia o Livro de Oração, lê os Salmos 22:20 “Livra a minha alma da espada minha querida, e do poder do cão”, reflete, e sorrindo suavemente engendra um processo para castigar o pecador. Diabolicamente lindo, muito bem interpretado é merecedor de ser visto com tempo para o desfrutar ao longo dos seus 126 minutos. Recomendo…

Em exibição na plataforma de streaming Netflix e sem data para apresentação em sala

Classificação: 7 numa escala de 10

 

10 de abril de 2021

Opinião – “Akelarre - O Ritual da Irmandade” de Pablo Agüero


 Sinopse

Em 1609, um grupo de mulheres do País Basco acusadas de bruxaria tenta adiar a sua execução, convidando o inquisidor a testemunhar o seu ritual do Sabbat.

Opinião por Artur Neves

Este novo filme de Pablo Agüero, realizador nascido na Argentino em 1977 e com um curriculum pouco extenso foi adquirido pela Netflix, mas não é mais do que um remake de “Akelarre” de 1984 estreado no festival de Berlim e realizado por Pedro Olea, ambos, financiados pelo governo do País Basco, com a diferença de este apresentar caraterísticas de ter sido contemplado com um orçamento inferior ao primeiro.

Antes de continuar com apreciação do filme em si, julgo importante esclarecer o leitor que Akelarre significa “Sábado das Bruxas“, ou “Sabbat“, em euskera, língua basca e constitui uma reunião de pessoas que alegadamente praticam bruxaria, bem como outros ritos de cariz hermético, distinguindo-se porém o Sabbat numa cerimónia com animais, onde são realizados banquetes e danças que celebram as estações do ano, tais como a época das colheitas ou a lactação dos animais, com pouca relação com reuniões de bruxas malignas para realizar orgias, Missa Negras, lançar encantamentos ou preparar poções secretas para fins específicos.

Os Sabbats são somente celebrações pagãs em homenagem à vida, à natureza e a tudo o que nela existe, onde se canta, dança e se comem alimentos naturais reforçados com alucinogénios, (muito comuns durante o ritual para se atingir o êxtase) com os quais se pretende mostrar agradecimento e veneração á natureza que os produziu, transmitindo aos fiéis uma experiencia espiritual intensa que lhes permitiria sentirem um equilíbrio harmonioso de comunhão e pertença com a natureza que veneravam.

O argumento deste filme é baseado no livro; Tratado de Feitiçaria Basca de Pierre de Lancre, que era jurista na corte do rei Henrique IV de França, e que o escreveu após uma visita ao País Basco, no ano de 1609, apreciando os rituais a que assistiu sob a influência das convenções religiosas impostas pela Inquisição Espanhola que definia como adoração a Satanás todas as manifestações de adoração a uma cabra negra, ou ao porco, tal como genericamente acontecia e como interpretou, nos Sabbats a que assistiu durante a visita.

Embora o argumento e a história que o suporta assentem numa base verdadeira sobre um período histórico em que as mulheres eram condenadas só por existirem o filme em si mesmo parece perdido na dimensão do seu conteúdo, porque Rostegui (Alex Brendemühl) o padre inquisidor, acompanhado pelo seu Consejero (Daniel Fanego) e relator da viagem e dos eventos nela presenciados só se preocupam em queimar as “bruxas” que não são mais do que mulheres normais, das quais sobressai Ana (Amaia Aberasturi) não só pela sua beleza, como principalmente por se ter apercebido da fragilidade das intenções dos inquisidores e da volubilidade das suas convicções, arquitetando um plano para fugir à condenação, seduzindo Rostegui e convencendo-o a assistir a um Sabbat preparado por ela e pelas outras mulheres jovens da vila com intenção expressa de fuga.

Ana e todas as outras jovens do grupo já estão presas e o filme não nos permite conhecê-las mais, para lá de esparsos flashbacks em inocentes brincadeiras no feno ou no convento onde foram presas e retidas agrilhoadas na masmorra. Que elas não eram bruxas já tínhamos concluído, que elas tinham capacidade de organização entre si, que a Inquisição Espanhola era um órgão discricionário e autoritário, também, e para lá disso não existe mais nada que motive o espectador para os 92 minutos de um filme que pretende retratar uma época e uma tradição pagã recheada de cultura.

Sou forçado a concluir que Pablo Agüero não tem mãos para defender este projeto, donde se pode justificar o baixo orçamento com que foi contemplado. Ele pretende criar cenas de suspense com a preparação do Sabbat e do golpe de fuga das raparigas, mas não resultam. A perseguição das jovens em fuga pelos soldados enviados para as capturar é ridícula e não convence, percebe-se a queda cautelosa dos duplos empregados no filme, a perseguição não gera qualquer adrenalina porque os soldados não as perseguem, correm desordenadamente e de tal modo, que nem a câmara os consegue enquadrar.

É pena, porque a história contém uma mensagem importante de resistência à prepotência, obscurantismo e discricionariedade de atitude perante a genuinidade da natureza. Um flop

Disponível na plataforma Netflix

Classificação: 3 numa escala de 10

7 de abril de 2021

Opinião – “Concret Cowboy” de Ricky Staub

Sinopse

Um adolescente rebelde vai a Filadélfia passar o verão com o pai afastado e encontra um novo sentido de família numa comunidade de cowboys afro-americanos.

Opinião por Artur Neves

A história dos USA veiculada pelo cinema de Hollywood não nos mostra esta faceta da conquista do oeste americano pelos negros imigrantes que chegaram ao novo continente nos séculos XVIII e XIX e que tal como outros povos vinham à procura do sucesso e do futuro. Como tal é lógico que tenham existido cowboys negros, para lá dos ingleses e irlandeses louros e de olhos azuis que nos têm sido vendidos nos westerns produzidos pela indústria americana. Aliás Quentin Tarantino já nos tinha mostrado esta realidade em “Django Libertado” de 2012, ou posteriormente em “Os Oito Odiados” de 2015, para não citar outros exemplos.

Onde essa realidade foi mais acentuada e durou mais tempo foi precisamente em Filadélfia, no estado da Pensilvânia, onde decorre esta historia passada entre as décadas de 50 – 60, adaptada de um romance de Greg Neri, inspirado no Fletcher Street Urban Riding (Club da vida real de Filadelfia) que nos reporta a vida da comunidade negra ainda ligada aos cavalos e às cavalariças (as “oficinas” dos cavalos) que resistia aos novos tempos do cavalo mecânico que insistia e lhe bater á porta, constituindo-os num ghetto de habitante negros, com alguma permissividade das autoridades locais.

A frugalidade das sinopses da Netflix não refere que o “adolescente rebelde” é Cole (Caleb McLaughlin) filho de pais separados ao cuidado de sua mãe Amahle (Liz Priestley) em Detroit, que fica sem meios de o controlar depois de ele ter sido expulso da escola que frequentava. Em face dessa situação e não querendo deixar o filho sujeito às más companhias durante a sua ausência para trabalhar, Amahle viaja até Filadélfia para o entregar ao pai Harp (Idris Elba) que faz parte de uma comunidade de cavaleiros que gerem um estábulo em ruínas, com outros saudosos desta atividade e possuidores destes animais, que lutam contra o progresso e a evolução urbanística que os quer desalojar dos seus decrépitos e sujos locais de vida.

