22 de setembro de 2020

Opinião – “Sempre o Diabo” de António Campos

Sinopse

Em Knockemstiff, no Ohio e nas redondezas, estranhas personagens - um falso pregador (Robert Pattinson), um casal de assassinos em série (Jason Clarke e Riley Keough) e um xerife corrupto (Sebastian Stan) - convergem em torno do jovem Arvin Russell (Tom Holland) enquanto ele luta contra as forças do mal que o ameaçam a ele e à sua família. Passado entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da guerra do Vietname, o filme do realizador António Campos, apresenta um cenário ao mesmo tempo horrendo e sedutor que opõe justos e corrompidos. Adaptado do romance de Donald Ray Pollock.

Opinião por Artur Neves

A história deste filme adaptada do romance de Donald Ray Pollock, de 2011, com o mesmo nome, que também faz de narrador da acção, mostra-nos a vida da américa rural depois da guerra com o Japão em 1957, da qual o pai do protagonista Willard Russell (Bill Skarsgård) nos há-de apresentar memórias aterradoras de uma vida implacável, ornamentada de crueldade e miséria que serve de base e formação do seu filho Arvin Russell (Tom Holland) que nunca se libertará do sacrifício do seu cão Jack morto pelo seu pai como moeda de troca para Deus lhe conceder a ressurreição da sua mãe Charlotte (Haley Bennett) vitimada por um cancro sem cura. Todavia como ela inevitavelmente morre, ele tira a sua própria vida pelo insucesso da sua esperança num Deus misericordioso, que imprime em Arvin a noção elementar de acção - consequência.

Muitos outros males provocados por um Diabo omnipresente vão-se seguir ao longo dos 138 minutos deste filme, numa ladainha de horrores que mostram o mal como um veneno infiltrado na vida de todos os personagens, veiculado por uma fé cega em que se baseia a prática da sua religião, seja por zelo piedoso ou por pura perversão ancorada na ignorância e na vida limitada dos seus praticantes.

O realizador de origem latino-americana, nascido em Nova Iorque e autor do argumento em parceria como seu irmão Paulo Campos, mostra-nos que o mal está em todo o lado e sobrevive em todas as comunidades, transportado por hospedeiros humanos, desde que estes se disponham a disseminá-lo sobre o manto diáfano da fé num Deus castrador e impositivo, desde que a sua vontade não seja obedecida em conformidade com os cânones sociais que os divulgam.

“Sempre o Diabo” (The Devil all the Time no original) compõe-se assim de um conjunto de pessoas horríveis, ligadas pela fé, fazendo coisas terríveis uns aos outros para provar que a raça humana é a única que espalha o mal em torno de si própria sem qualquer razão para lá da sua vontade e interesse. Não quero revelar os personagens criados no filme porque cada um apresenta uma especificidade da maldade que exibe, mas estão todos bem conseguidos, credíveis e recriam o modelo gótico da sociedade sulista dos USA, sem subtilezas e acompanhados nos seus atos por canções pop vintage generalizadamente inocentes que se tem tornado frequente nos trabalhos recentes de David Lynch e Quentin Tarantino como pano de fundo para a violência mostrada.

Cedo, percebemos que o principal tema do filme é a religião, qualquer religião que promova o fanatismo pelas suas premissas, em semelhança com o fanatismo clubista no sentido de quem não está por nós está contra nós. É a negação da equidade e da tolerância através da vida quotidiana de três famílias influenciadas pela devoção cega numa crença que influencia todos os personagens ficando condenados a repetir os erros dos seus antepassados, por muito que se afastem dessa linha de comportamento.

O argumento é bom, graças à obra que lhe está na origem e se a narração de Donald Ray Pollock está adequada ao que as imagens não podem transmitir, conferindo-lhe engenho narrativo na maior parte do tempo, outras situações há em que Pollock antecipa o que posteriormente se irá ver, lamentando-se aqui que o benefício literário da sua exposição se transforme num inconveniente, porque no campo audiovisual as imagens não precisam do anúncio da sua exposição.

Contas feitas este é um filme da Netflix ao nível de “O Irlandês” “A História de um Casamento” ou mesmo “Joker” embora com significativas diferenças de contexto para este. Bem construído, convincente e bem interpretado está disponível na plataforma desde 16 de Setembro. Recomendo sem reservas.

Classificação: 8 numa escala de 10

 

Sem comentários: