30 de janeiro de 2020

Opinião – “Amor à Segunda Vista” de Hugo Gélin


Sinopse

Quando Raphaël (François Civil) conheceu Olívia (Joséphine Japy) no secundário, foi amor à primeira vista. Após 10 anos de casamento feliz e uma carreira próspera como autor de best-sellers, Raphaël tem tudo – ou pelo menos assim o pensa.
Após uma enorme discussão entre o casal, Raphael acorda numa vida paralela onde é solteiro, jogador de pingue-pongue e professor do ensino secundário, com uma vida pouco interessante e demasiado colada à do seu melhor amigo de infância.
Percebendo que Olívia era tudo para si, Raphael terá de fazer o impossível para reconquistar o amor de sua vida – que neste mundo não faz a mínima ideia de quem ele é.

Opinião por Artur Neves

Este filme combina comédia romântica com ficção científica na qualidade de realidade paralela que na minha opinião “não bate a bota com a perdigota”. Comédia romântica é o género normal de filmes com adolescentes embevecidos com a descoberta do amor e das suas revelações no contexto que valem por si próprias. Realidade paralela é um tema ainda com conceção abstrata no âmbito da teoria de Einstein que tem pouco a ver com romantismo, exceto para Hugo Gélin, o realizador francês nascido em Paris em 1980, que nos apresenta a história resumida na sinopse.
Quem está familiarizado com comédias românticas, e reconheço com todo o respeito que existe um público dedicado ao género, é fácil aceitar que os produtos saídos de Hollywood são mais emocionantes do que os europeus, muito particularmente os de origem francesa, normalmente com histórias mais rebuscadas do que os primeiros. Todavia neste caso, Hugo Gélin consegue “tricotar” com assinalável desenvoltura um caso de amor à primeira vista entre dois personagens; Raphaël e Olívia que nos transmitem toda a simplicidade, a beleza do primeiro amor vivido intensamente e para a vida, consumado no casamento perfeito.
Porém, como a vida não é perfeita contagia o amor da sua imperfeição com os objetivos para atingir, os compromissos profissionais, as contas para pagar, as diferenças individuais que inevitavelmente agudizam a relação e o afastamento surge, como aconteceu com os nossos amantes perfeitos. Isto é normal, humano, real, está a acontecer a alguém ou já nos aconteceu a nós próprios na nossa realidade pessoal. É reconhecível a todos os níveis.
No limite as pessoas separam-se, vão cada uma para seu lado mantendo ou não o contacto entre si, é opcional. Em muitos casos começa aqui a saga da reconstrução, do reencontro e nas comédias românticas como já sabemos que os dois acabarão juntos o mais interessante é saber como foi, como superaram as suas diferenças, como cederam mutuamente nas suas premissas iniciais, donde normalmente resultam boas histórias de vida.
Mas Hugo Gélin meteu a “bucha” da realidade paralela, ele passou a viver noutro mundo (que se existisse alguns já teriam passado para lá porque este já vai ficando saturado) ela deixou de o reconhecer mesmo olhando para ele e falando-lhe, ele deixou de fazer o que fazia e infantilizou-se, esqueceu-se de si e caiu numa vida que já não era a sua (curiosamente, não esqueceu Olívia nem o amigo do peito Félix - Benjamin Lavernhe) e procura recuperar a sua amada noutro dia de nevão igual ao dia em que a perdeu. Lindo!...
Consegue isso reescrevendo todo o romance em que no final, (teria bastado reescrever somente o final… não?...) mata a sua companheira, avatar de Olívia, que deu origem a esta trapalhada.
Uma boa comédia romântica deve contar uma bela história de amor, creio que o leitor concorda comigo, e esta até tem um grande amor, comédia, alguma surpresa e é bem disposta, mas a “bucha” da realidade paralela, neste contexto, dá me volta ao estômago. Uma pena!...

Classificação: 5 numa escala de 10

28 de janeiro de 2020

Opinião – “Ladrões com Arte” de Matt Aselton


Sinopse

Ivan (Theo James), um ladrão de arte bem-sucedido, herda a vida de crime do pai, mas ao contrário de muitos ladrões, Ivan adora tanto a arte como a arte de roubar. Anseia por se livrar do mundo do crime, mas está de tal maneira envolvido nele que pode nunca conseguir sair. Até que conhece Elyse (Emily Ratajkowski), uma atriz e vigarista que tenta fugir ao seu próprio passado caótico. Juntos, vão realizar o derradeiro golpe, que não vai deixá-los ricos, mas sim libertá-los.

Opinião por Artur Neves

“Ladrões com Arte” é um filme espirituoso, agradável de ver, com graça subtil em algumas cenas, muito por causa do carisma do seu personagem principal Ivan (Theo James), que desenvolve uma boa química com Elyse (Emily Ratajkowski), depois de acidentalmente se conhecerem numa festa em que qualquer dos dois não engana o outro sobre os seus verdadeiros objetivos e os leva a brincar entre si duma maneira elegante e cúmplice.
O filme começa com a citação de um provérbio curioso que não resisto em reproduzir; “Quando um ladrão te beijar, conta os dentes” que encerra em si todo o argumento. Isto é, mesmo para aqueles em quem confias não deixes de estar atento ao próximo movimento, pois pode não corresponder ao esperado. É assim que se desenrola toda a dinâmica entre Ivan e Elyse num meio em que ambos tentam sobreviver com os seus próprios recursos mesmo que não sejam os mais honestos.
O realizador americano Matt Aselton, que também escreveu o argumento em conjunto com Adam Nagata mostra-nos uma ficção de um ladrão experiente e inteligente, que usa meios técnicos sofisticados para subtrair aos ultra ricos obras de arte valiosas, cobiçadas por outros colecionadores, que encomendam os seus desejos a Dimitri (Fred Melamed) que por sua vez usa meios de persuasão sobre Ivan para que ele os roube para ele. O falecido pai de Ivan era um viciado em apostas e jogo e tem uma dívida não saldada para com Dimitri que este usa para forçar Ivan a trabalhar para ele. Elyse também tem dívidas para um produtor de cinema que a ameaça com o fim da sua carreira se não lhe pagar. Assim a aliança entre Ivan e Elyse começa por ser baseada numa mútua ajuda para a resolução dos problemas de ambos mas depressa passa para outro nível como é de esperar nestas aventuras ligeiras.
O argumento é escorreito e está bem contado sendo as cenas dos furtos suficientemente emocionantes, explicadas com pormenor em flashback e complementadas por uma banda sonora eletrónica, entrecortada e nervosa que confere uma certa tensão às cenas de furto. Toda a ação é credível e desenvolve-se em ambiente calmo sem tiros nem violência, prosseguindo ao jeito de “O Grande Mestre do Crime” de 1968, sem a aura de Steve McQueen e Faye Dunaway bem entendido, mas bem entregue ao ponto de constituir um filme digno.
No fundo eles roubam porque gostam e precisam e nós gostamos de os ver roubar daquela maneira elegante e airosa a quem não merece ser poupado a esse roubo. É também um filme que ensaia atitudes desviantes, sem dúvida, mas simultaneamente inofensivo, inteligente, que combina comédia ligeira com ação, drama e romance que se adivinha, com destreza fluida em 100 minutos. Gostei e recomendo.

