29 de janeiro de 2021

Opinião – “The White Tiger” de Ramin Bahrani


 

Sinopse

Balram Halwai (Adarsh Gourav) narra sua ascensão épica e sombriamente humorística de pobre aldeão a empresário de sucesso na Índia moderna. Astuto e ambicioso, nosso jovem herói abre caminho para se tornar o motorista de Ashok (Rajkummar Rao) e Pinky (Priyanka Chopra-Jonas), que acabavam de retornar da América. A sociedade treinou Balram para ser uma coisa - um servo - então ele se torna indispensável para seus mestres ricos. Mas depois de uma noite de traição, ele percebe o quão corrupto eles são, ao ponto de o incriminar para se salvarem. À beira de perder tudo, Balram se revolta contra este sistema fraudulento e desigual para se levantar e se tornar um novo tipo de mestre. Baseado no best-seller do New York Times e no romance vencedor do Prêmio Man Booker de 2008.

Opinião por Artur Neves

A sociedade Indiana funciona num sistema de castas que significa não haver transição possível ou fácil entre os níveis sociais determinados pela origem do seu nascimento e este filme mostra-nos com clareza o efeito devastador de um tal sistema onde todas as pessoas não têm um meio de se livrar dele. Balram Halwai o protagonista da história ilustra a certa altura o sistema de castas comparando-o a um galinheiro pejado de galos e de galinhas e fechado à chave. Um dia porém a chave perde-se com o galinheiro aberto mas os animais estão tão completamente formatados à vida no galinheiro que nem mesmo com a porta aberta pensam em fugir, continuando a viver no seu interior.

A história é narrada por Balram e começa em 2010 em que ele nos conta como sendo um menino pobre no seio de uma grande família de casta baixa, em que todos trabalham para a avó numa banca de venda de chá, ascende a motorista de uma rica família de senhorios, donos da terra que a família de Balran ocupa, numa existência miserável.

Nem sempre os filmes narrados, ou a narração dos factos evidencia as questões essenciais como no caso deste filme em que Balram nos alerta para o facto do sistema de castas, de servos obedientes e dos seus senhores contribuir para a paz e a ordem, pois declara-nos sem rodeios que “… detestamos os nossos mestres por trás de uma fachada de amor ou os amamos por trás de uma fachada de ódio?...” que fará sentido no momento em que nos é dito.

Bollywood não passou por aqui com os seus romances de cordel, suas paixões lânguidas e seus heróis de pantomima, nem este é um filme sobre um pobre inocente, nem tão pouco um “Quem quer ser Milionário” que implicitamente Balram denigre, quando, ao nos relatar o seu passado de pobreza nos diz “… não acredite por um segundo que existe um jogo de um milhão de rupias que o resgata da sua condição se o ganhar…” pois ele tem plena consciência que o seu lugar na casta onde nasceu não é mutável pelos seus meios, porque a única maneira na Índia de chegar ao topo é pelo crime ou pela política (não é só lá, mas isso Balram já não deve saber).

No seu lugar de motorista da família, Balram aproxima-se do filho do patrão Ashok (Rajkummar Rao),que regressou dos USA com sua mulher Pinky (Priyanka Chopra Jonas) que também ocupa um lugar de relevo na história pela sua posição mais esclarecida, aberta e independente relativamente a Ashok que apesar da sua formação ocidentalizada não consegue libertar-se profundamente do sistema da casta onde pertence.

O casal até se entende bem com Balram, e chama-o de “família” o que não impede porém que eles habitem um andar de luxo e que Balram durma num catre sobre o pavimento da garagem, pejada de baratas e mosquitos sem qualquer comodidade, com os outros motoristas dos outros senhorios. Numa noite de descontração e álcool, Pinky protagoniza um acidente fatal para terceiros, em que os senhores de Balram o pressionam para assumir as culpas e ilibar a família. Pinky e Ashok inicialmente repudiam a participação nesse esquema mas o poder da casta de Ashok não permite essa mancha, mostrando que á sua maneira o sistema os deformou como fez com Balram, só que em sentidos opostos. No fundo Pinky e Ashok até são boas pessoas mas a tradição ancestral é mais poderosa.

