31 de janeiro de 2019

Opinião – “A Favorita” de Yorgos Lanthimos


Sinopse

Início do século XVIII, Inglaterra está em guerra com França. No entanto as corridas de patos continuam a prosperar e comem-se ananases ostensivamente. Uma frágil rainha Anne (Olivia Colman) ocupa o trono e a sua amiga mais próxima, Lady Sarah (Rachel Weisz), governa o país por ela e ao mesmo tempo cuida da saúde precária de Anne e gere o seu temperamento imprevisível. Quando a nova criada Abigail (Emma Stone) chega, o seu charme conquista Sarah que leva Abigail sob a sua asa e Abigail vê aqui uma oportunidade de voltar às suas raízes aristocráticas. Como a guerra acaba por consumir bastante o tempo de Sarah, Abigail entra em cena subtilmente para assumir o papel de dama de companhia da rainha. Esta ascendente amizade dá-lhe assim a hipótese de cumprir as suas ambições, não deixando nenhuma mulher, homem, político ou coelho ficar no seu caminho.

Opinião por Artur Neves

Durante muitos anos quiseram divulgar a ideia do comportamento impoluto das monarquias e dos seus representantes, reis ou rainhas, que governaram a Europa até aos nossos dias, publicitando uma imagem incorreta de lisura, perfeição e sabedoria em todos os seus atos de governo e pessoais. Os livros da escola pintaram as monarquias com cores de luxo e de circunstância e condicionaram a nossa imagem desses tempos a um conjunto de datas e de factos descontextualizados da verdade vivida.
Felizmente isso hoje já é passado e o realizador grego que vive em Londres; Yorgos Lanthimos, que tem no seu curriculum “Canino” (2009) e “A Lagosta” (2015), sobre deficiências humanas, apresenta-nos uma versão da realidade dos factos históricos neste excelente filme; “A Favorita”, sobre o reinado de Anna Stuart da Grã-Bretanha que foi rainha de Inglaterra, Escócia e Irlanda entre 8 de Março de 1702 e 1 de Agosto de 1714 e responsável pela união entre a Inglaterra e a Escócia.
De acordo com a história resumida na sinopse anterior, Lanthimos mostra-nos o interior da monarquia, as suas grandezas e misérias, (mais das segundas e menos das primeiras) pintando-nos um fresco de uma época que perdurará largo tempo na nossa memória e nos conduzirá e reflexões sobre o que foi e o que é, a organização social em que nos inserimos, para lá dos escandalosos desmandos da política atual em que podemos concluir que o mal já vem de longe, de muito longe mesmo...
O ambiente da ação criado no interior do palácio real, é filmado com lentes de deformação e iluminação por velas, de forma a criar os recônditos escuros e sombrios em ângulos surpreendentes. A decoração é barroca e pesada de forma a ocultar o triângulo amoroso de cariz sexual entre a rainha, Sarah e Abigail que se esforça entre a intriga, a denúncia e o mexerico, a expulsar Sarah para ocupar o seu lugar. Para atingir esse objetivo ela faz tudo, até tentativa de homicídio.
A rainha, auto piedosa, particularmente doente com variadas maleitas que lhe motivam a mobilidade no interior do palácio em cadeira de rodas, é excêntrica, neurótica e patética, incapaz para os assuntos de estado, precisa do amparo de Sarah, embora no seu espírito exista capacidade pensante. Neste personagem Olivia Colman está verdadeiramente sublime.
A vida na corte de Anna é povoada por exemplares excêntricos, vaidosos, demasiadamente pintados, com cabeleiras irreais executando passatempos frívolos, tais como, corridas de patos e atirando frutas podres a comparsas nus. Todas as suas atividades incluem conotações sexuais viciosas. A política de estado resume-se á obtenção de vantagens. Recomendo vivamente, é um filme imperdível, não é admiração ganhar o oscar.

Classificação: 9,5 numa escala de 10

24 de janeiro de 2019

Opinião – “A Casa de Jack” de Lars von Trier


Sinopse

Estados Unidos da América, anos 70. Seguimos o inteligentíssimo Jack ao longo de 12 anos e presenciamos os crimes que o definem como um assassino em série. A sua história é-nos apresentada pelo próprio Jack, sendo cada crime pensado como uma obra de arte. À medida que a polícia se aproxima, Jack arrisca-se cada vez mais, tentando criar a sua obra-prima. “A Casa de Jack” é uma história negra e sinistra, mas apresentada como um conto filosófico com laivos de humor.

Opinião por Artur Neves

Lars von Trier, realizador Dinamarquês nascido em Copenhaga há sessenta e dois anos, nunca foi um realizador de histórias lineares e diretas. Lembremo-nos de “Ondas de Paixão” (1993), “Dogville” (2003) ou “Melancolia” (2009) onde a metáfora ocupa lugar de destaque no argumento. Também neste filme se discute em forma de metáfora o artista e a sua criação, embora aqui se trate da criação da morte e dos demónios do seu criador que sofre de esquizofrenia e de surtos obsessivos-compulsivos que o norteiam em todos os seus atos.
Quando foi estreado em Cannes, o filme foi alvo de forte crítica negativa pelas cenas de morte que inclui, ao que eu discordo frontalmente, pois não apresentam mais violência explicita do que pode ver-se em filmes de aventura ou em algumas séries de TV atuais e também porque a violência neste filme não é um fim em si mesmo, um objectivo, mas apenas o princípio da discussão sobre a sua forma e os seus motivos pelo seu autor, que relata a sua prática de mortes desde a sua juventude a Virgílio, autor da Eneida, conferindo á história um pendor literário semelhante à “Divina Comédia” de Dante, onde Virgílio também é citado.
Jack é um prevaricador das regras de convivência social desde os tempos de juventude em que deliberadamente provocava o mal, sem contudo ter sido alguma vez castigado por isso. Essa situação, aliada a distúrbios mentais que se foram agravando com a idade, levam-no à concretização de atos tenebrosos apenas por falta de empatia casual com a sua vítima e à consequente morte quase por mero acidente e repetem-se compulsivamente como um vício.
Os crimes que vemos no filme são contra mulheres, apenas porque se julga com razão para isso e porque atribui às vítimas a culpa dos seus atos. Uma mulher, que lhe pede ajuda na estrada é atacada por reclamar demais, a seguinte é apenas por demonstrar um grau de ignorância que ele não suporta, a terceira pela ingenuidade demonstrada no relacionamento com ele próprio. Ele castiga-as com a morte pelas suas características, assumindo que as está punindo pelas suas falhas, cumprindo uma função divina que lhe permitirá escapar sem ser condenado, como sempre aconteceu no passado aliás.
A casa, referida no título, nunca chega a ser construída, porque ele a destrói antes de a acabar e serve de metáfora para a compulsão dos ataques às suas vítimas, numa sequência contínua de crimes que nunca acabará, porque haverá sempre necessidade de punir novas culpadas. Ele leva as mortes ao extremo de fotografar os cadáveres em poses artísticas para que possam ser considerados obras de arte, tal como a modificação da natureza, numa pintura ou num livro é reconhecido como um ato artístico. Se assim acontece em relação á natureza, porque não em relação á morte, que ele se esforça por mostrar.
“A Casa de Jack” inclui um suspense eficiente e uma sátira mordaz em relação a todas as citações literárias entre Jack e Virgílio, que não se cansam de trocar razões filosoficamente justificadas num argumento complexo que pode deixar o espetador algo saturado com a abordagem de tantos assuntos exógenos ao núcleo central do filme. Todavia isso não é um defeito, mas antes uma característica do filme e do seu realizador, preocupado em discutir a banalização do mal. Recomendo, como exercício ensaístico.

Classificação: 7 numa escala de 10

23 de janeiro de 2019

Opinião – “Destroyer: Ajuste de Contas” de Karyn Kusama


Sinopse

Destroyer: Ajuste de Contas, narra a odisseia moral e existencialista do detetive da polícia de Los Angeles Erin Bell (Nicole Kidman) que, enquanto jovem polícia, foi infiltrada num gangue no deserto da Califórnia, um caso que resultou em trágicas consequências. Quando o líder desse gangue reaparece muitos anos depois, Erin vai ter de lidar com a história que tem com os remanescentes membros do gangue, para poder finalmente acertar contas com os demónios que lhe destruíram o passado.