Classificação: 6 numa escala de 10

Opinião – “Calafrio” de Floria Sigismondi


Sinopse

Há mais de cem anos que se conta uma história assustadora que deixa aterrado quem quer que a ouça. "CALAFRIO" leva-nos até ao Maine, a uma mansão rural misteriosa, onde Kate, a nova ama, está encarregada de cuidar de dois órfãos perturbados, Flora e Miles. Mas Kate depressa se apercebe que as duas crianças e a casa albergam segredos tenebrosos e que as coisas poderão não ser aquilo que parecem.

Opinião por Artur Neves

Os filmes declaradamente feitos para desestabilizarem as nossas emoções e provocarem medo, terror, necessitam criar uma narrativa envolvente e detalhada que nos introduza na história de tal modo que nos faça sentir as dores do personagem mais ameaçado, ou mais fraco, ou de alguma maneira a vítima eleita pelo poderoso mal que discricionariamente tem o poder de fazer sofrer o personagem com que o espectador se identifica.
Em “Calafrio” falta tudo, falta a vítima, que em princípio nos é apresentada como sendo a nova ama Kate Mandell (Mackenzie Davis) que vai substituir a que vemos fugir desordenadamente logo no princípio do filme.
Falta o “poderoso mal”, que nos é apresentado como uma sombra de um preceptor de Flora Fairchild (Brooklynn Prince) e Miles Fairchild (Finn Wolfhard) aparecendo em imagens esfumada em espelhos pela casa e presumidamente provocando ruídos lascivos em cenas que não nos são mostradas.
Flora e Miles, que constituem o motivo de permanência da nova ama, ocupam uma posição dúbia de “vítimas” que sabem mais do que dizem, recaindo sobre Miles a responsabilidade de, proteção da irmã, por ser mais velho. Miles tem 15 anos e estudava num colégio interno que por razões mal explicadas foi expulso e como tal regressa a casa por onde deambula sem qualquer ocupação específica, exceto, formular expressões duras com uma cara de menino mimado, rico e problemático, que só uma estudada iluminação nos pode levar a pensar ser o elo de ligação com o “poderoso mal” que ensombra a casa e ameaça Kate.
Mas Kate não tem nada que a prenda ali, tem um carro no exterior e pode sair quando muito bem entender ou quando já não suportar aquele ambiente opressivo. Mrs. Grose (Barbara Marten) a governanta da casa que toma conta da família por várias gerações, das quais não há relato nem memória no filme representa um personagem desagradável sim, mas não associado ao “poderoso mal” que nos quer assustar.
Aliás, quando a realizadora Italiana Floria Sigismondi já não precisa dela, provoca-lhe uma queda desamparada que lhe causa morte imediata, praticada pela sombra do “poderoso mal” que até agora tinha coexistido com ela sem qualquer rebuço.
O que temos a ligar tudo isto é a repetição sucessiva dos sustos e das sombras tradicionais de uma casa velha, embora imponente, pejada de carrancas tanto no exterior como no interior e de sons súbitos que nem sobressaltam nem assustam, sem continuidade, enquadramento ou justificação que parecem ser pedaços perdidos de outros filmes que a realizadora insere na história porque os tem.
O argumento baseia-se numa novela de Henry James, escrita em 1898 que já teve uma primeira aparição em cinema em 1961, “Os Inocentes”, em que Deborah Kerr desempenhava o papel de uma governanta que cuidava de duas crianças numa casa que ela suspeitava estar amaldiçoada, mas nesta versão nada pode salvar a narrativa que oscila entre o incompreensível e o instável, culminado por um clímax que nos faz sentir arrependidos do tempo despendido por termos aturado tanto disparate. A mim apeteceu-me dizer: WTF…

Classificação: 2 numa escala de 10

26 de janeiro de 2020

Opinião – “Mulherzinhas” de Greta Gerwig


Sinopse

A realizadora e argumentista Greta Gerwig (Lady Bird) apresenta uma versão de “Mulherzinhas” que se baseia não só no romance clássico de Louisa May Alcott, como também nas notas deixadas pela autora. Esta história, vai desdobrando-se no alter ego da autora, Jo March, à medida que esta leva a sua vida real para a sua obra ficcional. Na opinião de Gerwig, a adorada história das irmãs March - quatro jovens determinadas a viver a vida à sua maneira - é intemporal e oportuna. Retratando Jo, Meg, Amy e Beth March, este filme é protagonizado por Saoirse Ronan, Emma Watson, Florence Pugh, Eliza Scanlen, com Timothée Chalamet no papel do seuvizinho Laurie, Laura Dern como Marmee e Meryl Streep como tia March.