Este evento, muda a permissividade de Balram para com os seus senhores, ele não suporta pensar o que poderia ter sido se não pertencesse à casta a que pertence e solta-se a revolta. Antes disso, ele recorda as palavras do seu antigo professor ao saber que ele vai abandonar a escola para trabalhar para a família. Este fica admirado pelo seu potencial inato e apelida-o de “Tigre Branco”, um espécime raro de felino que surge apenas uma vez em cada geração.

Muito bom, recomendo vivamente, está disponível na plataforma Netflix

Classificação: 8 numa escala de 10

28 de janeiro de 2021

Opinião – “News of the World” de Paul Greengrass

Sinopse

Cinco anos após o fim da Guerra Civil, o capitão Jefferson Kyle Kidd (Tom Hanks) cruza-se com uma menina de 10 anos Johanna (Helena Zengel) libertada pelo povo Kiowa que a tinha sequestrado. Forçada a retornar para sua família sobrevivente, Kidd concorda em escoltar a criança através das planícies severas e implacáveis do Texas. No entanto, a longa jornada logo se transforma em uma luta pela sobrevivência, pois os dois companheiros de viagem encontram o perigo a cada passo – tanto humano quanto natural.

Opinião por Artur Neves

Em ritmo de western pacato, este “Notícias do Mundo”, em tradução livre, mostra-nos um Tom Hanks na pele de um Captain Kidd, ex-combatente na guerra civil americana, em modo de avô paternal durante uma viagem pelo selvagem estado do Texas para entregar uma miúda emigrante alemã, órfã de pais, aos seus tios ainda vivos a seiscentos km de distância.

A história baseia-se no romance de Paulette Jiles, uma historiadora especialista na guerra civil americana e atualmente residente no estado do Texas, que tem no seu curriculum diversos escritos sobre este conflito e cuja escolha se centrou neste conto carregado de revisionismo sobre a crueza dessa guerra, amenizada pelo excelente desempenho de Tom Hanks na personagem de um militar de regresso ao lar (desfeito, como viremos a saber depois) que auto assume a paternalista tarefa de servir de guardião a uma menina, já sem referencias da sua origem e em estado de transição para a comunidade e cultura Kiowa que a sequestrou, depois de matar os seus pais.

Hanks sempre nos habituou a boas interpretações e neste filme não foge à regra transmitindo-nos a ideia de homem comum, de caráter sólido e íntegro, cheio de ideias nobres ocupando-se com a tarefa de fazer de leitor de jornais da civilização, à luz de lampiões, aos imigrantes analfabetos que habitam as cidades por onde passa no caminho para casa. O Captain Kidd já não usa armas de guerra, tendo substituído as munições por cartuchos de granalha esférica para matar pardais, pelo que nos transmite a sensação de que Johanna está em boas mãos e tudo vai correr conforme previsto.

As reações dos ouvintes são diversas, de acordo com as fações que apoiaram durante a guerra e quando alguns texanos criticam as opções do norte aí temos o calmo e seguro Captain Kidd a apaziguar as hostes com histórias que divertem e informam sobre a nova ordem que impera no novo país unificado. Ele não poderia imaginar que os netos e bisnetos dos seus ouvintes contestatários haveriam de votar em Donald Trump 150 anos depois… mas isso já faz parte de outra história.

Twists, só os que Luke Davis que adaptou o romance original para argumento cinematográfico achou convenientes para não adormecermos durante o visionamento desta realização do britânico Paul Greengrass que já teve melhores dias nas suas histórias se nos lembrarmos por exemplo da saga “Jason Bourne” (“Identidade Desconhecida”, “Supremacia” e “Ultimato”) ou “Voo 93” de 2006 ou mesmo “Capitão Phillips” em 2013 com Tom Hanks já a pensar na reforma, embora ainda com garra.

A história relata-nos as peripécias da viagem do honorável Captain Kidd depois de encontrar a menina abandonada no deserto ao sul de Wichita Falls e de assumir a sua guarda até a entregar à sua família, só que, o seu próprio retorno à casa e à mulher que deixou para se alistar na guerra não correspondem ao que esperava. Pelo lado de Johanna as coisas também não se afiguram melhores com os seus tios e é então que o coração fala mais alto e Kidd tenta um novo recomeço a dois com esta parceira inesperada ao seu cuidado.

