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27 de fevereiro de 2016

Opinião - "Meu Rei" de Maïwenn


Sinopse:
Tony é admitida num centro de reeducação após uma grave queda de ski. Dependente do pessoal médico e dos analgésicos, recorda a história tumultuosa que teve com Georgio. Por que razão se amaram? Quem é realmente o homem que ela adorou? Como pode ela submeter-se a essa paixão sufocante e destruidora? Para Tony é uma difícil reconstrução que se inicia, um trabalho corporal que lhe permitirá talvez libertar-se definitivamente…

Opinião por Marta Nogueira
O cinema francês está vivo e de boa saúde. Recomenda-se, pelo menos a avaliar por este filme magnífico da actriz/realizadora Maïwenn, vencedora do prémio do júri de Cannes em 2011 com o filme Polisse. Foi de novo nomeada para a Palma de Ouro com este "Mon Roi" mas quem levou a estatueta para casa foi a actriz principal que interpreta a personagem Tony, Emmanuelle Bercot, com a sua absoluta tour de force magnífica.
Esta é a história de um relacionamento que tem tudo para dar certo se os seus dois componentes fossem diferentes. E não é sempre assim que todas as relações acabam por acabar? Ah se tu fosses diferente ... A certa altura Georgio afirma uma velha máxima dos relacionamentos: "As pessoas acabam sempre por se separar do seu amado precisamente pelas mesmas razões que as levaram a sentirem-se atraídas por ele no início." Tony sentiu-se ao mesmo tempo atraída e repelida pelas características efusivas e perigosas de Georgio, o dono de um restaurante que aprecia boa comida, bom vinho, boas mulheres (as suas namoradas anteriores parecem ter sido todas modelos), boa conversa, boas noitadas, em resumo, a boa vida, sem preocupações, sem responsabilidades, sem rótulos e, sobretudo, sem rédeas. Georgio é efusivo, divertido, por vezes excessivo, sensual, bom amante, aventureiro, enfim, surpreendente. E Tony apaixona-se perdidamente por ele e nós assistimos a esta paixão assolapada quase ingenuamente, acreditando que Georgio, aquele homem transbordante de vida, também está a apaixonar-se perdidamente por esta sua nova conquista.
A pulga atrás da orelha começa a beliscar-nos muito levemente quando uma noite, enquanto engoma para se acalmar (talvez um sintoma de uma mente um pouco maníaca), Georgio afirma convictamente que quer ter um filho de Tony imediatamente, que nunca sentiu semelhante apelo por mais nenhuma mulher. Nessa altura, falarei em nome do público feminino, recordamos subitamente que ele há umas cenas atrás também tinha dito, primeiro que ela (!) que a amava e que Tony lhe tinha respondido que não era possível ele amá-la assim já, tão depressa. Claro que não. Mas nessa altura do campeonato o espectador (provavelmente sobretudo as espectadoras) ainda estava completamente sob o efeito do feitiço mágico daquele homem demasiado bom para ser verdade. Sim, recordamos, é verdade que os homens raramente dizem primeiro que nos amam e raramente o dizem tão cedo na relação, a não ser que ...
Devagar, ao mesmo ritmo de Tony, vamos descobrindo que Georgio, para além de todas as características já mencionadas, é também egocêntrico, egoísta, absolutamente centrado no seu próprio umbigo, está habituado a fazer o que quer e bem lhe apetece, não hesita em tomar decisões completamente absurdas e malévolas para a continuação da sua relação com Tony, sem atender ao facto de ela estar grávida e a passar por uma fase demasiado delicada para ter que suportar as loucuras de Georgio.
Como o seu irmão e a sua cunhada, nós espectadores começamos a perceber que aquele homem não é exactamente o que parecia de início e percebemos, olhando para trás que, claro que nunca poderia ter sido o que desejaríamos que fosse. A vida não é assim. Tony leva muito mais tempo a perceber isso. Bastante mais tempo. Passa por várias fases. A seguir à paixão avassaladora, à surpresa da descoberta de pequenos detalhes, seguem-se a varridela para debaixo do tapete de outros tantos, a reivindicação das suas vontades, a tentativa de negociação, a negação, a aceitação, a raiva, a ira, a loucura, a apatia, mas nunca o ódio.