Harp é uma figura sóbria, de poucas falas, partilha a sua desarrumada casa com um cavalo, de nome Chuck, que habita um estábulo improvisado no que deveria ser a sua sala de estar, fornece-nos informações sobre o caráter de Harp, bem como, para a sua propensão para a rebeldia e não cumprimento de regras, principalmente se elas foram estabelecidas por brancos contra quem ele arregimenta adeptos.

É neste ambiente que Cole é largado, sem se lembrar que nasceu ali e se mudou devido á separação dos seus pais, todavia, não foi esquecido por Nessie (Lorraine Toussaint) uma vizinha amiga do seu pai que tenta apoiá-lo à chegada, quando ele se encontra na rua com dois sacos de lixo na mão onde guarda todos os seu pertences, batendo à porta de casa do seu pai ausente. Outra pessoa que igualmente não o esqueceu é Smush (Jharrel Jerome) um amigo de infância que trafica droga por conta, anda de automóvel à procura de oportunidades de lucro, tem um sonho para sair dali e pode incluir Cole, se ele quiser colaborar com a atividade do pequeno tráfico a que ele se dedica.

Com estes ingredientes fica formado o ambiente para o drama de família e a história de delinquência que com altos e baixos se transforma na redenção de Cole, na sua transformação de adolescente recalcitrante em homem válido, através do seu convívio com uma animal selvagem, recriando a memória distante contada em reuniões junto à fogueira, de curas conseguidas pelo convívio com cavalos, e na inevitável reconciliação da família que o gerou.

Trata-se de uma obra de ficção inspirada remotamente em factos reais, recriando uma instituição centenária situada ao norte de Filadélfia que não conhecemos de todo, onde se mantém a tradição de equitação negra, paredes meias com o centro da cidade, e que sobrevive apesar da pressão de gentrificação exercida sobre ela. Constitui ainda a estreia de Ricky Staub na direção de uma longa metragem onde se nota a sua preocupação de identificação de um tema que não lhe é familiar mas que soube defendê-lo. Todo o trabalho de atores está bem conduzido, tanto com os profissionais como com os não profissionais, todavia é um tema de esquecimento rápido por não se incluir no nosso imaginário.

Disponível na plataforma Netflix desde 2 de Abril

Classificação: 5 numa escala de 10

 

31 de março de 2021

Opinião – “Unorthodox” de Anna Winger e Alexa Karolinski

Sinopse

Uma judia hassídica de Brooklyn foge a um casamento combinado e vai para Berlim, onde um grupo de músicos a acolhe... até que o passado vem bater-lhe à porta. Baseado no livro de memórias homônimo publicado no New York Times de Deborah Feldman, Unorthodox é a história de uma garota que rejeita sua educação radicalizada e parte para começar uma nova vida segue o rasto sombrio das suas origens para descobrir os mistérios perigosos do passado de sua família.

Opinião por Artur Neves

Numa altura em que as obras mais apetecíveis permanecem suspensas aguardando melhores dias para a sua exibição é a altura de fazer uma incursão pelo mundo das séries, particularmente das minisséries, que não eternizam a sua existência para lá da razoabilidade coerente do argumento que lhe serve de fundamento. É nessa categoria que se situa esta minissérie de quatro episódios, num total de 215 minutos, que não perderia nada se fosse convertida em filme, considerando a sequência restrita entre os episódios que compõem a história contada.

Aliás se observarmos o mastodôntico “Liga de Justiça” de Zach Snyder’s apresentado em 2021 com a escandalosa duração de 242 minutos em que mistura numa inenarrável história todos os defuntos super heróis da Marvel, esta minissérie até se apresenta como limitada para mostrar o ridículo e a incongruência contidos na religião judaica ortodoxa, subordinada à Tora e a todos os seus atávicos princípios, amplamente desadequados à vida real e ao tempo em que vivemos.

A minissérie reporta-nos assim, na pele de Esther Shapiro (ternamente conhecida por Esty) interpretada por Shira Haas, uma atriz israelita, o percurso tortuoso de vida de Deborah Feldman que anos antes igualmente abandonou a comunidade hassídica de Williamsburg a que pertencia, rumo à Alemanha, já com uma filha no ventre depois de um casamento combinado, da forma que Esty nos mostra nesta excelente minissérie, que estabeleceu ficar por aqui não se prevendo qualquer “2ª temporada” ou sequela duma história real contada na terceira pessoa. Aliás uma minissérie deve se mesmo assim.

O filme começa por nos mostrar o encontro (a apresentação) entre de Esty a Yanky Shapiro (Amit Rahav) com todo o protocolo definido pela Tora que estabelece a supremacia absoluta do homem sobre a mulher, devendo esta remeter-se ao papel de parideira e quanto mais parir melhor, porque mais rapidamente cumprirá os objetivos de repovoar o mundo com cidadãos judeus, compensando assim os falecidos no Holocausto.

O encontro, a preparação para o casamento, a divulgação dos seus deveres de esposa, comunicados a uma rapariga de 19 anos que ignora completamente a vida sexual, incluindo a sua própria anatomia íntima e a função dos seus órgãos, (esta cena merece reflexão sobre a legitimidade da castração do desejo e das emoções de um ser humano, através de uma convenção religiosa) a fragilidade do relacionamento entre os combinados “noivos” incumbidos a cumprirem um ritual preestabelecido mas que não os vincula afetivamente, porque simplesmente não se conhecem, são apenas o fruto do arranjo familiar com o beneplácito do Rabino da comunidade a que pertencem, fazem desta história um documento com importantes e estranhas revelações sobre comportamentos sociais.

Depois de realizado o casamento é preciso consumá-lo e neste capítulo é também apresentado toda a mecânica do processo (não há outra forma de dizer isto) com os falhanços sucessivos e o temor expresso por uma mulher que em repetidas noites de desgosto e sofrimento em todas as fracassadas tentativas de sexo que mortificam o seu espírito por não cumprir o objetivo anunciado de elevação do ego do seu marido. Quando finalmente a “coisa” se resolve, num ato de raiva sem amor, é evidente o chocante horror visceral na face de Esty contra a expressão de prazer vitorioso de Yanky, que exprime sem qualquer reserva a profunda desigualdade entre sexos vigente na sua comunidade.

A partir daqui Esty decide que não pertence mais ali e prepara a sua fuga para Berlim, ao encontro da mãe que anos antes teve o mesmo destino. Em Berlim segue-se o percurso de Esty que sem conhecimento da vida fora da sua comunidade procura sobreviver com a ajuda de amigos ocasionais em cujo círculo se consegue integrar. A Alemanha e a cidade de Berlim desempenham também um significativo papel considerando o seu impacto no passado para a comunidade judia e a minissérie utiliza-a bem, evidenciando a sensação de trauma do Holocausto que fornece uma tensão para o confronto das ideologias em presença.

Completado com frequentes flashbacks que nos informam das motivações dos eventos mostrados, "Unorthodox" funciona dentro do universo expandido de rebelião religiosa e drama lésbico que a realizadora Maria Schrader, em conjunto com as criadoras do argumento, transformaram em drama familiar e de costumes, num thriller fascinante, onde uma jovem em busca da sua individualidade e em rutura com crenças inculcadas desde o berço, contrastam com os esforços pífios de homens que a perseguiram em Berlim e julgam que a podem deter.

