27 de junho de 2020

Opinião – “O Resto de Nós” de Aisling Chin-Yee


Sinopse

Quando o ex-marido de Cami Bowden (Heather Graham), Craig, morre repentinamente de um ataque cardíaco, a vida perfeita que Cami criou começa a desfazer-se. No funeral de Craig, Cami e sua filha adolescente Aster (Sophie Nélisse) encontram Rachel (Jodi Balfour), a segunda esposa muito mais jovem de Craig, por quem ele deixou Cami, e Talulah (Abigail Pniowsky), a segunda filha de Craig, que está evitando o processo de luto. Rachel, tendo passado grande parte de sua vida adulta como esposa que fica em casa, revela a Cami que Craig escondeu uma infinidade de dívidas e que a casa deles terá de ser vendida - Rachel e Talulah ficarão sem casa ou com qualquer cêntimo em seu nome enquanto esperam que a apólice de seguro de vida de Craig se execute. Movida pela precária situação de Rachel, Cami oferece relutantemente a sua casa para ambas morarem temporariamente. Agora, juntas sob o mesmo teto, as mulheres processam a sua tristeza e raiva pela morte de Craig e procuram um significado e direção para as suas vidas. Durante este tempo, velhos segredos e conflitos de lealdade ameaçam fragilizar o tênue equilíbrio em torno deste grupo.

Opinião por Artur Neves

Aisling Chin-Yee cofundadora do movimento #MeToo é uma produtora e recente realizadora de origem chinesa, estabelecida em Montreal, Canadá que nos traz um argumento de Alana Francis e uma estreia destas duas colaboradoras em longas-metragens de cinema, adaptando o romance de Patrick Ness; “The Rest of Us just Live Here”, sobre um tema pouco explorado, talvez pela raridade de casos reais conhecidos e pelo criticismo inerente à situação de coabitação de duas mulheres casadas com o mesmo homem em tempos diferentes e atualmente viúvas, cada uma com a sua respetiva descendência.

Este tema, sobre o qual não me vou alongar considerando que a sinopse é suficientemente elucidativa, tem sido abordado de forma jocosa, como motivo de paródia da relação estabelecida e nunca com a generosidade comovente, engraçada e por vezes maliciosa de uma relação improvável entre duas mulheres e as suas respetivas filhas que apesar da diferença etária significativa que as separa, uma adolescente e outra infantil, competem entre si pelos seus direitos e com meios difíceis de imaginar á partida.

Observada globalmente, esta história pode descrever-se, como a influência de um homem, relacionado a diferentes níveis com cada elemento deste quarteto de mulheres em diferentes estágios da vida, e a importância para cada uma que ele teve durante o tempo de convívio, de época social, de preconceito, de convenção assumida no estilo de vida que todas viveram. Não se pense que é projeto fácil se for pretendida uma abordagem honesta e credível, sendo o primeiro defeito que lhe aponto a sua limitada duração de 80 minutos para desenvolver um quadro tão complexo de emoções contraditórias e de relações humanas.

Este facto faz com que a história apresente personagens de espírito ágil, com resoluções simplistas e breves para situações complexas sem deixar amadurecer as contradições que as repelem, ou as semelhanças que sem quererem admitir, as torna próximas entre si subordinadas a um modelo comum de relacionamento, todavia pela exiguidade do tempo disponível tudo tem de ser dirimido em tom breve e superficialmente.

Repare-se que Aster, por exemplo, tem um segredo que envolve o namorado e como tal distancia-se das opiniões de Cami, cedendo. Talulah por seu lado, na sua infantilidade, assume um estado de negação em relação à morte do pai que reproduz em certa medida a repulsa de Rachel à memória de Craig, responsabilizando-o pelo estado de pobreza em que ele as deixou, decorrente de vários negócios sem sucesso.

De todas estas contradições, acusações mútuas, e os impasses daí decorrentes vai lentamente nascer um espírito de solidariedade comum nunca antes imaginado que promove um espírito de equipa e uma condescendência onde antes só existia azedume. Aster opta por proteger a sua meia-irmã quando antes a repelia. Cami verifica no estado de fragilidade emocional de Rachel um motivo para justificar a sua própria existência, numa altura em que Aster prepara a sua emancipação. São tudo processos que requerem tempo, não só para serem descritos como para serem ilustrados e não pode culpar-se o quarteto de atores que com toda a qualidade desempenham os personagens que lhe são confiados.