Opinião por Artur Neves

Este é o oitavo filme sobre o romance clássico de Louisa May Alcott numa realização salpicada de reflexos #Metoo, considerando a modernidade com que o argumento é abordado transformando as meninas que atingiram a maioridade em 1860 apenas dedicadas ao lar e à vida doméstica da época, em raparigas modernas, conscientes de si e das suas vontades e do seu desejo de independência e autonomia em relação aos costumes e tradição com que foram educadas.
Alcott escreveu o romance por encomenda do seu editor e impregnou-o da sua autobiografia de tal modo que Jo é um personagem baseado em si mesma e com a mesma ânsia de se tornar escritora e através disso afirmar-se na sociedade do seu tempo.
Greta Gerwig, atriz e realizadora americana que já nos deu “Lady Bird” em 2017 e o excelente desempenho de Frances em “Frances Há” em 2012 pega nesse facto logo no início do filme, mostrando-nos Jo March (Saoirse Ronan, fabulosa como sempre) entrando nos escritórios de uma editora em Nova Yorque para apresentar o seu primeiro trabalho que é imediatamente corrigido com desdém pelo responsável, embora veja nela o potencial de escritora que se vem a revelar posteriormente.
A partir daqui o filme recua e avança no tempo mostrando-nos a Jo do passado e a sua vida em casa, com as irmãs e o pai ausente na guerra da secessão e a mãe Marmee March (Laura Dern) que desenvolve um personagem cheio de força e de carácter, embora doce e silencioso nas ocasiões de sofrimento e drama, como o esteio que mantém a família unida.
Este modo inovador de apresentar a história é sem dúvida o resultado de um rasgo de inteligência de Greta Gerwig que com indicações subtis nos posiciona antes e depois, entrelaçando os factos identitários de cada tempo e de cada local. Tem como contra, o facto de exigir mais atenção do espectador para não se confundir no tempo com os factos apresentados. A nota que sublinha o classicismo da época coube à tia March (Meryl Streep) que sem qualquer disfarce para a sua idade real é a única que recomenda às sobrinhas que se casem com um homem rico para assegurarem a sua subsistência financeira, exemplificando com a sua vida celibatária, só possível devido ao dinheiro que já possui.
Por outro lado a modernidade de abordagem de um romance do século XIX revelada neste filme, faz-nos sentir que os personagens têm carne e sangue em alvoroço nas suas veias, assemelham-se a pessoas reais, nossos colegas, nossos vizinhos, pessoas que conhecemos e dos quais conhecemos a história, muito diferente das meninas bem comportadas de antanho tradicionalmente apresentadas. Para mim é a melhor das oito adaptações existentes e muito embora a representação da sociedade de uma época clássica se mantenha, está despida do servilismo e obediência submissa que a caracterizava.

Classificação: 7 numa escala de 10

23 de janeiro de 2020

Opinião – “Jojo Rabbit” de Taika Waititi


Sinopse

O escritor e realizador Taika Waititi (“Thor: Ragnarok”, “Hunt for the Wilderpeople”), traz-nos o seu habitual humor e dedicação no novo filme “Jojo Rabbit”, uma sátira sobre a Segunda Guerra Mundial, que conta a história dum solitário rapaz alemão (Roman Griffin Davis) cujo mundo foi virado avesso quando este descobre que a sua mãe (Scarlett Johansson) esconde no sótão uma jovem judia (Thomasin McKenzie). Apoiado apenas pelo seu amigo imaginário, Adolf Hitler (Taika Waititi), Jojo é obrigado a confrontar-se com o seu nacionalismo cego.

Opinião por Artur Neves

Não sei se será boa ideia misturar holocausto com comédia, sobretudo porque se trata de comédia fantástica em que o próprio Adolf Hitler é o amigo imaginário de Jojo Betzler “Rabbit” (Roman Griffin Davis) um garoto alemão de 10 anos com um amor fanático pela causa Hitleriana e que tem o próprio Hitler como seu mentor espiritual e hóspede dos seus pensamentos e dos seus desejos.
Este filme estreou em 2019 no Festival de Cinema de Toronto e recebeu o galardão “People's Choice Award” por ter sido escolhido pelo público, tendo descartado; “História de Casamento” e “Parasita”, pelo que causou alguma estranheza considerando que este galardão já premiou algumas obras que posteriormente se vieram a revelar merecedoras do Oscar.
O humor utilizado emprega muitas piadas repentistas e diretas que nem causam muito riso porque se fundamentam ou na inépcia de Jojo, que se fere gravemente num treino de campo da juventude Hitleriana, quando auto inflamado pela doutrina nazi, sofre o rebentamento de uma granada que ele próprio tinha atirado, ou na grotesca assistente Fraulein Rahm (Rebel Wilson) do Capitão K (Sam Rockwell) que só pelo seu aspeto e atitude, pretende evocar o riso quando serve o Capitão K, um militar expulso do exército principal por andar sempre bêbado, a quem deram a missão de formar os novos recrutas. Não há elevação nos diálogos, nem subtileza nas conversas, nem qualquer segundo sentido nas alusões. Rosie (Scarlett Johansson) que faz de mãe de Jojo, constrói um personagem esteriotipado pouco convincente.
“Jojo Rabbit” baseia-se num romance de uma autora belga / neozelandesa, Caging Skies e não é uma história cómica, nem inclui Hitler como modelo ideológico de Jojo, sendo esta uma ideia peregrina (acho eu) do realizador Taika Waititi, descendente de maori, judeu e irlandês e que se descreve como “judeu polinésico”, que assumiu esse papel construindo um “Hitler”, em versão maníaca, meio idiota e infantil, muito distante do arquétipo que a juventude Hitleriana deveria inculcar nas mentes em formação dos seus membros e impossível de ter sido concebido pela mente de um miúdo de 10 anos, fanático pela doutrina e pelo personagem. Esta é portanto uma gritante discrepância que contrasta com o contexto sombrio do personagem real, tornando o resultado algo excêntrico.
Jojo é um rapaz preocupado com a guerra, com o seu resultado, com o futuro, com os nazis que matam pessoas nas ruas da sua cidade e que mataram a sua mãe e que neste sentido pode ser encarado como o despertar da inocência de uma criança. Os torcionários, a polícia política, são representados como palhaços estúpidos, mas não nos esqueçamos que eles não foram inofensivos, foram eles que executaram o Holocausto, que está subjacente na judia Elsa (Thomasin McKenzie) de 16 anos, que Rosie abrigou no sótão de sua casa e que por isso morreu quando foi denunciada.
Pode também considerar-se que “Jojo Rabbit” é um filme ousado por abordar de forma ligeira a questão mais dramática do século XX, mas a sua ausência de condenação explícita, numa narrativa de banalização do Holocausto, não previne nem erradica a sua indesejada repetição e neste aspeto não é feliz no seu argumento.

Classificação: 5,5 numa escala de 10

22 de janeiro de 2020

Opinião – “Ama Perfeita” de Lucie Borleteau


Sinopse

Quando Myriam (Leïla Bekhti), mãe de dois filhos, decide voltar a trabalhar apesar da relutância inicial do marido, o casal começa a procurar uma ama. Após um processo muito seletivo, encontram por fim a candidata ideal: Louise (Karin Viard), uma mulher de 40 anos muito bem preparada que faz sucesso imediato entre filhos e pais. Mas à medida que Louise se vai tornando indispensável à família, começa a revelar a sua autêntica natureza e o seu comportamento torna-se cada vez mais inquietante para quem a rodeia.