A atriz israelita Shira Haas tem um desempenho fabuloso entre o drama do amadurecimento como mulher e a história de sobrevivência que unilateralmente enceta. O seu marido Yanky Shapiro (Amit Rahav) representa um frágil hassidista embrutecido por uma religião castradora que nem se apercebe que sua mulher está grávida, de tão imbuído que está no seu papel protocolar. Para perseguir a sua esposa em Berlim, ele recebe a ajuda do seu primo Moishe Lefkovitch (Jeff Willbusch) um grosseiro arrivista, já sinalizado pelo Rabino da comunidade que o incumbe dessa tarefa com a promessa de reinserção e do perdão pelos anteriores desvios. Cabe ainda referir que Jeff Willbusch é ele mesmo, na vida real, um dissidente da comunidade Hassidi. Esta é pois uma minissérie que recomendo vivamente. Em exibição na plataforma Netflix.

Classificação: 8,5 numa escala de 10

PS: Para os mais curiosos informo que estão disponíveis no YouTube, um Making of da série em 20 minutos e um documentário de 90 minutos sobre Deborah Feldman.

 

12 de março de 2021

Opinião – “Promising Young Woman” de Emerald Fennell

Sinopse

É a vingança que guia a narrativa de Promising Young Woman. Na pele de Cassandra Thomas, Carey Mulligan dá vida a uma estudante de medicina que decide colocar uma pausa na sua vida profissional enquanto despende as noites em bares. É aí que atrai e conhece diversos homens que, depois, tenta punir pelas tentativas de se envolverem com uma mulher aparentemente debilitada – ela própria. Uma jovem assombrada por uma tragédia ocorrida no seu passado.

Opinião por Artur Neves

Com uma tradução para português aceitável, este; “Uma Rapariga com Potencial” foi considerado na lista dos nomeados para os Globos de Ouro, bem como, na recente lista para os prémios BAFTA (73ª British Academy Film Awards) de cinema, em Inglaterra e recentemente incluído nas nomeações para os óscares da Academia americana. Com um argumento no género thriller representa ainda a estreia auspiciosa da realizadora inglesa Emerald Fennell, também autora do argumento, que com este filme inicia a sua carreira em longas-metragens, duma maneira tão prometedora como a protagonista da história que nos mostra este filme.

Ela, Cassandra Thomas, Cassie para os amigos, é uma estudante de medicina que perto dos seus 30 anos decidiu suspender o seu curso de medicina para se dedicar à tarefa justicialista sobre um evento traumático que a acompanha desde a juventude e a impede de ser feliz. Ela simula um estado de completa embriaguez nos bares que frequenta, provocando lascivamente os frequentadores masculinos com espírito predador que ela arrasta para um motel, ou os acompanha a casa para uma lição de consentimento e de respeito sobre a real vontade da parceira, que eles nunca mais esquecerão.

Não quero revelar demais como se processa o castigo, mas na altura da “lição” Cassie assume o espírito do acidente acontecido com uma amiga da faculdade que ela tratava como irmã e morreu às mãos de outros colegas; Madison (Alison Brie), e Dean Walker (Connie Britton) que permaneceram imóveis e mudos perante irrefutáveis provas da violação a que a amiga foi sujeita. Cassie assume um papel difícil e perigoso que não lhe permite grande margem de autonomia, mas o desgosto e a raiva presente nas suas memórias impede-a de recuar na sua cruzada pela razão e pela vingança.

Na manhã seguinte já a vemos no pleno controlo das suas faculdades caminhando com os seus sapatos de salto alto na mão enquanto devora com apetite um hambúrguer a caminho do seu trabalho de ocasião numa cafetaria. Este é um filme de mulheres que lutam contra a violação por homens sem escrúpulos e pelo respeito a que têm direito como pessoas com capacidade de decisão e de vontade autónoma.

A história deste filme explora de forma ousada ideias complexas que se cruzam nos pensamentos humanos e nas normas legais. Fazer justiça pelas próprias mãos nunca é uma solução aconselhável, mas por vezes as circunstancias assim nos conduzem a este limite. O filme mostra-nos o fundamentalmente importante sobre o sexo consentido, ou a falta da sua aquiescência, e a tolerância das instituições académicas para os estudantes masculinos e os seus devaneios impulsivos generalizadamente compreendidos quando apanhados em transgressão.

Carey Mulligan dá o melhor de si à interpretação de um personagem sofredor que assumiu a responsabilidade de não deixar o crime de uma pessoa que lhe era tão próxima, impune, ou esquecido numa investigação interrompida, através de múltiplas tentativas de vingança purificadora. As suas razões são genuínas e no seu caminho encontra homens em quem excita os seus piores impulsos para nos mostrar e provar a si própria a justeza dos seus atos contra todas as ações censuráveis. A obstinação dos propósitos de Cassie é um conceito exaustivo que por outro lado nos mostra que nem todos os homens que ela encontra são igualmente merecedores do mesmo tratamento, mas a sua determinação em atingir os objetivos faz-nos pensar que eles ainda são piores, residindo aqui a parcialidade desta história que nos agarra ao ecrã, entre drama, comédia e suspense durante 114 minutos, com significativo agrado.

Disponível nas plataformas Netflix e Amazon Prime video

Classificação: 7 numa escala de 10

 

3 de março de 2021

Opinião – “Nomadland” de Chloé Zhao

Sinopse

Após o colapso econômico de uma cidade empresarial na zona rural de Nevada, Fern (Frances McDormand) embala sua van e parte para a estrada explorando uma vida fora da sociedade convencional como uma nómada moderna.

Neste terceiro longa-metragem da diretora Chloé Zhao, Nomadland apresenta os verdadeiros nómadas Linda May, Swankie e Bob Wells como mentores e companheiros de Fern em sua exploração pela vasta paisagem do oeste americano.

Opinião por Artur Neves

Premiado nos Globos de Ouro de 2021, este filme mostra-nos um conjunto de espoliados da América para quem Trump prometia o que não podia cumprir, apenas para arregimentar adeptos que sem outras perspetivas aceitavam como boas as suas promessas vans. Esta história é baseada num livro com o mesmo nome escrito em 2017 por Jessica Bruder, uma jornalista americana que escreve sobre subculturas sociais e viveu oito meses com a comunidade onde se inspirou. Atualmente leciona num curso de jornalismo na Columbia Journalism School.

O filme concretiza um modelo “dois em um”, é simultaneamente um documentários de pessoas reais, de vidas reais, entronizadas pelo personagem ficcionado de Fern (Frances McDormand), que se fez à estrada após o falecimento do seu marido Bo, que trabalhava nas instalações mineiras da empresa US Gypsum em Empire, Nevada, como resultado da redução da procura pelo mercado de gesso cartonado. A empresa fechou em Janeiro de 2011 e como todas as cidades mineiras como Empire, definham assim que a razão que as justifica desaparece e Fern permaneceu na casa da empresa depois da morte do seu marido até ser forçada a sair.

Estes dois géneros; o documentário e o drama ficcional ainda que muito próximo da realidade, dificilmente se conjugam de forma a motivar o interesse do espectador num visionamento atento, considerando que a componente documental se refere ao quotidiano de um grupo e pessoas que se dedica a viver a sua vida de uma forma libertária, sem amarras, sem localização fixa, mas as suas atividades em nada diferem de uma vida normal, parca e comum. Eles são os nómadas modernos por opção, diferentes dos povos nómadas naturais, vivem com o mínimo essencial, assumem um corte significativo com a sociedade de que se desligaram, e funcionam à margem do sistema americano onde o capital determina o estatuto e o valor individual.