Maïwenn consegue o que nunca vi em mais nenhuma história de casais que resvala para o abismo absoluto - uma veracidade, uma autenticidade, um ritmo que respeita o ritmo da vida e que não cede concessões ao ritmo bem diferente do filme de cinema. A história arrasta-se mas nunca suspiramos de tédio ou nunca julgamos que determinados pormenores foram por demais esmiuçados e que não havia necessidade. Não. Aquilo é como as coisas acontecem. Ninguém percebe num flash que afinal estava diante do mau da fita, como acontece invariavelmente nos enredos cinematográficos. As pessoas vão percebendo, devagarinho, vão retrocedendo, vão negociando consigo mesmas, vão-se deixando cair em contradições, avançam e recuam, por vezes, como vimos a descobrir com Tony, acabam mesmo por nunca abrir completamente os olhos, nem diante das mais óbvias, cruas e crassas evidências. A realizadora consegue até fazer-nos reflectir sobre a possível versão de Georgio dos acontecimentos, quando ele afirma "Foste tu que me escolheste. Foste tu que vieste ter comigo. Já sabias como eu era, para que vieste?" É verdade. É verdade. Mas se todos soubéssemos o que sabemos hoje, quantas coisas não teríamos feito de forma diferente? E se assim fosse, viveríamos? Talvez não. Se a vida viesse com um livro de instruções, não seria vida, seria um conjunto de templates sucessivos, de experimentações sem alma.
Duas lições se levam deste filme, lições que, falo por mim, já tinha aprendido, mas que acabei por reforçar - que as mulheres são deusas sofridas e que as pessoas têm exactamente aquilo que merecem. Explico: As mulheres são deusas, fortes, belas, capazes de tarefas hercúleas e fardos inconcebíveis. E são, ao contrário dos homens, capazes de aguentarem até ao infinito situações impossíveis. Estará no ADN, o útero a isso obriga antropologicamente falando, já sabemos as lições de história. O homem espalha a sua semente por todo o lado e, como tal, não vive esse sedentarismo resolutivo tão intensamente. Mas os homens que não entendem que as mulheres são deusas, perdem muito. Perdem o mundo inteiro. Porque é isso que uma mulher é capaz de dar quando é bem tratada.
As pessoas têm exactamente aquilo que merecem. Não existe destino, má sorte ou azar. Existimos nós e as nossas escolhas. Não podemos culpar ninguém pelas nossas desgraças, a não ser nós próprios. Há sempre uma solução - sair porta fora. Quando Tony faz uma rutura de ligamentos no joelho que a obriga a uma recuperação demorada e penosa, finalmente percebe que só pode contar consigo e com mais ninguém. Que se quiser voltar a andar, ela tem de querer andar. E que pode voltar a andar nos seus próprios termos, apesar do que os outros sejam. É isso que fica da última cena do filme. Poderá parecer que Tony ainda tem esperança. Não interpretei dessa forma. Ela continua nos seus termos, sem precisar de se rebaixar ao nível do outro que a não quer mais.
As críticas a este filme não são unânimes. Há quem o ache um produto execrável. Há quem o ache uma história magnífica. Não analisei a sua proveniência, mas arrisco dizer que talvez os homens não fiquem muito confortáveis, e as mulheres compreendam melhor esta tragédia. Uma nota final para Vincent Cassel, que aqui tem também o melhor papel da sua carreira.

24 de novembro de 2015

Opinião - “Youth” de Paolo Sorrentino


 
Sinopse:
Um maestro reformado passa férias nos Alpes com a sua filha e o seu melhor amigo que é realizador de cinema, quando recebe um convite da Rainha de Inglaterra para dirigir a orquestra no aniversário do príncipe Filipe.
 