Opinião por Artur Neves

É impressionante a transformação operada em Nicole Kidman para o desempenho do personagem sombriamente fascinante desta história. A atriz possui um corpo naturalmente magro, mas aqui foi submetida a uma transformação de tal ordem radical, que associado ao desempenho inerente do personagem, o que vemos é um perfeito fantasma, de andar trôpego e porte andrajoso que se arrasta num penoso sacrifício físico em todas as cenas no presente atual da história.
Trata-se de um mulher profundamente destruída e corroída pelo arrependimento das opções anteriormente tomadas que agora procura a redenção a qualquer custo sem qualquer cuidado consigo própria e somente focada no castigo de quem lhe causou tanto mal, todavia, não a move somente a vingança, mas também um profundo sentimento de justiça para que outros não sofram como ela e de alguma maneira possa obter a expiação de culpas que ela não enjeita.
Como se pode inferir pela leitura da sinopse anterior trata-se de uma história de polícias infiltrados numa quadrilha de ladrões, para arranjar provas que os incriminem dos assaltos, se possível em flagrante delito. Não se pode dizer que se trata de um tema inédito, mas a apresentação dos factos e a montagem realizada pelo editor do filme, transformam uma história simples num enredo que nos prende durante toda a ação.
Não se trata somente da inserção de flashback dos eventos para se compreender a trama, mas sim de uma montagem que liga o presente aos factos passados em que eles ocorreram de forma dar-lhes consistência e justificação, para que o espetador menos versado nas diatribes do espetáculo cinematográfico não perca qualquer facto importante da história, transformando assim um argumento banal, (se os factos fosse apresentados sequencialmente no tempo) num thriller de suspense que nos agarra à ação desde a primeira imagem.
A realizadora Karyn Kusama de origem Japonesa nascida nos USA não apresenta no seu curriculum algo que nos fique particularmente na memória. Talvez, “The Invitation”, 2015, não estreado em Portugal, seja a sua referência mais significativa, mas com esta realização apresenta potencial para voos mais amplos no género em que esta história se insere.
Mais uma vez, como já tenho referido nestas crónicas, este é mais um filme em que o herói é uma mulher que utiliza o estoicismo, a angústia e a capacidade de sofrimento anteriormente confiada a personagens masculinos. Não é que isso contenha qualquer mal, apenas assinalo aqui o sublinhado de mais uma demonstração da crescente tendência do cinema internacional.

Classificação: 7 numa escala de 10

22 de janeiro de 2019

Opinião – “Á Porta da Eternidade” de Julian Schnabel


Sinopse

Desconsiderado e desprezado pelos seus colegas artistas e todos quantos o rodeiam, mas sempre crente que pintar é a sua vida, Vincent parte de Paris, cidade cinzenta, rumo a sul (Arles), onde o sol dita as paisagens. Através da sua pintura acredita conseguir criar uma nova visão, mostrar o mundo como o vê. A amizade com Paul Gaugin, o também pintor e seu amigo próximo, e o amor incondicional de Theo, o seu irmão e maior apoiante, encorajam-no a continuar contra tudo e todos. Mas quando Gaugin se afasta de Vincent por o achar avassalador e incompatível consigo, ele perde o chão e entra numa espiral de loucura. Uma viagem pelos últimos meses de vida do Van Gogh, pelo reconhecido realizador Julian Schnabel, também ele, pintor e artista.