Fern, o personagem muito seguro e credível construído por Frances McDormand, (que apesar de ter sido também nomeada não recebeu qualquer distinção que este ano foi para a realizadora chinesa Chloé Zhao de 39 anos), representa o detrito vivo do colapso económico da cidade Empire, no estado do Nevada, que serve de “abre-latas” para nos introduzir nos despojos abandonados e degradados da empresa mineira US Gypsum, de onde não mais se podem obter proventos nem meios de subsistência e justificam a demanda de Fern por outros horizontes vivendo na sua caravana, para se juntar a outros espoliados, que tal como ela, caíram no buraco do american dream que Trump jurara a pés juntos, recuperar.

Na sua viagem Fern conhece nómadas reais, tais como Linda May que perdeu o emprego em 2008 e para quem os parcos benefícios da Segurança Social são insuficientes para viver noutro sítio que não seja numa caravana, ou Swankie que tem cancro em fase terminal e prefere morrer na estrada em vez de na cama de um hospital, bem como Bob Wells, que estão considerados no livro de Jessica Bruder e constituem o seu núcleo de amigos restrito.

A certa altura Fern encontra um outro trabalhador da fábrica, Dave (David Strathrain, o único outro ator de carreira que aparece no filme) com quem ela ensaia uma tentativa de amizade, mas quando o filho de Dave o visita, ele acompanha-o de volta à sua casa. Dave convida Fern para o visitar e ela aceita o convite, mas quando se encontram na casa do filho nada acontece e ficamos com a sensação que Fern já não é mulher de casa, não consegue viver no mesmo lugar muito tempo, já não aprecia o conforto de um lar porque choca de frente com o seu sentido de liberdade adquirida.

Fern é o esteio de ligação desta história de abandono, sofrimento e desordem e apresenta-nos uma atuação tranquila e segura, para a qual contribuiu o facto de ter vivido durante toda a rodagem na caravana que foi utilizada no filme (é assim que se faz quando se realiza trabalho honesto). Muito do valor do filme reside nas suas expressões resignadas, com olhar vagando pelo infinito ou sonhando acordada mergulhando nua numa piscina como um desejo improvável. Constitui todavia uma personagem fascinante na sua solidão, na sua frustração que de forma alguma “aquece” o filme para lá da aridez de vidas vazias. Na realidade não conhecemos Fern porque a história não nos a apresenta, apenas podemos intuir fragmentos através da sua interação com os outros. Não achei um filme particularmente interessante, é uma história do quotidiano banal de uma população dispersa e em movimento, pelo que a classificação atribuída vai toda para a personagem criada por Frances McDormand.

Pode ser visto na plataforma de streaming HULU e a partir da segunda quinzena de Março estará disponível na Netflix.

Classificação: 6 numa escala de 10

 

24 de fevereiro de 2021

Opinião – “I Care a Lot” de J. Blakeson

Sinopse

Provida de uma autoconfiança de tubarão, Marla Grayson (Rosamund Pike) é uma guardiã profissional nomeada pelo tribunal para dezenas de enfermarias de idosos cujos bens ela apreende e astutamente rouba por meios duvidosos, mas legais. É uma estratégia bem lubrificada que Marla e sua parceira de negócios e amante Fran (Eiza González) usam com eficiência brutal na sua mais recente atividade empresarial para com Jennifer Peterson (Dianne Wiest) uma aposentada rica sem herdeiros vivos ou família. Mas quando a visada revela ter um segredo igualmente obscuro e ligações muito próximas com um gângster volátil (Peter Dinklage), Marla é forçada a subir de nível num jogo em que só predadores podem jogar.

Opinião por Artur Neves

Com uma tradução nacional que aceitamos; “Tudo pelo vosso Bem”, porque assume os objetivos explícitos da história, embora não sendo reais, temos aqui um thriller tragicómico sobre a obtenção de poder para exclusivo benefício próprio quando transformado em dinheiro que nunca é demais nem tem limite porque facilmente obtido, dedicadamente obtido, por uma Marla Grayson que sem um pingo de respeito pelo próximo ou comiseração, se apropria de todos os bens e fortuna de quem cai na alçada da sua tutoria arranjada, com a conivência de diferentes cúmplices situados em condições adequadas para o conseguir.

Quando vemos Jennifer Peterson ser arrastada de casa pela ordem de um tribunal, contra sua vontade, sem possibilidade de argumentação ou defesa e ser entregue a uma instituição, que lhe restringe a liberdade, lhe confisca o telemóvel e a impede de qualquer contacto com o exterior incluindo ter visitas, com o “carinhoso” acompanhamento de Marla que exibe um sorriso largo, brilhante e comovente, em conjunto com uma voz ronronada de contralto que adiciona uma ameaça velada aquele sorriso, que sabemos exprimir “és a cereja em cima do meu bolo porque vou ficar com toda a tua fortuna…” provoca-nos uma revolta interior e sugere-nos a pergunta se nos USA aquela situação poderia ocorrer de facto.

Pelos vistos parece que sim, especialmente quando a decisão depende de um pouco interveniente juiz (Isiah Whitlock Jr.) que se limita a corroborar tudo o que lhe é apresentado pelas “entidades competentes” naquele tribunal de família em que se pretende defender os idosos alegadamente fragilizados pela doença e pela demência.

Em boa verdade esta é uma história de terror que me faz lembrar “Distúrbio” de 2018 realizado por Steven Soderbergh, só que sem qualquer laivo de comédia. Aí a cativação da vítima é mesmo a sério. Nesta história para os nossos dias, depois de um qualquer Trump ter abandonado contrafeito a Casa Branca, trata-se de obter poder e dinheiro através da exploração dos mais vulneráveis, por uma Marla, que no início do filme ri e escarnece da máxima de que; “trabalhar duro e jogar limpo leva ao sucesso e à felicidade…”, depois explica-se que não é um cordeiro, mas sim uma leoa e nesta altura ainda não sabemos o que ela se prepara para fazer.

Vemo-la depois no seu escritório, olhando para uma parede cheia de fotografias dos seus “clientes”, dos seus “protegidos”, que ela espera que durem o tempo suficiente para lhe darem lucros depois de pagar as luvas à cadeia de “colaboradores” que propiciam aquela situação. Quando por qualquer motivo eles morrem antes do previsto é um falhanço comercial e Jennifer Peterson apresenta um extraordinário potencial de futuro que lhe caiu no colo e ela projeta explorar em todo o seu esplendor.

Todos os 118 minutos deste filme são emocionantes na sua malvadez, na sua história retorcida mas que nos parece próximo do possível e nos faz sentir inquietos com tamanha injustiça. Quase sentimos alívio quando começamos a perceber que Jennifer Peterson não é bem o que parece, só que a sua relação com Roman Lunyov (Peter Dinklage, mais conhecido como o anão Tyrion Lannister em Game of Thrones) também não nos transmite sossego. São só vilões, todos maus, mas aqui a diversão já continua com outro ânimo porque ganhamos a espectativa de que Marla não obterá os seus intentos, mantendo-nos interessados e a tentar adivinhar o próximo passo desta rocambolesca história.

Rosamund Pike está notável neste desempenho de uma pessoa profundamente horrível, socialmente desdenhosa, perversa, com um belo sorriso aterrador, porque encerra o quanto de pior a espécie humana possui. O argumento está muito bem conseguido e J. Blakeson merece parabéns como autor, inspirado por casos publicados no The New Yorker que usam vazios legais não revistos com mais de 800 anos, sobre a proteção de idosos, e realizador porque, com graça e emoção concebeu uma história com vários twists imprevisíveis que nos divertem e emocionam. Recomendo vivamente, em exibição na Netflix.