É pena… ainda assim, pode ser visto na plataforma de streaming; Prime Video – Amazon

 Classificação: 5 numa escala de 10


25 de junho de 2020

Opinião – “Matthias e Maxime” de Xavier Dolan


Sinopse

Quando uma amiga em comum pede a Matthias (Gabriel d’Almeida Freitas) e Maxime (Xavier Dolan), dois amigos de infância, para filmar uma cena de um beijo entre ambos para uma curta-metragem amadora, eles aceitam. O que não poderiam prever era que esse momento de intimidade tivesse tal efeito dentro de si, confrontando os dois rapazes com as suas preferências sexuais, e que alterasse tão completamente a forma de se verem um ao outro...

Opinião por Artur Neves

Este filme foi estreado no Festival de Cinema de Cannes de 2019, escrito, realizado e protagonizado por Xavier Dolan e só serviu para acentuar, mais uma vez, a sua própria escolha de orientação sexual, pois como abordagem e desenvolvimento do tema na análise profunda de uma tendência que se tende a normalizar com o passar do tempo e com a assunção de mais interpretes, nada de novo nos traz.

Xavier Dolan não é propriamente um estreante nestas andanças onde já apresentou em 2013 “Tom na Quinta” onde o desenvolvimento da homossexualidade está bem representada com os seus silêncios, frustrações e sonhos perdidos que nos deixa perplexos ao contemplar nesta história o apagamento dessa ansiedade, ainda genericamente não assimilada socialmente que neste filme se centram em diversas reuniões entre amigos, comes e bebes em família, onde paira um clima de vacuidade e suspensão, não diretamente induzido pela história, mas antes pelo que o espectador poderia esperar que ele fosse desenvolvido desde a primeira cena do beijo que dá motivo ao argumento.

Mas não, Matthias desenvolve um personagem equívoco, hesitante, sempre inadequado no sítio onde se encontra, com olhares furtivos e inexpressivos em diferentes direções e para diferentes intervenientes em ações avulsas cujos objetivos não são explícitos por tão inconsequentes que se apresentam.

Poe outro lado, Maxime já é um personagem mais presente, tanto no convívio com os outros como nas discussões com a sua mãe, a quem controla o dinheiro e os gastos de casa, recuperando alguns tiques do seu argumento para “Mamã” de 2014, embora noutro contexto. No seio da sua família ele usa a sua irmã mais nova, voluntariosa e perfeitamente integrada na “Geração Z”, bem como as tias e mães dos seus amigos como representantes do estereótipo de uma sociedade que não considera a sua geração como séria, mas não passa daí e se teve intenção de evoluir ou escamotear esse tema como direta incidência nas suas escolhas, não passou de intenção.

Assim, de reunião em encontro, esgotam-se duas semanas antes da partida de Maxime para a Austrália apresentadas em flashback (aqui também não se percebe o interesse da alteração temporal, considerando que este tema pretensamente construído com tensão crescente, teria mais sentido na sequência lógica dos eventos) onde nada de relevante se passa para o propósito da história sentindo-se um vazio total da narrativa que sem querer ser grosseiro, mas antes realista, classifico como um tempo de “encher chouriços”.

A amizade entre os dois foi afetada desde o início do filme e isso transformou a relação entre eles que deveria ter sido apreciada e desenvolvida ao longo da história entre os dois personagens, mas não, acentua-se o protelamento da situação que fica reservada para o jantar de despedida em que Matthias faz um discurso ininteligível, abandona o jantar subitamente, mas depois volta para nos apresentar uma cena de amor tórrido com Maxime, porém inconsequente e inconclusivo sobre as suas opções.

No dia da partida, cabe ao espectador decidir, escolher, o que seja, qual foi a decisão de Maxime… ora bolas para isso não devia ter sido necessário esperar 120 minutos. Uma desilusão…

O filme está em exibição no cinema Trindade, da cidade do Porto

Classificação: 4 numa escala de 10

20 de junho de 2020

Opinião – “Vítima e Carrasco” de Mário Martone


Sinopse

Quando sua mãe morre aparentemente feliz, mas em circunstâncias curiosas e surpreendentes, sua filha Delia viaja para Nápoles para assistir ao funeral. Permanecendo na cidade ela tenta compreender o que foi a vida recente de sua mãe, começando a confrontar memórias de infância e procurando os seus protagonistas para reconstruir, com um olhar adulto, o que foi a história de família.