Opinião por Artur Neves

Não é preciso muito tempo de visionamento, nem muita atenção para nos encantarmos com mais um filme sobre Vincent Van Gogh, magistralmente interpretado por Willem Dafoe, no corpo de um personagem particularmente adaptado ao corpo e à figura do seu intérprete, não sendo estranho portanto a sua nomeação para o Oscar com base neste filme.
Julian Schnabel, realizador americano de origem Alemã, mostra-nos assim, em demorados close-ups dos olhos do ator, a profundidade da visão do pintor sobre os assuntos que ele pinta, sentindo o que pinta para lá do que vê e simultaneamente, convidando-nos a tentar “ver” pelos olhos do pintor o que ele sente e que posteriormente põe na tela, acrescentando cor ao que sentiu e assim nos mostrar uma realidade transformada pela emoção dos seus sentidos.
O elemento mais distintivo deste filme relativamente aos seus antecessores, tais como; “A Vida Apaixonada de Van Gogh” de 1956, “Vincente and Theo” de 1990, bem como o mais recente; “A Paixão de Van Gogh de 2017 é a intensidade dos sentimentos expostos, do pintor perante a natureza, a eternidade, a sua intimidade e o amor fraterno com seu dedicado irmão Theo (Rupert Friend) transmitindo simultaneamente dor e afeição, bem como a sua ligação de amizade a Paul Gaugin (Oscar Isaac), filmada com uma minucia fotográfica, como se através da câmara e da fotografia de Benoit Delhorm fosse possível investigar as suas ideias.
Como todos os génios, Van Gogh não é reconhecido em vida pelo que não será estranha a frase premonitória em que ele responde ao padre que o questiona; “Talvez Deus me tenha feito pintor para gente que ainda não nasceu”. Num bar da sua cidade um taberneiro rasga um conjunto de obras expostas numa parede, que hoje são preciosidades do autor muito apreciadas por todo o mundo.
A abordagem sobre a vida de Van Gogh que nos traz este filme, inclui também a ambiência caraterística da terra onde viveu, Arles, sul de França, através da profusão de lugares e de situações quotidianas usadas como modelo pelo pintor e que foram eternamente fixadas nas suas obras atualmente expostas em museus do mundo, dando-nos a sensação, entre o nosso reconhecimento e a indiferença da época, que plantou sementes de cujos frutos nunca beneficiou numa obra que lança um feitiço magnético em todos os que se detêm a apreciá-la. Muito interessante, recomendo como sendo 112 minutos de bálsamo para o espírito.

Classificação: 8 numa escala de 10

21 de janeiro de 2019

Opinião – “Serenidade” de Steven Knight


Sinopse

Da mente criativa do realizador e argumentista nomeado para um Óscar Steven Knight, chega SERENIDADE, um thriller ousadamente original, sexy e estilizado.
Baker Dill (Matthew McConaughey) é o capitão de um barco de pesca que passeia grupos de turistas pelo tranquilo enclave tropical conhecido como Plymouth Island. A vida tranquila que leva é despedaçada no momento em que a sua ex-mulher Karen (Anne Hathaway) o encontra e faz um apelo desesperado por ajuda. Karen suplica para que Dill a salve, bem como ao filho de ambos, das garras do seu novo e muito violento marido (Jason Clarke), levando-o numa excursão de pesca apenas para o atirar aos tubarões e deixa-lo à morte. O reaparecimento de Karen força Dill a regressar a uma vida que tinha tentado esquecer e, enquanto se debate sobre o certo e o errado, a mergulhar numa nova realidade onde nem tudo é o que aparenta.

Opinião por Artur Neves

Da leitura desta sinopse poderíamos inferir tratar-se de um thriller passional mais ou menos comum na cinematografia norte americana e de facto assim é, no aspeto do desenrolar da história e dos eventos que nos são apresentados na tela, todavia a história apresenta um twist conceptual que baralha o tempo, o lugar e o autor em que os eventos se verificam transferindo este filme para o domínio do fantástico.
Tudo o que vemos, acontece noutra dimensão e noutra realidade que lentamente nos vai sendo apresentada, embora de modo tão incipiente que ao princípio não nos damos conta nem consideramos como relevante a informação que nos é prestada. A dúvida começa a surgir, quando na realidade que vemos, alguns factos soam a estranho e, por outro lado, essa realidade apresenta-se tão pacata, tão certinha, tão naïf, que no nosso espírito começa a surgir a dúvida sobre o que estamos realmente a ver.
Steven Knight, realizador Inglês e autor do argumento já nos surpreendeu noutras boas realizações no passado, tais como; “Estranhos de Passagem” em 2002 ou esse portentoso filme “Locke”, em 2013, (totalmente passado ao volante duma viagem de automóvel que lançou definitivamente a carreira de Tom Hardy), com histórias aparentemente simples, apresentadas como que voltadas para um espelho onde a sua imagem refletida não corresponde á que vemos no “original”, que assim, se torna uma verdadeira ficção dentro do real.
Matthew McConaughey, Anne Hathaway e Diane Lane estão bem nas personagens que desempenham, principalmente o primeiro, que no desvario da sua obsessão e na truculência do seu relacionamento com os outros, nos mostra um homem perturbado e simultaneamente frágil pelo fracasso da sua vida. As senhoras estão igualmente bem, representando a primeira a tentação e a segunda, o “descanso do guerreiro” e a paz a que ele não pode aceder.
Não será um filme extraordinário, mas com uma realização segura, um argumento insinuante de interpretação indireta e um desempenho de atores muito agradável, corporiza 106 minutos de interesse e bom espetáculo, pela novidade introduzida numa história velha como o tempo.