Classificação: 7 numa escala de 10

 

16 de fevereiro de 2021

Opinião – “Red Dot” de Alain Darborg

Sinopse

Um homem e uma mulher que esperam o primeiro filho tentam reavivar a paixão do seu casamento numa viagem à neve, na qual acabam perseguidos por assassinos impiedosos.

Opinião por Artur Neves

Nunca me tinha confrontado com uma sinopse tão seca, mas é o que arranja no site oficial da Netflix. Contrariamente a outras sinopses demasiado detalhadas, esta parece-me demasiado redutora e simplista, relativamente a um thriller intenso, que cria robustas cenas de suspense ao longo do desenvolvimento da história, através da omissão de factos que posteriormente são revelados. Quando nos são apresentados eles justificam alguns eventos que nos causaram estranheza anteriormente, mas a sua apresentação somente á posteriori, sem qualquer sugestão anterior para levantar uma dúvida no espectador sobre quem é quem, ou pelo menos que há uma realidade que não conhecemos, sabe a “sopa depois do jantar” e compromete a qualidade global do filme porque parece uma solução arranjada.

David (Anastasios Soulis) e Nadja (Nanna Blondell) são um casal sueco, jovem, que já revela alguns momentos de tensão no seu relacionamento. David é engenheiro civil e está bem empregado, Nadja é estudante de medicina, usufruem de uma vida estável mas algumas acusações mútuas surgem no casal quando Nadja descobre que está grávida e que esse facto vai comprometer a continuação dos seus estudos pelo menos, no tempo imediato.

Para tentar compor o ambiente em casa David surpreende a sua esposa com um fim de semana romântico no norte da Suécia, onde eles se propõem viver ao ar livre, numa tenda, para esquiar e dormir sob o manto da aurora boreal num contacto íntimo com a natureza.

Os preparativos para a viagem decorrem normalmente mas a viagem começa a parecer estranha logo na primeira paragem para abastecimento do carro, com uma troca de palavras pouco comum com dois caçadores (mais tarde veremos que não eram caçadores) que seguiam na mesma direção do norte. O casal, acompanhado pelo seu cachorro Boris, tentam desvalorizar o incidente, mas não deixa de ser o início de alguns eventos sombrios, com Nadja a riscar deliberadamente o carro de um dos caçadores, numa atitude que nesta altura nos parece inusitada e mais estranha ainda se comparada com o que saberemos no fim da história.

No lugar em que eles resolvem acampar, quando na noite se preparam para a fruição da natureza branca e fria que os cerca, aparece na transparência da sua tenda a mira laser de uma espingarda de longo alcance (“Red Dot” o Ponto Vermelho) que sem um objetivo específico, embora perturbador, se passeia pelos seus corpos e pelos diferentes objetos contidos no interior da tenda. Eles saem, procurando o agressor e quando regressam no dia seguinte encontram a tenda vazia porque tinham sido roubados de todos os seus pertences e substituídos por um presente macabro.

É aqui que reside o problema, as atitudes são estranhas, os comportamentos do casal, bem como, com quem eles interagem não parecem adequados em algumas cenas, mas não se vislumbra qualquer motivo, nem sequer indícios, ainda que falsos, nos são apresentados sendo quase induzidos a pensar que se trata de um terror gore justificado por maldade deliberada. Finalmente quando conhecermos as razões e a verdade é revelada já estamos voltados para outro lado e o filme é já quase uma memória, porém é aí que tudo faz sentido.

Assim sendo o que temos aqui é um filme tenso, totalmente sombrio e sem humor ou algo que nos descontraia, o que não significa ser um filme mau, note-se. David e Nadja envolvem-se numa batalha pela sobrevivência num meio que lhes é hostil e impiedoso, refletindo os seus conflitos internos dos quais se querem libertar sem todavia conseguirem, atolando-se cada vez mais numa vertigem maléfica que os destrói pelas suas próprias mãos. Só se lamenta é que o espectador fique todo o tempo a “navegar na maionese”, porque a história até é interessante.

Classificação: 6 numa escala de 10

 

7 de fevereiro de 2021

Opinião – “Malcolm & Marie” de Sam Levinson

Sinopse

Quando um cineasta, Malcolm (John David Washington) e a namorada, Marie (Zendaya) regressam ao apartamento de luxo alugado num lugar sobranceiro à cidade, nas colinas de Hollywood, para aguardar a crítica dos mídia sobre a estreia ao seu mais recente filme, tensões latentes entre ambos dão lugar a revelações dolorosas que os levam a confrontar os seus sentimentos e a estabilidade da sua relação

Opinião por Artur Neves

Esta história, escrita e realizada por Sam Levinson para a Netflix que estreou na plataforma nesta sexta feira, 5 de Fevereiro, mostra-nos em preto e branco (podia ser a cores, não havia qualquer mal nisso) o bom desempenho de dois atores em ascensão; Zendaya (Homem Aranha – Longe de Casa, de 2019) e John David Washington (Tenet, de 2020) numa acalorada discussão durante algumas horas que serve para abrir feridas não saradas da relação que mantêm há algum tempo.

A história apresentada tanto serve para cinema como foi apresentada ou para teatro, pois a ação decorre totalmente dentro de casa, embora em várias divisões em que cada um por si, com absoluta cordialidade e respeito mútuo, produzem monólogos mutuamente acusatórios em que cada um responsabiliza o outro por defeitos e consequências que inspiraram o filme em estreia, manifestando a sua mágoa de não terem sido considerados mais estreitamente um pelo outro.

Não se pode dizer que os monólogos sejam mal construídos, eles destilam mágoa e comiseração e em certas falas uma amargura mesquinha que embora constituam boas peças artísticas e bem desempenhadas, tornam-se enfadonhos para o espectador que caiu ali sem pára quedas e não tem mais nada além de palavras, palavras, palavras, que embora sejam muito importantes não têm suporte visual que as justifique, que lhes dê corpo que dê ao espectador a possibilidade de opção, ou de julgamento por uma das versões.

O filme está bem realizado, transmite-nos segurança no conteúdo das cenas e apresenta-se envolvido numa banda sonora recheada de soul music, onde a versão de Duke Ellington e John Coltrane de “In a Sentimental Mood” de Ellington, soa de modo agradável de ouvir e bastante adequada a cada situação, criando o ambiente propício para a evolução dos dois personagens que até são capazes de desenvolver uma química convincente entre eles através de uma suficiente densidade dramática nas suas discussões incessantes, porém, nem tudo é remível somente a palavras e aqui reside a sua principal fragilidade.

Podemos até questionar se Sam Levinson não pretende enviar uma mensagem codificada aos críticos de Hollywood sobre os preconceitos subconscientes revelados em algumas das suas atitudes, considerando o tempo despendido por Malcolm ao insurgir-se contra uma garota branca que escreve para o Los Angeles Times e o questionou sobre a personagem feminina do seu filme. Ele acha que a personagem é clara e como tal destrata-a, acusando-a de estupidez e de insuficiente capacidade para entender a história que ele filmou.

Toda a história tem a estrutura de um combate de boxe, ora agora bato eu, ora agora bates tu e eu defendo-me, mas ambos os contendores apesar de se agredirem intensamente soam como um grito no deserto, pois de seguida ensaiam uma aproximação para se distanciarem na próxima discussão mais intensa que a anterior. "Nada de produtivo vai ser dito esta noite", avisa Marie a Malcolm e de caminho avisa-nos também, porque se não há nada de errado e se tudo o que for dito de um lado pode ser respondido pelo outro, então não temos filme e foi um grande equívoco gastar 106 minutos numa história onde apenas se salva o desempenho dos atores para o qual vai toda a classificação a seguir indicada.