Para ao mais cinéfilos este filme é de alguma maneira uma homenagem a John Wayne no filme “A Desaparecida” de 1956 o que todavia me parece injusto pois o trabalho de Hanks é sólido, bem como o de Helena Zengel, que com uma expressiva juventude nos convence de quem não é, representando com segurança o seu trauma e a aculturação recebida, que os salva em situações de aperto. É um retrato duma época dos USA e como tal deve ser encarado.

Classificação: 6 numa escala de 10

 

20 de janeiro de 2021

Opinião – “Locked Down” de Doug Liman

Sinopse

Quando se decidem separar, Linda (Anne Hathaway) e Paxton (Chiwetel Ejiofor) descobrem que a vida tem outros planos quando estão presos em casa devido a um bloqueio obrigatório. A coabitação está a revelar-se um desafio, mas alimentada pela poesia e por grandes quantidades de vinho, irá aproximá-los da forma mais surpreendente.

Opinião por Artur Neves

Temos aqui um filme de época, da nossa época, destes tempos de confinamento para combater um contágio que se intensifica e que se tem revelado sempre crescente, recheado de medidas insuficientes para o combater e de promessas adiadas na mirífica vacina que tarda em se afirmar como solução.

Linda e Paxton são um casal em confinamento numa Londres deserta, cuja relação já teve melhores dias e que agora a permanente obrigação de presença constante revela as suas fragilidades e impossibilidades de recuperação que não são atenuadas pelo vinho tomado em quantidades significativas. As diferenças entre ambos são irreconciliáveis, ela, executiva de uma empresa de segurança e ele, motorista de uma empresa transportadora. Perderam-se de encantos um com o outro quando ela, cansada da escravização à sua agenda e aos seus compromissos profissionais encontrou nele a liberdade e um lado selvagem da vida sobre uma mota de alta cilindrada à desfilada pelas estradas do mundo.

Porém, na presente situação vedada à vertigem da velocidade, quando a opulenta loja Harrods (que permite a filmagem do seu interior pela primeira vez) é forçada a fechar portas e a empacotar nos armazéns da cave toda a sua existência de bens como precaução para roubos e pilhagens, quando as ruas estão desertas e os ocupantes dos prédios cantam loas à janela homenageando os trabalhadores do Serviço Nacional de Saúde (onde é que eu já vi isto?…) e Paxton sai para a rua para declamar poemas que encontra no seu telemóvel, enquanto Linda prepara através do Zoom, em múltiplas reuniões com os seus pares na empresa e com os clientes, a transferência para os USA de um valioso diamante adquirido por um comprador duvidoso… surge uma ideia que vai animar as suas vidas.

Doug Liman é um produtor e realizador com créditos firmados em filmes de ação e aventura, particularmente em associação com Tom Cruise, com quem colabora atualmente em mais uma realização para filmar em órbita, pelo que não nos surpreende este seu desafio consumado logo após o início da pandemia e em período de quarentena quando a obrigação de ficar em casa e receber as suas compras em casa era uma absoluta novidade a que gradualmente nos foram habituando… ou não…

Com todas as novidades emergentes da pandemia surge esta história centrada num casal divergente, na forma de comédia acre que combina um romance em extinção com o ambiente de thriller ligeiro criando um ambiente de suspense que o realizador dirigiu para a ansiedade decorrente do desentendimento do casal e não para ação em si.

Ambos estão frustrados com as suas carreiras, ela desencantada com a falta de desafios no seu trabalho, ele sem ver qualquer futuro naquele lugar que o obriga a levantar cedo, todavia habitam uma confortável casa em Londres e desfrutam de um frondoso quintal que serve de palco às suas disputas e desentendimentos. Acusam-se mutuamente de infelicidade esquecendo os realmente infelizes e procuram algo que de novo os empolgue, porque o que está realmente em jogo é a sobrevivência do relacionamento em si sendo aqui que a história descamba para o romance. Porém, o seu enredo funcional, uma interpretação bem defendida e alguns detalhes inteligentes sobre o comportamento errático desta pandemia justificam o seu visionamento e diverte durante o tempo que dura.

Disponível na plataforma HBO max

Classificação: 6 numa escala de 10

 

11 de janeiro de 2021

Opinião – “Pieces of a Woman” de Kornél Mundruczó

Sinopse

Martha (Vanessa Kirby) e Sean (Shia LaBeouf) são um casal de Boston à beira da paternidade, cujas vidas mudam irrevogavelmente quando um parto em casa termina em uma tragédia inimaginável. Assim começa uma odisseia de um ano para Martha, que deve navegar na sua dor enquanto trabalha um relacionamento turbulento com Sean e com a sua mãe dominadora (Ellen Burstyn), junto com a parteira difamada publicamente (Molly Parker), a quem ela deve enfrentar no tribunal.

Opinião por Artur Neves

O título original deste filme da Netflix tem tradução imediata para “Pedaços de uma Mulher” mas não me parece ser o mais adequado ao tema em apreço, por quanto “pedaços” transmitem-nos a ideia de desagregação, de retalhos, de incompletude que estão em desacordo com a opção consciente desta mulher em ter um parto natural em casa, correndo todos os riscos daí decorrentes em caso de ocorrência dos imprevistos que afinal se vieram a verificar. Como tal, o título de “Atos de uma Mulher” caracterizaria melhor a sua personalidade e os restantes eventos mostrados nesta história, principalmente a sua dolorosa viagem íntima para lidar com a perda irreparável do falecimento da sua filha, muito pouco tempo após o parto tão dificilmente conseguido em ambiente impróprio.

A primeira meia hora reporta-nos uma ação particularmente intensa, até esgotante pelo seu realismo convincente e extraordinariamente bem interpretada por três personagens que nos exprimem os maiores contrastes emocionais imagináveis ao longo de uma noite de parto que termina com uma incomensurável tragédia aterrorizante e devastadora com sequelas traumáticas para o resto da vida.

Kornél Mundruczó de origem húngaro e com largo histórico de realização desde 1998 tem com este filme a sua estreia em língua inglesa, com um argumento escrito por Kata Wéber, baseado numa peça de teatro com o mesmo nome estreada na Polónia em 2018, que nos ofereceu este docudrama em que Martha e Sean se entregam completamente a uma longa tomada de vistas de um excruciante parto que nos perturba.

A parteira que acompanhou Martha durante a gravidez está impedida de a apoiar por estar envolvida noutro parto à mesma hora e recomenda-lhe que contactem uma sua colega Eva (Molly Parker) igualmente fundamental nesta primeira parte do filme em que se apresenta calma e segura das ações a desenvolver, embora não reúna a necessária confiança do casal pelo natural desconhecimento dum primeiro contacto. Enquanto Martha sofre, Sean anda de uma lado para o outro como uma animal enjaulado sem poder, nem saber o que fazer. Eva ao princípio segura, começa habilmente a mostrar-nos lampejos de preocupação enquanto tenta acalmar Martha para que continue o seu esforço. Depois surgem nos seus olhos as primeiras notas de apreensão e a primeira indicação de complicações, depois os problemas avolumam-se até que finalmente seja tomada a decisão de chamar uma ambulância que transporte Martha para o hospital. No entretanto, o parto conclui-se e a tragédia consuma-se.

Depois deste evento segue-se o afastamento de Martha e Sean, que já começavam a atravessar momentos de frieza que o nascimento da filha deveria recompor, ou pelo menos motivar a oportunidade de religação. Eles pertencem a mundos muito diferentes, ela é uma executiva numa grande corporação, ele, um executante da construção civil na altura a empenhado na construção de uma ponte que também funciona como metáfora para a ligação entre os dois, todavia o seu temperamento truculento, vulgar e circunstancial torna-o um ser humano desprezível que nunca reuniu a aquiescência da mãe de Martha, Elizabeth (Ellen Burstyn num papel secundário com muito prestígio) que agora paga-lhe para desaparecer.

Pelo meio da história são ainda conhecidos outros factos que compõem o desenlace deste casal, cuja primeira hora deixa marcas contundentes pelo seu realismo. Toda a história gira em torno de Martha, das suas decisões e dos seus atos terminando na barra do tribunal em que Elizabeth pretende culpar Eva pela morte da neta. Mais uma vez uma decisão de Martha desencadeia o twist final da história que nos prende por 126 minutos sem todavia nos cansar. Recomendo, está disponível na plataforma Netflix desde 7 de janeiro.

Classificação: 7,5 numa escala de 10