Baseado no romance de Elena Ferrante, L'Amore Molesto foi um dos filmes mais marcantes do Festival de Cannes de 1995. Mario Martone mergulha nas ruas de Nápoles, cidade de muitas cores e contrastes, onde Delia vive um tempo entre o passado e o presente, entre uma realidade e a imaginação fundamentada na memória.

Opinião por Artur Neves

Mais uma vez, o título atribuído em Portugal a este filme não contempla a subtileza que o romance de Elena Ferrante aborda, na história de um amor submisso entre uma mulher e seu marido possessivo e dominador, que exibe um autoritarismo que revela a sua própria fraqueza e frustração perante si próprio e perante a sua arte de pintura, que permanece ignorada do grande público que ele pretende conquistar.

Na interpretação direta do título português podemos inferir que o “carrasco” é o agente que mata a “vítima” quando na realidade o “carrasco” mais não é do que um pobre pintor de arte, andrajoso e solitário que vive em condições precárias e frequentemente bêbado, quando é descoberto em Nápoles por Delia (Anna Bonaiuto) em demanda das suas memórias e que no auge da sua vida, quando Délia o recorda na sua infância, reconhecia sem admitir que possuía mais mulher do que ele era homem para ela.

Delia é uma artista gráfica napolitana que vive em Bolonha e recebe um telefonema estranho de sua mãe Amália (Angela Luce), rindo abundantemente e mostrando uma alegria para a qual Delia não encontra motivos diretos nem tão pouco nos ruídos ambientais circundantes de onde a mãe lhe telefona. A chamada é curta, sem assunto definido e acaba abruptamente entre risos que soam a impaciência e nervosismo. Delia facilmente depreende que algo aconteceu, ou está acontecendo e tenta reatar a chamada sem sucesso. A mãe não atende. Poucos dias depois recebe uma chamada de um amigo, Filippo (Gianni Cajafa) tio de Delia, participando-lhe o falecimento da sua mãe que lhe motiva a deslocação a Nápoles.

Durante o funeral, na companhia das irmãs e do tio que a avisou, observa uma discussão acalorada entre Filippo e a figura perturbadora de um homem idoso que não conhece, não se apresenta nem lhe permite aproximar-se dele para conversar. O tio acusa-o como responsável pelo até aqui, alegado suicídio de Amália e isso adensa o mistério sobre as causas da morte de Amália que Delia se propõe investigar, nos dias seguintes ao funeral.

Começa então a “via sacra” de percorrer os últimos dias de Amália, habitando a sua casa, analisando os seus pertences e procurando entre os objetos e as memórias que estes lhe suscitam, explicações para o sucedido. Visita o seu pai (Italo Celoro) que continua na sua situação de falhado e atualmente mais velho e sem esperança e finalmente cruza-se com Caserta (Giovanni Viglietti) a tal figura misteriosa que viu no funeral, testemunha dos últimos momentos de sua mãe, seu amante, seu confidente, seu companheiro e apoio em todas as loucuras que a personalidade exuberante de Amália teimava em prosseguir.

Toda a história é nos contada no presente e no passado correspondente e tem contornos de thriller que o realizador não soube ou não quis aproveitar por respeito à obra que lhe deu origem. Só que, no centro desta história estaria Amália com todo o seu exotismo, sensualidade e força de mulher que o realizador transpõe para Delia. Esta porém, vítima de uma infância modesta, sob o jugo de um pai autoritário, perde-se entre as perguntas que formula através das suas memórias e as respostas que não quer ouvir por demasiado dolorosas. Caserta não lhe conta mais do que ela já sabe e a fotografia de Luca Bigazzi, mais preocupado em mostrar a beleza de Nápoles e a sua atmosfera humana, bem como a musicalidade do dialeto local deixam em segundo plano um enredo que fica à espera de ser contado de outro ponto de vista.

É ainda assim um filme interessante que concentra em Delia, (vestida com o vestido de sua mãe e que ela não acreditava que fosse), que ao percorrer em exaltação os lugares mais significativos de Nápoles nos conta uma história que se adivinha mas de que pouco se vislumbra.

Disponível na plataforma Filmin por €2,95, pesquisável pela designação em português.