Classificação: 5 numa escala de 10

 

29 de janeiro de 2021

Opinião – “The White Tiger” de Ramin Bahrani


 

Sinopse

Balram Halwai (Adarsh Gourav) narra sua ascensão épica e sombriamente humorística de pobre aldeão a empresário de sucesso na Índia moderna. Astuto e ambicioso, nosso jovem herói abre caminho para se tornar o motorista de Ashok (Rajkummar Rao) e Pinky (Priyanka Chopra-Jonas), que acabavam de retornar da América. A sociedade treinou Balram para ser uma coisa - um servo - então ele se torna indispensável para seus mestres ricos. Mas depois de uma noite de traição, ele percebe o quão corrupto eles são, ao ponto de o incriminar para se salvarem. À beira de perder tudo, Balram se revolta contra este sistema fraudulento e desigual para se levantar e se tornar um novo tipo de mestre. Baseado no best-seller do New York Times e no romance vencedor do Prêmio Man Booker de 2008.

Opinião por Artur Neves

A sociedade Indiana funciona num sistema de castas que significa não haver transição possível ou fácil entre os níveis sociais determinados pela origem do seu nascimento e este filme mostra-nos com clareza o efeito devastador de um tal sistema onde todas as pessoas não têm um meio de se livrar dele. Balram Halwai o protagonista da história ilustra a certa altura o sistema de castas comparando-o a um galinheiro pejado de galos e de galinhas e fechado à chave. Um dia porém a chave perde-se com o galinheiro aberto mas os animais estão tão completamente formatados à vida no galinheiro que nem mesmo com a porta aberta pensam em fugir, continuando a viver no seu interior.

A história é narrada por Balram e começa em 2010 em que ele nos conta como sendo um menino pobre no seio de uma grande família de casta baixa, em que todos trabalham para a avó numa banca de venda de chá, ascende a motorista de uma rica família de senhorios, donos da terra que a família de Balran ocupa, numa existência miserável.

Nem sempre os filmes narrados, ou a narração dos factos evidencia as questões essenciais como no caso deste filme em que Balram nos alerta para o facto do sistema de castas, de servos obedientes e dos seus senhores contribuir para a paz e a ordem, pois declara-nos sem rodeios que “… detestamos os nossos mestres por trás de uma fachada de amor ou os amamos por trás de uma fachada de ódio?...” que fará sentido no momento em que nos é dito.

Bollywood não passou por aqui com os seus romances de cordel, suas paixões lânguidas e seus heróis de pantomima, nem este é um filme sobre um pobre inocente, nem tão pouco um “Quem quer ser Milionário” que implicitamente Balram denigre, quando, ao nos relatar o seu passado de pobreza nos diz “… não acredite por um segundo que existe um jogo de um milhão de rupias que o resgata da sua condição se o ganhar…” pois ele tem plena consciência que o seu lugar na casta onde nasceu não é mutável pelos seus meios, porque a única maneira na Índia de chegar ao topo é pelo crime ou pela política (não é só lá, mas isso Balram já não deve saber).

No seu lugar de motorista da família, Balram aproxima-se do filho do patrão Ashok (Rajkummar Rao),que regressou dos USA com sua mulher Pinky (Priyanka Chopra Jonas) que também ocupa um lugar de relevo na história pela sua posição mais esclarecida, aberta e independente relativamente a Ashok que apesar da sua formação ocidentalizada não consegue libertar-se profundamente do sistema da casta onde pertence.

O casal até se entende bem com Balram, e chama-o de “família” o que não impede porém que eles habitem um andar de luxo e que Balram durma num catre sobre o pavimento da garagem, pejada de baratas e mosquitos sem qualquer comodidade, com os outros motoristas dos outros senhorios. Numa noite de descontração e álcool, Pinky protagoniza um acidente fatal para terceiros, em que os senhores de Balram o pressionam para assumir as culpas e ilibar a família. Pinky e Ashok inicialmente repudiam a participação nesse esquema mas o poder da casta de Ashok não permite essa mancha, mostrando que á sua maneira o sistema os deformou como fez com Balram, só que em sentidos opostos. No fundo Pinky e Ashok até são boas pessoas mas a tradição ancestral é mais poderosa.

Este evento, muda a permissividade de Balram para com os seus senhores, ele não suporta pensar o que poderia ter sido se não pertencesse à casta a que pertence e solta-se a revolta. Antes disso, ele recorda as palavras do seu antigo professor ao saber que ele vai abandonar a escola para trabalhar para a família. Este fica admirado pelo seu potencial inato e apelida-o de “Tigre Branco”, um espécime raro de felino que surge apenas uma vez em cada geração.

Muito bom, recomendo vivamente, está disponível na plataforma Netflix

Classificação: 8 numa escala de 10

28 de janeiro de 2021

Opinião – “News of the World” de Paul Greengrass

Sinopse

Cinco anos após o fim da Guerra Civil, o capitão Jefferson Kyle Kidd (Tom Hanks) cruza-se com uma menina de 10 anos Johanna (Helena Zengel) libertada pelo povo Kiowa que a tinha sequestrado. Forçada a retornar para sua família sobrevivente, Kidd concorda em escoltar a criança através das planícies severas e implacáveis do Texas. No entanto, a longa jornada logo se transforma em uma luta pela sobrevivência, pois os dois companheiros de viagem encontram o perigo a cada passo – tanto humano quanto natural.

Opinião por Artur Neves

Em ritmo de western pacato, este “Notícias do Mundo”, em tradução livre, mostra-nos um Tom Hanks na pele de um Captain Kidd, ex-combatente na guerra civil americana, em modo de avô paternal durante uma viagem pelo selvagem estado do Texas para entregar uma miúda emigrante alemã, órfã de pais, aos seus tios ainda vivos a seiscentos km de distância.

A história baseia-se no romance de Paulette Jiles, uma historiadora especialista na guerra civil americana e atualmente residente no estado do Texas, que tem no seu curriculum diversos escritos sobre este conflito e cuja escolha se centrou neste conto carregado de revisionismo sobre a crueza dessa guerra, amenizada pelo excelente desempenho de Tom Hanks na personagem de um militar de regresso ao lar (desfeito, como viremos a saber depois) que auto assume a paternalista tarefa de servir de guardião a uma menina, já sem referencias da sua origem e em estado de transição para a comunidade e cultura Kiowa que a sequestrou, depois de matar os seus pais.

Hanks sempre nos habituou a boas interpretações e neste filme não foge à regra transmitindo-nos a ideia de homem comum, de caráter sólido e íntegro, cheio de ideias nobres ocupando-se com a tarefa de fazer de leitor de jornais da civilização, à luz de lampiões, aos imigrantes analfabetos que habitam as cidades por onde passa no caminho para casa. O Captain Kidd já não usa armas de guerra, tendo substituído as munições por cartuchos de granalha esférica para matar pardais, pelo que nos transmite a sensação de que Johanna está em boas mãos e tudo vai correr conforme previsto.

As reações dos ouvintes são diversas, de acordo com as fações que apoiaram durante a guerra e quando alguns texanos criticam as opções do norte aí temos o calmo e seguro Captain Kidd a apaziguar as hostes com histórias que divertem e informam sobre a nova ordem que impera no novo país unificado. Ele não poderia imaginar que os netos e bisnetos dos seus ouvintes contestatários haveriam de votar em Donald Trump 150 anos depois… mas isso já faz parte de outra história.