Opinião por Artur Neves

Esta história é baseada no romance “Chanson douce” de Leila Slimani, (nascida em Marrocos em 1981) vencedor do prémio Goncourt de 2016, o que fez da sua autora a mais jovem escritora a receber este galardão. O romance foi inspirado num caso real ocorrido em Manhattan em 2012 e até hoje envolvido num mistério difícil de explicar de maneira compreensível e razoável.
Lucie Borleteau, a realizadora francesa com alguns créditos no género, estabeleceu uma narrativa clássica para a história que mantém durante quase todo o filme numa expectativa latente sobre um sintoma psicológico de esquizofrenia do personagem principal, que se intui por inerência, mas que só posteriormente nos são dados sinais claros do que se trata, tornando o desfecho da história quase imprevisto até à sua concretização.
A história está bem resumida na sinopse e desenrola-se no seio de um casal adulto jovem que resolve contratar uma ama para assistir aos seus dois filhos, sendo Mila (Assya), de 5 anos e Adam, bebé com poucos meses de vida, que monopoliza totalmente a disponibilidade da mãe Myriam que reivindica o seu tempo para outras atividades diferentes de ser mãe a tempo inteiro. O pai Paul (Antoine Reinartz), tem por vezes um papel de bobo e de inepto, que quase o desqualifica como chefe de família, fazendo pensar se não existirá outra mensagem subliminar que a realizadora quis passar.
A seleção da ama Louise (Karin Viard) foi tão criteriosa e bem conseguida que somos informados que ela não só mostra extrema dedicação aos miúdos a cargo, como ao casal, substituindo-os na cozinha, chegando muito cedo para lhes preparar o café da manhã, limpando e arrumando a casa com perfeição e esmero, brincando com Mila a quem conta histórias e ministra uma educação pré escolar, bem como, atende a todas as necessidades de Adam e só abandonando a residência muito para lá do horário previsto.
A atitude de Louise é tão perfeita, tão adequada à função que o casal não se apercebe do seu ar sofrido, da sua alteração contida de humor quando algo acontece diferente do previsível, do seu ar afável que soa a forçado e resultando de um grande esforço de vontade, das suas brincadeiras com Mila, onde personifica um monstro ameaçador e que reage com inusitada secura e agressividade quando é confrontada com críticas, por mais leves e cordatas que sejam proferidas.
Borleteau apresenta-nos Myriam e Paul como cegos para o mundo em seu redor, usufruindo somente dos benefícios da liberdade recuperada sem se preocuparem com o modo e o motivo dessa recuperação, comportando-se como um casal parisiense livre e sem compromissos que inadvertidamente provoca os acontecimentos subsequentes e é o único responsável pelo desfecho dramático desta história, muito embora no íntimo de Louise germinasse uma frustração insuperável e um desejo secreto de se sentir útil a todo o custo para justificar a sua existência.
Louise ama aquelas crianças, dedica-se aquela família com todo o seu empenho, devolve ao casal a oportunidade de reativarem a sua vida amorosa e todavia continua a sentir-se como trabalhadora contratada apesar de ter sido convidada para passar férias com eles e de ter aproveitado o mar e o sol como se lhe pertencessem desde sempre. No seu íntimo porém, a ansiedade sobe sem controlo, a solidão adensa-se, pensamentos marginais ocorrem-lhe sem que ela os possa conter e o destino trágico está próximo.
É um retrato bastante realista de uma casal urbano, jovem, classe média, que tenta criar os filhos enquanto luta pela sua realização profissional e pela sua subsistência, mas que tem que ficar atento aos maravilhosos milagres que não existem.

Classificação: 7 numa escala de 10

21 de janeiro de 2020

Opinião – “Um Casamento a Mais” de Robert Luketic


Sinopse

Mara (Sarah Hyland)  é uma jovem despreocupada de 27 anos, com a aspiração de ser fotógrafa. Após conhecer Jake (Tyler James Williams) no Tinder, uma relação inesperada começa a formar-se. Tudo corre bem até que os convites de casamento começam a chegar. Um pesadelo para Mara, mas Jake está empolgado. Os namorados decidem a quais casamentos assistir e embarcam numa aventura de um ano juntos. Com o avançar da temporada, Mara encontra inspiração para as suas fotos. Sete casamentos depois, e aprofundada a relação, Jake pede-a em casamento mas Mara acaba a relação. Enquanto Jake constrói uma nova vida, Mara transforma finalmente a sua paixão pela fotografia numa carreira, mas sem esquecer Jake.

Opinião por Artur Neves

Mais uma vez temos aqui uma comédia romântica que não constituirá referência no mundo da sétima arte, mas poderá ser interessante quando daqui a uns tempos passar numa sessão vespertina de cinema em televisão. Com dois anos de projeção em sala, ou menos, as distribuidoras tentam rentabilizar o investimento dessa maneira e aí poderá ser visto com alguma nostalgia, sonho e talvez, até interesse.
Mara, é uma jovem auto realizada que não teve no relacionamento dos seus pais um exemplo de sucesso, é uma moça extrovertida que tenta gozar a vida sem grandes preocupações nem compromissos, encontra Jake numa plataforma de encontros, com o objetivo deste lhe pagar um jantar que ela goste.
Porém, durante a conversa estabelecida entre ambos nesse encontro reconhecem pontos comuns nas suas visões sobre a vida, o futuro, os objetivos que perseguem e resolvem prolongar o seu conhecimento em dimensões mais íntimas, usufruindo os benefícios mútuos da relação mas sem estabelecerem quaisquer compromissos que os vinculem, situação que Mara encara como uma piada de mau gosto considerando o passado dos seus pais.
Jake, por seu lado, não tem nada a contrapor e deixa-se ir, vivendo despreocupadamente os dias até que Mara o convida para a acompanhar e uma série de casamentos de suas amigas que se realizarão sequencialmente nos meses seguintes. Aqui o filme ganha alguma dinâmica com a multiplicidade de situações criadas pelas pessoas e pelas suas escolhas, mas nada que empolgue o espectador, exceto, que a tão esperada “chispa do amor” finalmente salte entre ambos como que induzida pelas sucessivas experiências a que assistimos.
Creio eu que Robert Luketic, realizador Australiano, apenas pretendia com este filme uma história de entretenimento generosa, de humor fino, fluindo em bom ritmo em várias sub-histórias semelhantes às apresentadas até aqui na sua carreira, exceto em “21 – A Ultima Cartada” de 2008 com um cariz mais sério num ambiente de casino e jogos de azar mas igualmente com o mesmo espírito inocente dos ideais românticos.
Dito isto, não se pense que a nostalgia de um sentimento passado seja o único motivo para assistir a este filme, pois Mara apresenta-se como uma mulher decidida e madura, que sabe o que quer, rejeita liminarmente o pedido de casamento de Jake mas… depois, na solidão do seu espírito e fazendo o balanço de tudo o que lhe aconteceu e experienciou, ela procura uma razão para sabotar a apetência do seu relacionamento com Jake, mas sucumbe, aceitando o clichê do seu melhor amigo, gay, Alex (Matt Shively) que assume um casamento feliz.
No seu todo é um filme modesto, tem momentos cómicos, graça e encanto pelos personagens criados. Tem momentos emocionantes que parecem genuínos e conta uma história de vida que não constitui qualquer surpresa.