Opinião por Marta Nogueira
Foi Oscar Wilde quem afirmou que a juventude é o bem mais precioso que possuímos. Mais do que a beleza, tão apreciada pelo autor irlandês, a juventude é o maior tesouro do ser humano. Talvez porque a juventude é sinónimo de dois verbos fundamentais – acreditar e desejar.
É precisamente disso que trata o segundo filme de língua inglesa do realizador italiano Paolo Sorrentino, galardoado em 2014 com o oscar de melhor filme estrangeiro por “A Grande Beleza”. Arrasta, por enquanto, algumas boas expectativas, pois chegou a ser nomeado para a Palma de Ouro do Festival de Cannes deste ano, embora não tenha vencido.
Este belíssimo filme de Sorrentino segue o estilo técnico apresentado em “A Grande Beleza”, mas consegue ser mais interessante do ponto de vista do enredo, e irá certamente agradar a um público mais vasto, sem comprometer as suas qualidades. Sorrentino equilibra de uma forma soberba a poesia e a respiração das imagens com uma história apelativa, ternurenta, trágica e com piscadelas de olho humorísticas, sem nunca resvalar para o excessivo melodrama ou a profundidade demasiado críptica de algum cinema europeu de autor. Para isso, também contribuiu a escolha dos actores principais – os veteranos Michael Caine e Harvey Keitel, ambos em estado de graça, e os mais jovens mas competentíssimos Rachel Weisz e Paul Dano. Não esquecendo uma aparição fugaz mas tremenda da magnífica Jane Fonda.
Enquanto repousam num hotel de luxo alpino, os dois artistas amigos discorrem sobre o passado, o presente e o futuro, à medida que se vão cruzando com outros hóspedes a atravessarem diversas crises existenciais – um actor em pleno estudo de personagem, uma velha glória do futebol deliciosamente parecido com o Diego Maradona obeso de há uns tempos atrás, a filha e assistente do compositor e maestro a experimentar uma irreversível crise conjugal, e umas quantas outras personagens passageiras que incluem uma massagista introvertida, uma prostituta de luxo, uma Miss Universo e um casal idoso em permanente silêncio.
Nesta “montanha mágica” de Sorrentino, onde o tempo parece também deter-se à semelhança da de Mann (uma parte do filme foi de facto filmada no hotel que serviu de inspiração ao escritor para o seu romance), aquilo que parece, quase nunca é. Num ritmo sincopado e suave, à semellhança daquele que o velho maestro vai procurando em tudo o que observa, Sorrentino oferece-nos uma melodia nostálgica sobre a juventude, a velhice, a doença, a morte, o desejo e a vida. Cada personagem deambula por um imaginário real próprio que contribui como um instrumento para o conjunto desta orquestra, e ninguém desafina. Nem o realizador, que consegue compor uma harmonia subtilmente bela, límpida e equilibrada, composta por todos estes universos distintos, nem os actores que a tocam virtuosamente mas sem exagerados alaridos – excepção gentilmente concedida à grande Fonda que tem um momento histriónico sublime.
Jimmy, o actor em pesquisa para um papel desconcertante, conclui que após observar os hóspedes do hotel, tem de escolher entre representar o horror ou o desejo e decide escolher o desejo. Ele quer contar o desejo, tão puro, tão impossível, tão imoral que não importa, porque é isso que nos faz estar vivos.
Todos os personagens desejam ainda a vida, apesar de velhos, cansados, desiludidos, ou perdidos. Para uns é patético, como o obeso Maradona tentando malabarismos impossíveis com bolas de ténis, para outros é teimoso, como o velho cineasta que guarda o mesmo entusiasmo da juventude, para outros ainda está latente sob uma capa de aparente apatia, como o velho compositor. Mas em todos ele continua presente, até ao último sopro de vida. Creio ser essa a mensagem principal de Sorrentino – que a juventude permanece em nós, mesmo quando as rugas e as maleitas se apoderam dos nossos corpos, enquanto existir vontade de continuar a tocar as sinfonias das nossas humildes vidas.