Classificação: 6 numa escala de 10

15 de janeiro de 2019

Opinião – “Debaixo do Céu” de Nicholas Oulman


Sinopse

Nicholas Oulman é de origem judaica e em Debaixo do Céu dá voz a vários sobreviventes (hoje com cerca de oitenta anos), que aquando da ascensão de Hitler e da perseguição aos judeus, lograram deixar Berlim e rumaram a Sul. Para estes refugiados, Portugal foi um porto seguro, um porto de esperança a caminho de um recomeço, enquanto circulavam notícias do horror dos campos de concentração.
Debaixo do Céu é composto inteiramente por imagens de arquivo, que ilustram os testemunhos e são imagens preciosas para compreender um período negro da História.
Com esta estreia, assinalamos os 80 anos sobre o início da II Guerra e o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto (que se celebra a 27 de Janeiro).

Opinião por Artur Neves

Para que a memória não se apague este é um documentário do horror que foi a Segunda Guerra Mundial, nomeadamente no que concerne à tentativa de extermínio do povo Judeu de forma a apagá-lo da história e do mundo. Muitos outros documentos já foram feitos com o mesmo intuito, com maiores ou menores meios de cinema, com mais ou menos violência, que de alguma forma já nos mostrou, pelo menos ao nosso coletivo como humanidade as reais intenções de Hitler como o orientador máximo desse delírio de morte.
Neste filme porém, mostra-se o pormenor, o drama individual contado pelas próprias vítimas (Eva Arond, Lolita Goldstein, Fred Manasse, Pedro Kalb, Ginette Horowitz, Sylvain Bromberger, Henny Porter) sobre como foram esses dias de horror e como o medo, que ainda hoje embarga as suas vozes ao recordá-lo e lhes provoca alteração do ritmo cardíaco ao reviver a aventura da fuga, a tenacidade da esperança e, por vezes, o acaso que os protegeu de serem denunciados.
A realização socorreu-se de fragmentos de filmes da época, fotografias, por vezes dos próprios intervenientes, que ilustra de forma magistral o tempo e a época em que tudo se passou e o que sofreram até ao dia em que, com esforço, conseguem revisitar esses tempos de horror e o medo que sentiram ao vivê-lo, induzindo no espetador uma semelhança de sentimentos pelos relatos de cada descrição a que assistimos, deixando formar-se uma identificação com a vítima e revivendo com ela as suas emoções.
Representa ainda um fabuloso trabalho de pesquisa em bibliotecas e repositórios da memória em todo o mundo com particular destaque para os Estados Unidos da América, destino preferido para estes refugiados, Paris, Madrid e Lisboa onde encontraram ainda que por um breve tempo de transição, o sol, o azul do mar e a paz necessária para preparar a grande aventura das suas vidas e que por isso nos estão muito agradecidos.
A memória é determinante para a construção do futuro e nos tempos conturbados que atravessamos em que os nacionalismos pululam pela Europa mostrando de novo a sua face intransigente para princípios e credos que julgávamos eliminados da civilização que construímos nestes setenta anos de sucesso e paz social no continente Europeu, este filme é um documento importante e de divulgação urgente.

Classificação: 8 numa escala de 10

10 de janeiro de 2019

Opinião – “Glass” de M. Night Shyamalan


Sinopse

M. Night Shyamalan junta as narrativas de dois dos seus maiores sucessos originais – “O Protegido” (2000) e “Fragmentado” (2016) – num novo e explosivo thriller assente na banda-desenhada Glass. Bruce Willis regressa com a sua personagem de “O Protegido”, David Dunn, assim como Samuel L. Jackson no papel de Elijah Price, também conhecido pelo seu pseudónimo, Mr. Glass. De “Fragmentado” junta-se James McAvoy, na pele de Kevin Wendell Crumb e as suas múltiplas personalidades, e Anya Taylor-Joy enquanto Casey Cooke, a única sobrevivente de A Besta. Após o final de “Fragmentado”, “Glass” começa com Dunn a perseguir a figura super-humana de A Besta, numa série de encontros desenfreados, enquanto a presença sombria de Price emerge, com segredos escuros de ambos.