Classificação: 5 numa escala de 10

16 de janeiro de 2020

Opinião – “Instinto Predador” de Nick Powell


Sinopse

Um navio grego transporta perigosos animais exóticos da Amazónia, incluindo um raro jaguar branco. No mesmo navio, um assassino, que estava a ser extraditado em segredo para os EUA, consegue escapar e libertar todos os animais em cativeiro, deixando os tripulantes em perigo de vida.

Opinião por Artur Neves

Nicolas Cage é um ator que teve um bom começo de carreira, lembremo-nos de; “Morrer em Las Vegas” 1995, “A Cidade dos Anjos” 1998, “O Senhor da Guerra” ou “O Homem do Tempo” em 2005, que para mim foi o último filme “decente”, tendo a partir daqui entrado numa rampa acentuadamente descendente, recheada de maior quantidade de interpretações, mas com menos qualidade, continuando neste registo até este ano de 2020 em que já se noticiam cinco trabalhos em fase de filmagens ou em pós produção. Uma tão grande proliferação de trabalho, não pode dar bom resultado e é o que acontece neste filme.
Nesta história começamos por assistir a um caçador, Frank Walsh (Nicolas Cage) sentado numa árvore duma remota selva brasileira a fumar um charuto e a ler uma revista enquanto espera que uma rara onça branca conhecida como “El Gato Fantasma” caia na armadilha por ele montada para a caçar e transportar para outras paragens onde espera ganhar bom dinheiro com a sua venda.
Ele planeia transportar os animais de barco até um Zoológico nos arredores de Madrid, ou seja o Gato Fantasma, uma família de macacos aranha, pássaros exóticos e cobras produtoras de veneno letal, transportados em jaulas a bordo de um velho cargueiro, decrépito e húmido, que também serve de prisão provisória a um assassino louco, Richard Loffler (Kevin Durand) procurado pelos USA para o julgar por crimes contra a humanidade de que ele está acusado.
A partir daqui, em que o “caldeirão” já está preenchido com os ingredientes para o “cosido à americana” é que as coisas começam a descambar. Trata-se de um filme série B, de baixo orçamento e com um realizador estreante, cuja experiência mais significativa é ter sido coordenador de duplos e em que a sua primeira e única preocupação é encontrar maneiras de provocar suspense no maior número de cenas, sem contudo que para isso, tenha preparado o ambiente e o espectador para uma esperada surpresa. Assim, as cenas saltam como pipocas aqui e ali, por todo o interior do velho cargueiro que funciona agora como um universo fechado.
O assassino liberta-se em três tempos de uma jaula que parecia inviolável, sem que nenhum dos guardas pertencente ao grupo de operações especiais, façanhudos e destemidos o possa deter, liberta todos os animais selvagens como manobra de diversão e sequestra o comandante para alterar a rota do navio e garantir a sua fuga.
Com este ato temos uma “Arca do Noé do demónio”, todos querem matar todos e Richard Loffler trata de despachar animais selvagens a cada dois minutos de filme, enquanto Frank Walsh, que só queria passar uma viagem descansada a alimentar os animais tem de entrar neste jogo de gato, rato e onça, (o mais precioso dos animais raros) para tentar salvar o seu investimento de caça.
A história inclui mais personagens, como um médico, um advogado e uma criança cujo objetivo é ser colocado em perigo para provocar impacto, os outros deixam de existir sempre que ficam fora da objetiva e não se vê uma ligação credível entre eles. Frank só fala com o seu papagaio e a ação montada por Nick Powell é tão frouxa e instável que o momento mais emocionante ocorre quando Richard Loffler decide não lutar, porque a gente não acredita!...

Classificação: 4 numa escala de 10

Opinião – “Bad Boys para Sempre” de Adil El Arbi e Bilall Fallah


Sinopse

Os Bad Boys, Mike Lowrey (Will Smith) e Marcus Burnett (Martin Lawrence) estão de volta para uma última viagem juntos no muito antecipado “Bad Boys para Sempre”