Twists, só os que Luke Davis que adaptou o romance original para argumento cinematográfico achou convenientes para não adormecermos durante o visionamento desta realização do britânico Paul Greengrass que já teve melhores dias nas suas histórias se nos lembrarmos por exemplo da saga “Jason Bourne” (“Identidade Desconhecida”, “Supremacia” e “Ultimato”) ou “Voo 93” de 2006 ou mesmo “Capitão Phillips” em 2013 com Tom Hanks já a pensar na reforma, embora ainda com garra.

A história relata-nos as peripécias da viagem do honorável Captain Kidd depois de encontrar a menina abandonada no deserto ao sul de Wichita Falls e de assumir a sua guarda até a entregar à sua família, só que, o seu próprio retorno à casa e à mulher que deixou para se alistar na guerra não correspondem ao que esperava. Pelo lado de Johanna as coisas também não se afiguram melhores com os seus tios e é então que o coração fala mais alto e Kidd tenta um novo recomeço a dois com esta parceira inesperada ao seu cuidado.

Para ao mais cinéfilos este filme é de alguma maneira uma homenagem a John Wayne no filme “A Desaparecida” de 1956 o que todavia me parece injusto pois o trabalho de Hanks é sólido, bem como o de Helena Zengel, que com uma expressiva juventude nos convence de quem não é, representando com segurança o seu trauma e a aculturação recebida, que os salva em situações de aperto. É um retrato duma época dos USA e como tal deve ser encarado.

Classificação: 6 numa escala de 10

 

11 de janeiro de 2021

Opinião – “Pieces of a Woman” de Kornél Mundruczó

Sinopse

Martha (Vanessa Kirby) e Sean (Shia LaBeouf) são um casal de Boston à beira da paternidade, cujas vidas mudam irrevogavelmente quando um parto em casa termina em uma tragédia inimaginável. Assim começa uma odisseia de um ano para Martha, que deve navegar na sua dor enquanto trabalha um relacionamento turbulento com Sean e com a sua mãe dominadora (Ellen Burstyn), junto com a parteira difamada publicamente (Molly Parker), a quem ela deve enfrentar no tribunal.

Opinião por Artur Neves

O título original deste filme da Netflix tem tradução imediata para “Pedaços de uma Mulher” mas não me parece ser o mais adequado ao tema em apreço, por quanto “pedaços” transmitem-nos a ideia de desagregação, de retalhos, de incompletude que estão em desacordo com a opção consciente desta mulher em ter um parto natural em casa, correndo todos os riscos daí decorrentes em caso de ocorrência dos imprevistos que afinal se vieram a verificar. Como tal, o título de “Atos de uma Mulher” caracterizaria melhor a sua personalidade e os restantes eventos mostrados nesta história, principalmente a sua dolorosa viagem íntima para lidar com a perda irreparável do falecimento da sua filha, muito pouco tempo após o parto tão dificilmente conseguido em ambiente impróprio.

A primeira meia hora reporta-nos uma ação particularmente intensa, até esgotante pelo seu realismo convincente e extraordinariamente bem interpretada por três personagens que nos exprimem os maiores contrastes emocionais imagináveis ao longo de uma noite de parto que termina com uma incomensurável tragédia aterrorizante e devastadora com sequelas traumáticas para o resto da vida.

Kornél Mundruczó de origem húngaro e com largo histórico de realização desde 1998 tem com este filme a sua estreia em língua inglesa, com um argumento escrito por Kata Wéber, baseado numa peça de teatro com o mesmo nome estreada na Polónia em 2018, que nos ofereceu este docudrama em que Martha e Sean se entregam completamente a uma longa tomada de vistas de um excruciante parto que nos perturba.

A parteira que acompanhou Martha durante a gravidez está impedida de a apoiar por estar envolvida noutro parto à mesma hora e recomenda-lhe que contactem uma sua colega Eva (Molly Parker) igualmente fundamental nesta primeira parte do filme em que se apresenta calma e segura das ações a desenvolver, embora não reúna a necessária confiança do casal pelo natural desconhecimento dum primeiro contacto. Enquanto Martha sofre, Sean anda de uma lado para o outro como uma animal enjaulado sem poder, nem saber o que fazer. Eva ao princípio segura, começa habilmente a mostrar-nos lampejos de preocupação enquanto tenta acalmar Martha para que continue o seu esforço. Depois surgem nos seus olhos as primeiras notas de apreensão e a primeira indicação de complicações, depois os problemas avolumam-se até que finalmente seja tomada a decisão de chamar uma ambulância que transporte Martha para o hospital. No entretanto, o parto conclui-se e a tragédia consuma-se.

Depois deste evento segue-se o afastamento de Martha e Sean, que já começavam a atravessar momentos de frieza que o nascimento da filha deveria recompor, ou pelo menos motivar a oportunidade de religação. Eles pertencem a mundos muito diferentes, ela é uma executiva numa grande corporação, ele, um executante da construção civil na altura a empenhado na construção de uma ponte que também funciona como metáfora para a ligação entre os dois, todavia o seu temperamento truculento, vulgar e circunstancial torna-o um ser humano desprezível que nunca reuniu a aquiescência da mãe de Martha, Elizabeth (Ellen Burstyn num papel secundário com muito prestígio) que agora paga-lhe para desaparecer.

Pelo meio da história são ainda conhecidos outros factos que compõem o desenlace deste casal, cuja primeira hora deixa marcas contundentes pelo seu realismo. Toda a história gira em torno de Martha, das suas decisões e dos seus atos terminando na barra do tribunal em que Elizabeth pretende culpar Eva pela morte da neta. Mais uma vez uma decisão de Martha desencadeia o twist final da história que nos prende por 126 minutos sem todavia nos cansar. Recomendo, está disponível na plataforma Netflix desde 7 de janeiro.

Classificação: 7,5 numa escala de 10

 

22 de setembro de 2020

Opinião – “Sempre o Diabo” de António Campos

Sinopse

Em Knockemstiff, no Ohio e nas redondezas, estranhas personagens - um falso pregador (Robert Pattinson), um casal de assassinos em série (Jason Clarke e Riley Keough) e um xerife corrupto (Sebastian Stan) - convergem em torno do jovem Arvin Russell (Tom Holland) enquanto ele luta contra as forças do mal que o ameaçam a ele e à sua família. Passado entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da guerra do Vietname, o filme do realizador António Campos, apresenta um cenário ao mesmo tempo horrendo e sedutor que opõe justos e corrompidos. Adaptado do romance de Donald Ray Pollock.

Opinião por Artur Neves

A história deste filme adaptada do romance de Donald Ray Pollock, de 2011, com o mesmo nome, que também faz de narrador da acção, mostra-nos a vida da américa rural depois da guerra com o Japão em 1957, da qual o pai do protagonista Willard Russell (Bill Skarsgård) nos há-de apresentar memórias aterradoras de uma vida implacável, ornamentada de crueldade e miséria que serve de base e formação do seu filho Arvin Russell (Tom Holland) que nunca se libertará do sacrifício do seu cão Jack morto pelo seu pai como moeda de troca para Deus lhe conceder a ressurreição da sua mãe Charlotte (Haley Bennett) vitimada por um cancro sem cura. Todavia como ela inevitavelmente morre, ele tira a sua própria vida pelo insucesso da sua esperança num Deus misericordioso, que imprime em Arvin a noção elementar de acção - consequência.