Opinião por Artur Neves

Tal como descrito na sinopse anterior M. Night Shymalan, realizador Indiano radicado nos USA, Pennsylvania e autor do argumento de “O Sexto Sentido” que lhe deu notoriedade e motivou a sua entrada na realização apresenta-nos agora este thriller recheado de intensas representações de Kevin Wendell Crumb (James McAvoy) e de David Nunn (Bruce Willis) na pele de personagens já anteriormente criadas em filmes seus de sucesso.
Nesta história, questiona-se com alguma propriedade, a “existência” tão propalada pela Marvel, de super-heróis especializados em tarefas específicas e que ao atuarem em conjunto se tornam invencíveis. E se realmente nós tivéssemos, sem conscientemente nos apercebermos, a capacidade de desenvolver e utilizar forças que estão para além da compressão humana?
A questão é levantada como sendo conduzida por uma investigadora de um hospital psiquiátrico que captura Kevin, (perturbado com as suas vinte e quatro personalidades), David (possuidor de uma força sobre humana e que na altura perseguia Kevin como sendo “A Besta”) e Mr. Glass (Samuel L. Jakson, que sofre de uma doença incurável que lhe provoca ossos fracos e quebradiços como vidro, mas é detentor de uma capacidade mental superior que compensa a sua inferioridade).
No desenvolvimento da história as personagens são-nos apresentadas na sua atividade normal, embora reportando-as às suas origens em que David, o vigilante da cidade procura e encontra A Besta, (Kevin) na continuação dos seus crimes de sequestro, num encontro a todos os níveis espetaculares e emocionante até ser capturado e reunido no hospital com Mr. Glass que conseguirá controlar o que de mais poderoso cada um dos dois possui para provar no final que eles só são poderosos até ao ponto que organização secreta que governa o mundo permitir.
“Glass” está bem conseguido, é criativo, bem filmado e tem cenas de forte emoção, não só pela violência da representação como a presença do elemento controlador de A Besta, na figura da única vítima de sequestro sobrevivente, Casey Cooke (Anya Taylor-Joy) porque compreendeu a sua natureza demente e respondeu á violência com amor, como esta nunca tinha experimentado, única forma de apaziguar a violência mórbida da Besta.
Todavia, Shymalan arrasta a pergunta sobre a existência dos super-heróis sem contudo lhe dar uma resposta ou uma escapatória à pergunta de forma a não ter de responder, fundamenta-se na banda desenhada e não apresenta um clímax que passasse para o espetador a responsabilidade da resposta. O filme está bem feito e é interessante, até por continuar postulados anteriores, mas para mim, “O Sexto Sentido” de 1999, continua a ser o melhor filme de Shymalan.

Classificação: 7 numa escala de 10

7 de janeiro de 2019

Opinião – “Escape Room” de Adam Robitel


Sinopse

Escape Room é um thriller psicológico sobre seis estranhos que se encontram em circunstâncias fora do seu controlo e que devem usar toda a sua astúcia para encontrar as pistas… ou morrer.