Opinião por Artur Neves

Este é o terceiro filme de uma mini série (mini se ficar por aqui, bem entendido) começada em 1995 com “Bad Boys” em que a dupla Will Smith e Martin Lawrence assenta arraiais e prossegue com “Bad Boys II” em 2003 repetindo a dose de aventura, pancadaria e muitos tiros, no combate aos malfeitores instalados no mundo da droga, ambos realizados por Michael Bay e produzidos por Jerry Bruckheimer que também produz os CSI’s, Las Vegas, Miami e outros filmes para televisão que eu caracterizo como “séries de filmes a metro”.
Desta vez retoma-se o tema mas com mais distânciamento, a idade já é outra, estão ambos mais próximos da reforma e embora a ação seja muita e o argumento apresente muitas notas de comédia e de verdades sobre a vida, sente-se o cansaço dos personagens. É como uma revisitação a um lugar onde ambos foram felizes, na esperança que esses momentos então vividos reapareçam, não obstante a predisposição já ser diferente.
Nesta história Mike Lowrey e Marcus Burnett estão ensaiando uma corrida em direção ao hospital onde está prestes a nascer o neto de Marcus, que agora se tornou homem de família ao lado da sua esposa Therese (Theresa Randle) e da filha Megan Burnett (Bianca Bethune), quando aparece uma mota em alta velocidade, cujo condutor dispara dois tiros em pleno peito de Mike que o conduzem ao hospital entre a vida e a morte.
Consternado, Marcus encomenda o amigo a todos os santos e ao próprio Deus, pedindo pela vida de Mike, que recupera seis meses depois e nos aparece com a mesma garra e os mesmos interesses de sempre, desejoso de fazer justiça e de reocupar o seu posto de polícia no ativo. Só que Marcus não está para aí virado e tenta convencer Mike a deixar esse trabalho para os atuais especialistas, Rita (Paola Nuñez) responsável por uma elite de investigadores com outros meios e outras técnicas diferentes das que eles estavam habituados.
O sempre irritadiço Captain Howard (Joe Pantoliano), não concorda com a ideia de ter Mike de volta à ação e só depois de um grande esforço deste, concorda em aceitá-lo mas como “consultor” e subordinado a Rita, coisa que nós logo compreendemos que não vais ser assim porque manifestamente não está na natureza de Mike. Entre os dois ainda surge uma chispa de olhares cúmplices mas cedo se percebe que é uma pista falsa para aquela história.
A busca pelo responsável do atentado a Mike começa e ficamos a saber que se chama Armando (Jacob Scipio) é filho de uma bruxa mexicana, Isabel Aretas (Kate del Castillo) que está obcecada em matar Mike por razões que constituem o twist principal da história com uma surpresa, que mantém a ação em bom nível, sempre com uma vertente de comédia que ameniza o ambiente.
Esta sequela é realizada por dois realizadores, nomeados como "Adil & Bilall", uma dupla de realizadores Belgas da nova geração que espalham adrenalina e cenas de família numa história com origem na “fábrica” de Bruckheimer que com certeza não a tinha pensado assim, mas convenções à parte, acaba por ser a sequela mais conseguida da mini série e considerando que o epítome “para Sempre” permite intuir um fim, ou uma constância de continuidade, ficaremos expectantes sobre qual das duas hipóteses se verificará no futuro.

Classificação: 6 numa escala de 10

13 de janeiro de 2020

Opinião – “J’Accuse – O Oficial e o Espião” de Roman Polanski


Sinopse

No dia 5 de Janeiro de 1895, o Capitão Alfred Dreyfus, um jovem soldado judeu, é acusado de espionagem para a Alemanha e condenado a prisão perpétua na ilha do Diabo. Entre as testemunhas está Georges Picquart, promovido para gerir a unidade militar de contra-espionagem. Mas quando Picquart descobre que informações secretas continuam a ser fornecidas aos alemães, é arrastado para um labirinto perigoso de fraude e corrupção que ameaça não só a sua honra, mas também a sua vida.

Opinião por Artur Neves

Este filme é cinema ao seu melhor nível como meio de contar uma história real que no final do século XIX, mais exatamente 1895 como refere a sinopse, desestabilizou o poder político em França e pôs em causa as chefias militares de primeiro nível, todas envolvidas num caso de espionagem internacional em que foi injustamente acusado um oficial judeu, o Capitão Alfred Dreyfus, (Louis Garrel) para ocultação da incompetência e do compadrio castrense que grassava nas forças armadas e na sociedade antissemita da época.
Goste-se ou não de Polanski é da mais elementar justiça reconhecer que ele continua sendo um mestre no seu ofício pela forma distinta como constrói a apresentação desta história. O cenário é irrepreensível, o guarda roupa, a direção de atores extraordinariamente cuidada e meticulosa, preenchida com todos os detalhes comportamentais da hierarquia militar da época que transmitem ao espectador uma completa imersão relativamente aos que nos é contado.
Baseado numa novela de Robert Harris que também colaborou no argumento e conta-nos a história deste “erro” judicial começando pela cerimónia de remoção das insígnias do exército a Dreyfus, no meio de uma manifestação antissemita em que ele grita para a multidão e para todos os presentes a sua inocência, acusando a França de o excluir por ser judeu e não por terem provas irrefutáveis contra ele. Georges Picquart (Jean Dujardin) está nesta altura do lado dos acusadores, foi professor de Dreyfus, mas nega que seja por diferenças de religião a sua acusação. Este caso porem, conduz Picquart à chefia do departamento de investigação militar e à sua promoção a coronel.
É nessa qualidade que ele se confronta com a dúvida da culpabilidade de Dreyfus, sendo também a partir daqui que o filme se desenvolve no interior de ambientes poeirentos e escuros, mostrando alguns episódios da propalada “inteligência militar” em interiores claustrofóbicos onde trabalham os agentes da violação de correspondência, ou da reconstituição de documentos rasgados fornecidos por informadores a soldo, intrigas palacianas que mostram o sentido de autenticidade de Polanski na caracterização dos círculos de incompetência de que ele se vai apercebendo. Na realidade Georges Picquart é um produto do sistema, educado e formado no meio e também eivado do mesmo antissemitismo, todavia a confrontação honesta com indícios da cabala que foi montada contra Dreyfus, levam-no numa jornada de autoconsciência dolorosa, em que os seus princípios não permitem o encobrimento dos erros do sistema, com os inerentes custos para todos e principalmente para ele e para a sua amante, Pauline Monnier (Emmanuelle Seigner) que se vê também envolvida.
Por outro lado, Polanski serve-se desta história para estabelecer um paralelo entre a sua condenação por abuso sexual de uma menor em 1977, em que ele se declarou culpado, foi preso e libertado sob caução, mas na iminência de nova detenção, tomou um avião para a Europa, encontrando-se desde então na situação de foragido da justiça norte americana, a que ele atribui uma componente de antissemitismo, tal como no caso de Alfred Dreyfus e assim esbata as diferenças entre o antissemitismo pessoas e institucional.
Ele faz isso muito bem lidando simultaneamente com uma narrativa de suspense executada por atores de elevada qualidade interpretativa que evoluem numa fotografia sóbria, por vezes em cores sépia que adensam a ação. Para lá de tudo isso, sente-se a “mão” de Polanski como a de um pintor conhecido num quadro seu, não só na construção da imagem, como na sua exposição no melhor ângulo em que ela pode ser vista, e ainda, considerando que se trata de uma mentira, de um embuste montado para prejudicar um determinado homem, contém algo de muito urgente a dizer sobre o mundo em que vivemos. Recomendo vivamente.