Muitos outros males provocados por um Diabo omnipresente vão-se seguir ao longo dos 138 minutos deste filme, numa ladainha de horrores que mostram o mal como um veneno infiltrado na vida de todos os personagens, veiculado por uma fé cega em que se baseia a prática da sua religião, seja por zelo piedoso ou por pura perversão ancorada na ignorância e na vida limitada dos seus praticantes.

O realizador de origem latino-americana, nascido em Nova Iorque e autor do argumento em parceria como seu irmão Paulo Campos, mostra-nos que o mal está em todo o lado e sobrevive em todas as comunidades, transportado por hospedeiros humanos, desde que estes se disponham a disseminá-lo sobre o manto diáfano da fé num Deus castrador e impositivo, desde que a sua vontade não seja obedecida em conformidade com os cânones sociais que os divulgam.

“Sempre o Diabo” (The Devil all the Time no original) compõe-se assim de um conjunto de pessoas horríveis, ligadas pela fé, fazendo coisas terríveis uns aos outros para provar que a raça humana é a única que espalha o mal em torno de si própria sem qualquer razão para lá da sua vontade e interesse. Não quero revelar os personagens criados no filme porque cada um apresenta uma especificidade da maldade que exibe, mas estão todos bem conseguidos, credíveis e recriam o modelo gótico da sociedade sulista dos USA, sem subtilezas e acompanhados nos seus atos por canções pop vintage generalizadamente inocentes que se tem tornado frequente nos trabalhos recentes de David Lynch e Quentin Tarantino como pano de fundo para a violência mostrada.

Cedo, percebemos que o principal tema do filme é a religião, qualquer religião que promova o fanatismo pelas suas premissas, em semelhança com o fanatismo clubista no sentido de quem não está por nós está contra nós. É a negação da equidade e da tolerância através da vida quotidiana de três famílias influenciadas pela devoção cega numa crença que influencia todos os personagens ficando condenados a repetir os erros dos seus antepassados, por muito que se afastem dessa linha de comportamento.

O argumento é bom, graças à obra que lhe está na origem e se a narração de Donald Ray Pollock está adequada ao que as imagens não podem transmitir, conferindo-lhe engenho narrativo na maior parte do tempo, outras situações há em que Pollock antecipa o que posteriormente se irá ver, lamentando-se aqui que o benefício literário da sua exposição se transforme num inconveniente, porque no campo audiovisual as imagens não precisam do anúncio da sua exposição.

Contas feitas este é um filme da Netflix ao nível de “O Irlandês” “A História de um Casamento” ou mesmo “Joker” embora com significativas diferenças de contexto para este. Bem construído, convincente e bem interpretado está disponível na plataforma desde 16 de Setembro. Recomendo sem reservas.

Classificação: 8 numa escala de 10

 

17 de junho de 2020

Opinião – “Irmãos de Armas” de Spike Lee


Sinopse

Do vencedor do Oscar, chega uma nova história oportuna e chocante de quatro veteranos afro-americanos; Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis) e Melvin (Isiah Whitlock, Jr.) que retornam ao Vietnam alegadamente, para procurar os restos mortais do seu líder de esquadrão caído em combate, Stormin Norman (Chadwick Boseman) e a promessa de recuperar o tesouro enterrado por eles na sequência da queda do avião que o transportava. Os nossos heróis são acompanhados pelo filho preocupado de Paul, David (Jonathan Majors), que os promete ajudar na força de combate entre o homem e a natureza, enquanto são confrontados pelos estragos duradouros, físicos e emocionais, da imoralidade e irracionalidade da guerra do Vietnam.

Opinião por Artur Neves

Com uma oportunidade digna de nota Spike Lee apresenta-nos um filme que resgata a participação dos negros americanos na guerra do Vietnam, numa altura das mais intensas manifestações anti racistas nos USA na sequência do assassinato do afro americano George Floyd às mãos (literalmente; sob o joelho) de um polícia de Mineápolis no dia 25 de maio de 2020. Este facto conduz a que este filme relembre a participação dessa população no conflito que traumatizou a América nos anos 60 e questiona a definição e o conceito de “supremacia branca”, e de “verdadeiros americanos”, quando homens e mulheres negras continuam a servir e a morrer pelo país noutros conflitos ao redor do mundo.

Com o resumo da história descrito na sinopse o filme começa com imagens reais de conflitos raciais anteriores, tal como a declaração de Muhammed Ali em 1978 de que “os vietcongs eram menos racistas do que o povo do seu próprio país” e que lhe custou o prémio de campeão de pesos pesados, seguindo com outras manifestações de protesto conhecidas à época e terminando com a morte de Martin Luther King Jr, como ensaio político sobre a violência histórica que a história pretende documentar.

Dos quatro amigos que se encontram na atual cidade de Ho Chi Minh, Saigão, cada um apresenta uma personalidade particular bem definida em que; Paul é um fervoroso adepto de Trump, Otis, o mais sério e responsável de todos, controla a aventura, Eddie, um empresário de sucesso (que posteriormente saberemos que não é bem assim) rico e gastador e Melvin que se apresenta como o mais apagado e indefinido de todos, constituem uma equipa de “irmãos de armas” cujas diferenças se vão acentuando ao longo da história de 154 minutos que não se sente tédio ao passar, decorrente da sua movimentada ação, sempre mostrando um frémito de energia e surpresa em cenas de elevado dramatismo.

O encontro entre os veteranos de guerra é de descontração, amizade e recordação à mesa de um bar chamado Apocalipse Now que nos trás memórias e sugere traumas. É o cinema a alimentar o cinema que só os bons realizadores sabem utilizar.

Os sucessivos eventos da história vão sendo apresentados tecendo uma intriga de textura multivariada de diálogos, gestos, atitudes e propósitos objetivos inconfessáveis, pondo em destaque a competência de Spike Lee para a ilustração de assuntos difíceis, já demonstrada nesse outro filme que também aborda o tema do racismo; “BlackKklansman” de 2018, em que os elementos de controvérsia política estão intrinsecamente unidos no diálogo entre a população de uma cidade e sua polícia local.

Com o desenrolar da ação vai-se tornando difícil distinguir a ironia entre amigos, da lealdade castrense e dos objetivos individuais que lentamente vão revelando a sua verdadeira natureza, graças aos extraordinários atores que desempenham personagens credíveis em fervor de conflitos e nuances de comportamento, manifestamente inspirados pelo sóbrio argumento escrito por Lee e Kevin Willmott, que nos trás outra leitura da guerra do Vietnam que nunca tinha sido abordada até agora, com muitas referencias explicitas ao legado americano em Saigão, tais como, os estabelecimentos de fast food, Pizza Hut, Rambo ou Chuck Norris como heróis remanescentes de uma guerra inútil.

“Da 5 Bloods” no título original, é uma experiência ainda desagradável da guerra do Vietnam que contém comédia, dor, morte e ganancia, como se uma guerra nunca terminasse depois de começada. Também tem alegoria à santidade, com a aparição do falecido Stormin 'Norman que perdoa Paul pela sua morte, como Cristo aos fariseus, mas fundamentalmente oferece-nos uma justificação condenatória sobre a relação entre racismo e guerra, com uma paixão alucinada de imagens e ideias fortes. Muito bom, recomendo.

Atualmente só pode ser visto na plataforma Netflix desde 12 de Junho.

Classificação: 8,5 numa escala de 10