Opinião por Artur Neves

Poderíamos pensar que “Saw” com todas as suas sequelas e versões em 3D teriam esgotado o assunto de que este filme se serve para nos pôr a saltar da cadeira e a torcer por esta ou aquela ação, o que não acontece, porque a história apresenta um fio condutor coerente que muito me apraz registar, num exercício destinado a tirar-nos do sério enquanto dura.
O início é completamente intrigante com as cenas que nos apresentam sobre uma fuga impossível mas que iremos compreender ao longo da história que se desenrola em torno dos 6 desconhecidos que são convidados para um desafio que não lhes é explicado nem informado acerca do seu desenvolvimento.
Curiosamente dentro de um argumento generalizadamente conhecido, este filme não se caracteriza pelo choque que outros tentam provocar no espetador através de mortes violentas, com muito sangue em cenas de crueldade, mas antes através do suspense causado pela busca de uma solução para um enigma. Pena é que não haja tempo para que o espectador seja igualmente “convidado” a participar na descoberta através de mais dados e mais tempo conferidos a cada enigma.
Ao ritmo da sucessão dos eventos que lhes são apresentados, eles vão-se apercebendo que estão em presença de um jogo de morte e começam a surgir naturais divergências entre eles, particularmente quando começam a compreender que o autor do jogo é alguém que os conhece bem, ao nível de acontecimentos passados experimentados por eles, onde o facto de serem de alguma forma sobreviventes, não lhes confere qualquer estatuto edificante que lhes granjeie a confiança dos outros.
Adam Robitel, realizador americano nascido em Boston em 1978, responsável por outros filmes de suspense, tais como: “A Possessão” em 2015 e “Insídius: A Ultima Chave” em 2018, já comentado neste blog, traz-nos desta vez uma história implacável mas menos sádica, permitindo através de confissões dos personagens conferir um sentido às “provas” a que são sujeitos e assim envolver toda a ação num ambiente de susto e de medo, mas também heroísmo e generosidade raramente encontrados em filmes deste género.
Todavia é uma história que se esgota no tempo da sua apresentação pouco ficando para lá da contagem dos mortos e dos sobreviventes. Robitel porém, promete-nos mais, pois no final uma sequela se perfila no horizonte para dar resposta a alguns elementos da história que ficam pendentes e até poderá ser bem aceite se cumprir o formalismo agora apresentado. A experiência porém, diz-nos que não é bem assim, esperemos que Adam Robitel nos surpreenda também nesse aspeto.

Classificação: 6 numa escala de 10

3 de janeiro de 2019

Opinião – “AXL: Uma Amizade Extraordinária” de Oliver Daly


Sinopse

A.X.L. é um cão robótico ultra-secreto criado pelo exército para ajudar a proteger os soldados do futuro. O nome de código atribuído pelos cientistas que o criaram significa Ataque, Exploração e Logística, e representa a mais avançada geração de inteligência artificial. Depois de uma experiência falhada, A.X.L. é encontrado no deserto por um viajante chamado Miles (Alex Neustaedter), que cria uma ligação com ele após ativar a sua tecnologia de emparelhamento. Juntos, criam uma amizade especial. A.X.L. ajuda Miles a ganhar a confiança que lhe falta e faz tudo para proteger o seu novo companheiro, enfrentando os cientistas que querem recuperá-lo a todo o custo. Sabendo o que está em jogo se A.X.L. for capturado, Miles alia-se a Sara (Becky G) para proteger o seu novo melhor amigo.

Opinião por Artur Neves

A história até é comum entre um rapaz que gosta de andar de praticar motocross, a sua potencial namorada num convencional romance para a vida (todavia sempre dependente da interpretação dos olhos que o vêm) o rival que também pretende conquistar a menina (nestas histórias um triangulo fica sempre bem) e o seu cão… fiel… só que aqui é que muda tudo.
O cão é um dispositivo robótico munido de inteligência artificial, programado como arma de guerra letal, mas que por abandono dos seus criadores num cemitério de contentores e de automóveis, desenvolve “sentimentos” de fidelidade e obediência ao menino que o encontrou e de alguma maneira o “consertou” com algumas peças da sua mota, também ela parcialmente destruída por razões que o leitor saberá se tiver paciência para gastar tempo com filmes destes.
Só me ocorre dizer é que a Netflix teria feito melhor se fosse dar banho ao cão em vez de nos apresentar histórias destas que de ficção estão bem... pois isto é ficção pura, científica nem por isso, porque os “cientistas” que produziram o cão são mais do tipo rockeiro do que homens de ciência e misturar temas tão díspares como o amor e a inteligência artificial numa história indigente e forçadamente lamecha não constitui qualquer serviço de mérito que se preste ao cinema.
Não obstante podem apreciar-se algumas cenas de motocross de antologia que divertirá os aficionados, todavia, nada que o YouTube não mostre gratuitamente e durante mais tempo… mas enfim os adeptos da modalidade vão encontrar aí alguns motivos de interesse. Em tudo o resto é o vazio completo, sem rasgo, sem imaginação, sem consistência, sem sequer faltar a submissão da menina ao rival do amor seu coração, por viver de favor com a mãe na casa deste, numa clara evocação da “coitadinha” dos tempos coloniais, ou dos tempos de Trumpismo que os USA atravessam, fica à escolha do leitor.
Só me resta recomendar que vão todos dar banho ao cão e molhem-se com ele para refrescar as ideias. A classificação vai para os efeitos especiais que são independentes de quem os utiliza.

Classificação: 3 numa escala de 10