Classificação: 8 numa escala de 10

11 de janeiro de 2020

Opinião – “1917” de Sam Mendes


Sinopse

Sam Mendes, o realizador vencedor de um Óscar® de 007: Skyfall, 007 Spectre, Revolutionary Road e Beleza Americana, traz a sua visão singular a este épico sobre a Primeira Guerra Mundial, 1917.
No auge da Primeira Guerra Mundial, dois jovens soldados britânicos, Schofield (George MacKay, Capitão Fantástico) e Blake (Dean-Charles Chapman, A Guerra dos Tronos), recebem uma missão aparentemente impossível. Numa corrida contra o tempo, têm de atravessar território inimigo e entregar uma mensagem que impedirá um ataque letal contra centenas de soldados, entre eles o irmão de Blake.
1917 é realizado por Sam Mendes, que escreveu o argumento com Krysty Wilson-Cairns (Penny Dreadful, da Showtime). O filme é produzido por Mendes e Pippa Harris (Revolutionary Road, Um Lugar para Viver) para a sua produtora Neal Street Productions, e por Jayne-Ann Tenggren (produtora associada, 007 Spectre), Callum McDougall (produtor executivo, O Regresso de Mary Poppins, 007: Skyfall) e Brian Oliver (Rocketman, Cisne Negro).

Opinião por Artur Neves

Literalmente e de acordo com o resumo reportado na sinopse, esta história trata-se de; “Levar a carta a Garcia”. Esta frase está ligada à guerra entre os Estados Unidos e Espanha por causa da renhida disputa sobre domínio da ilha de Cuba, em que o presidente norte-americano Wiliam Mckinley encomendou a um dos seus subordinados a tarefa de entregar uma carta ao comandante rebelde das forças de guerrilha, Garcia de seu nome, o que motivou ao militar ter de percorrer, montes, vales, selvas e praias para cumprir a empresa que o seu presidente lhe incumbiu. E é disto que trata este filme!...
Não se pense todavia, que por isso é um filme menor, não, longe disso. É uma história impressionante baseada num relato do avô do realizador, Alfred Mendes que participou na 1ª guerra mundial, sobre um aviso de emboscada às tropas inglesas, pelas tropas alemãs em retirada para a Linha Hindenburg, durante a operação Alberich, em Abril de 1917, em solo Francês.
Todo o filme reconstrói com bastante minúcia o ambiente vivido nesse conflito mundial de uma forma crua e realista através da magnífica fotografia de Roger Deakins que carateriza aquela paisagem árida, cheia de morte e desolação, com todos os tons possíveis de marron para nos fazer sentir o generalizado ambiente de abandono e morte, tanto na visão de uma guerra sombria e macabra, como na parte final, desesperada e alucinatória.
Inicialmente temos a caminhada sobre terra de ninguém, pelas trincheiras abandonadas e armadilhadas que iam custando a vida a Schofield. As casas abandonadas ao longo do caminho geradoras de medo pelo desconhecido, causando um horror casual e cuidados na sua progressão. A morte de Blake, quando este tentava socorrer um piloto de um avião alemão abatido, em que este lhe “paga” a ajuda com uma facada no ventre. É o horror da guerra e da desumanidade mostrando-nos que sempre que existam dois seres humanos geram-se diferendos.
Posteriormente o ambiente muda para uma neblina laranja, depois do encontro com uma aldeia em ruínas, um ferido alemão entrincheirado nas ruínas duma casa que dispara sobre Schofield e uma mulher que recolheu uma criança abandonada, embora sem meios para a alimentar, limpa-lhe as feridas. A fuga da aldeia, sob uma iluminação projetada de cima para baixo gerando sombras móveis das ruínas das casas destruídas assemelha-se a uma perseguição demoníaca. Não há qualquer lugar seguro, até as sombras são fugazes, não conferem qualquer proteção. Sam Mendes apresenta aqui uma realização técnica impressionante e um ambiente de holocausto muito bem conseguido, capturando todo o cenário assustador dos filmes de guerra.
Mais uma vez temos um filme que ilustra a futilidade da guerra, mas a guerra está na mente dos homens, faz parte da sua natureza e não são os 22 milhões que pereceram neste conflito que muda alguma coisa, ou sequer altera essa condição e com tal é útil ser lembrada, revisitada, com a proximidade deste filme que nos apresenta a banalidade dos seus objetivos.
Só que, Sam Mendes está a contar uma história do seu avô e conta-a de uma forma escorreita, direta, linear. Não á cortes da linha ficcional nem narrativas paralelas. É contada como se fossem criadas imagens ao sabor das palavras do narrador. É o que eu chamo; um filme para olhar. Quando acaba a história (quando a carta é entregue a Garcia) tudo se acaba. O próprio Schofield, consciente do dever cumprido senta-se junto de uma árvore nua a contemplar as fotos de família. Se não se registar algo na memória nada fica. É pouco para um globo de ouro, embora seja um filme de guerra de alta qualidade técnica.

Classificação: 8 numa escala de 10

6 de janeiro de 2020

Opinião – “A Despedida” de Lulu Wang


Sinopse

Nesta divertida e inspiradora história, baseada numa mentira de verdade, Billi (Awkwafina), nascida na China e criada nos EUA, regressa relutantemente a Changchun para descobrir que, embora toda a família saiba que a sua adorada avó Nai Nai tem poucas semanas de vida, decidiram em conjunto não contar nada à própria Nai Nai.
Para garantir a felicidade dela, reúnem-se sob a alegre fachada de um casamento acelerado, unindo membros da família espalhados pelo estrangeiro. Ao navegar pelo campo minado das expectativas e convenções da família, Billi descobre que há muito para celebrar: uma oportunidade para redescobrir o país que deixou em criança, o maravilhoso espírito da avó e os laços que se mantêm, mesmo quando muito fica por dizer.
A Despedida é uma celebração sincera, não só da forma como interpretamos a família, mas também da forma como a vivemos, construindo magistralmente uma representação delicadamente bem-humorada de uma boa mentira em ação.

Opinião por Artur Neves

Com a história resumida na sinopse anterior, de cariz muito simples e direto para poder desdobrar-se posteriormente nas apreciações dos comportamentos e na análise das motivações que justificam o comportamento acima descrito, pensava eu, o filme opta por enveredar pela tradição que o sustenta concentrando-se na escritora chinesa / americana Billi Wang (Awkwafina) e na sua deslocação imprevista a Changchun para participar na piedosa mentira que toda a família orquestrou para a poupar, não à morte anunciada, mas ao medo que o seu passamento lhe provocará, como acerta altura justifica a mãe de Bili, filha de Nai Nai (Shuzhen Zhao) sobre as razões do procedimento familiar para esta mentira.
Assim, até à data do casamento, imposto para suportar a mentira, a história desfila as diferentes relações interpessoais no seio da família através da representação dos rituais familiares chineses que à cultura ocidental podem parecer estranhos, infantis, poereis e algo idiotas, como por exemplo a prolongada e insistente conversa do empregado do hotel para se penitenciar da avaria do elevador que provocava a sua imobilização.
Bili, a chinesa assimilada que vive em Bushwick, Brooklyn, a neta e a filha que nem os seus pais convidaram para tal empreendimento, assume-se como ocidental que não encaixa na tradição, nos rituais e nas idiossincrasias familiares de que ela se afastou na grande cidade, embora nutrindo um amor pela sua avó que a faz vacilar na sua determinação e encarar os vários mundos a que está ligada, um por nascimento, outro por opção.
A argumentista e realizadora Lulu Wang, que estudou no Boston College, serve-se deste filme para apresentar os detalhes do seu povo e da sua cultura, como o elevador avariado, os preguiçosos funcionários que servem o copo de água do casamento, a decoração do salão de massagens e o efeito da própria massagem que não é de todo o esperado em mais um ritual de pré casamento. Depois temos a cerimónia, em que os noivos cumprem uma tarefa em vez de rejubilarem de amor. No banquete há discursos para todos os gostos, até o de um ex-camarada de armas (Nai Nai foi na juventude um soldado do exercito de Mao) e este aproveita o encontro com ela para lhe revelar o seu secreto amor de antanho.
Todo o filme é um conjunto de quadros familiares e sociais, mostrando pratos típicos chineses, humor subtil e algum arrependimento melancólico dos ressentimentos sentidos entre os familiares. A morte é a conclusão inevitável da vida e é mais dolorosa para todos os que ficam com o sentimento de perda que a morte de alguém próximo implica, todavia, Lulu Wang revela no final do filme que Nai Nai ainda está viva, seis anos após o diagnóstico que motivou toda esta trapalhada, o que mais uma vez me faz concluir: “muito barulho para nada”!...

Classificação: 5 numa escala de 10

PS: A estreante atriz Awkwafina (Bili, neste filme) foi a vencedora dos Globos de Ouro de 2020 na categoria de “Melhor atriz de Musical ou Comédia” contra; Ana de Armas, Cate Blanchett ou Emma Thompson. Embora ela desempenhe um personagem muito abrangente e muito empenhado neste filme, penso que ainda não merecia este galardão.

4 de janeiro de 2020

Opinião – “Uma Vida Escondida” de Terrence Malick


Sinopse

Baseado em factos reais, Uma Vida Escondida, o novo filme do visionário realizador Terrence Malick, retrata a história verídica de Franz Jägerstätter, um camponês e objetor de consciência austríaco.
Franz leva uma vida simples, mas gratificante, na quinta da família na aldeia montanhosa de St. Radegund, quando em 1940 é convocado para o treino militar do exército nazi, no início da Segunda Guerra Mundial. Mas Franz é incapaz de dedicar a sua lealdade a uma causa que considera injusta. Uma posição que o colocará em conflito direto com os membros da sua aldeia, com a sua Igreja e até mesmo com a sua família.

Opinião por Artur Neves

Terrence Malick é no mínimo um realizador controverso, ou se gosta ou se abomina a sua obra de tão diferente que se apresenta a sua visão fílmica de assunto para assunto que merece a sua atenção. “A Barreira Invisível” de 1998, sobre a guerra e a impercetível linha que separa os cobardes dos heróis é o meu preferido, não só pelo tema, como pela narrativa intimista com que o aborda, já “A Essência do Amor” de 2012, ou o inefável “Cavaleiro de Copas” de 2015 são na minha opinião duas pessegadas de indescritível pasmaceira, que sob o manto diáfano da contemplação das atitudes humanas e da natureza, exprimem sentimentos.
Desta vez ele aborda um caso real de objecção de consciência de Franz Jägerstätter (August Diehl) um camponês austríaco que morava com sua esposa Fani (Valerie Pachner) e suas três filhas numa aldeia montanhosa que os isolava do mundo e lhes permitia viver idilicamente o seu recíproco perfeito amor, num estágio perpétuo de lua de mel.
A segunda guerra mundial vem gorar a sua felicidade ao convoca-lo para se alistar no exercito nazi. Ele recusa a convocação, bem como, o juramento de fidelidade à causa hitleriana, não obstante ser preso e arriscar a execução por enforcamento como traidor. A sua amada Fani, embora ficando em casa a trabalhar na fazenda, não se livra do escárnio dos outros moradores da aldeia, revoltados pela desobediência a que eles também se viram obrigados a cumprir.
Este é um tema metafísico de um homem comprometido com as suas crenças e com a sua devoção a Deus, que causa perplexidade, porque mais ninguém no mundo se importará com o seu sacrifício ou com a defesa das suas causas, porque a sua atitude não fará grande diferença no desígnio das coisas e até talvez Deus não valorize particularmente a sua postura moral, considerando que Hitler se propunha exterminar o povo judeu e todos os dissidentes dentro do sistema seriam bem vindos.
Aliás, o verdadeiro problema reside na assinatura de um papel em que ele prestaria um juramento de lealdade a Hitler, não o obrigava a lutar, ele poderia desenvolver outra actividade durante a sua permanência no exército, mas Franz recusa-se veementemente a comprometer as suas crenças enquanto a sua amada esposa e os seus filhos sofrem o ostracismo dos vizinhos e a impossibilidade de manter o trabalho na fazenda. Na estética religiosa qual será o maior pecado, assinar o papel e manter para si as suas convicções, ou permitir que Fani e os filhos sofram, pela fanática devoção às suas crenças?...
Todavia, Malick não se prende demasiado a estas devoções de fé e prefere mostrar-nos a beleza da montanha, as paisagens pastorais e a natureza na sua essência que quase se assumem como outro personagem do filme. Detém-se também no amor que os esposos nutrem entre si, nas cartas que escreve para sua esposa e lê em voz alta na prisão, bem como, nas respostas dela, numa comunhão etérea de amor, algo comovente e também pretensioso, porque inútil e irresponsável.
É isto que Malick nos oferece durante 180 minutos, que alegrará os fans, não duvido, mas aos outros, os profanos, onde irão buscar suporte e paciência cristã para o aturar. Que lhes reste a consolação que em 2007 o papa Bento XVI beatificou o verdadeiro Franz Jägerstätter pela sua conduta na guerra que é apenas um degrau abaixo da canonização.
Não poderemos desqualificar a fotografia do filme que é deveras fabulosa, particularmente se vista no cinema em ecrã de grande dimensão e para ela vai 80% da classificação indicada.

Classificação: 6 numa escala de 10