Classificação: 5 numa escala de 10

17 de junho de 2020

Opinião – “Irmãos de Armas” de Spike Lee


Sinopse

Do vencedor do Oscar, chega uma nova história oportuna e chocante de quatro veteranos afro-americanos; Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis) e Melvin (Isiah Whitlock, Jr.) que retornam ao Vietnam alegadamente, para procurar os restos mortais do seu líder de esquadrão caído em combate, Stormin Norman (Chadwick Boseman) e a promessa de recuperar o tesouro enterrado por eles na sequência da queda do avião que o transportava. Os nossos heróis são acompanhados pelo filho preocupado de Paul, David (Jonathan Majors), que os promete ajudar na força de combate entre o homem e a natureza, enquanto são confrontados pelos estragos duradouros, físicos e emocionais, da imoralidade e irracionalidade da guerra do Vietnam.

Opinião por Artur Neves

Com uma oportunidade digna de nota Spike Lee apresenta-nos um filme que resgata a participação dos negros americanos na guerra do Vietnam, numa altura das mais intensas manifestações anti racistas nos USA na sequência do assassinato do afro americano George Floyd às mãos (literalmente; sob o joelho) de um polícia de Mineápolis no dia 25 de maio de 2020. Este facto conduz a que este filme relembre a participação dessa população no conflito que traumatizou a América nos anos 60 e questiona a definição e o conceito de “supremacia branca”, e de “verdadeiros americanos”, quando homens e mulheres negras continuam a servir e a morrer pelo país noutros conflitos ao redor do mundo.

Com o resumo da história descrito na sinopse o filme começa com imagens reais de conflitos raciais anteriores, tal como a declaração de Muhammed Ali em 1978 de que “os vietcongs eram menos racistas do que o povo do seu próprio país” e que lhe custou o prémio de campeão de pesos pesados, seguindo com outras manifestações de protesto conhecidas à época e terminando com a morte de Martin Luther King Jr, como ensaio político sobre a violência histórica que a história pretende documentar.

Dos quatro amigos que se encontram na atual cidade de Ho Chi Minh, Saigão, cada um apresenta uma personalidade particular bem definida em que; Paul é um fervoroso adepto de Trump, Otis, o mais sério e responsável de todos, controla a aventura, Eddie, um empresário de sucesso (que posteriormente saberemos que não é bem assim) rico e gastador e Melvin que se apresenta como o mais apagado e indefinido de todos, constituem uma equipa de “irmãos de armas” cujas diferenças se vão acentuando ao longo da história de 154 minutos que não se sente tédio ao passar, decorrente da sua movimentada ação, sempre mostrando um frémito de energia e surpresa em cenas de elevado dramatismo.

O encontro entre os veteranos de guerra é de descontração, amizade e recordação à mesa de um bar chamado Apocalipse Now que nos trás memórias e sugere traumas. É o cinema a alimentar o cinema que só os bons realizadores sabem utilizar.

Os sucessivos eventos da história vão sendo apresentados tecendo uma intriga de textura multivariada de diálogos, gestos, atitudes e propósitos objetivos inconfessáveis, pondo em destaque a competência de Spike Lee para a ilustração de assuntos difíceis, já demonstrada nesse outro filme que também aborda o tema do racismo; “BlackKklansman” de 2018, em que os elementos de controvérsia política estão intrinsecamente unidos no diálogo entre a população de uma cidade e sua polícia local.

Com o desenrolar da ação vai-se tornando difícil distinguir a ironia entre amigos, da lealdade castrense e dos objetivos individuais que lentamente vão revelando a sua verdadeira natureza, graças aos extraordinários atores que desempenham personagens credíveis em fervor de conflitos e nuances de comportamento, manifestamente inspirados pelo sóbrio argumento escrito por Lee e Kevin Willmott, que nos trás outra leitura da guerra do Vietnam que nunca tinha sido abordada até agora, com muitas referencias explicitas ao legado americano em Saigão, tais como, os estabelecimentos de fast food, Pizza Hut, Rambo ou Chuck Norris como heróis remanescentes de uma guerra inútil.

“Da 5 Bloods” no título original, é uma experiência ainda desagradável da guerra do Vietnam que contém comédia, dor, morte e ganancia, como se uma guerra nunca terminasse depois de começada. Também tem alegoria à santidade, com a aparição do falecido Stormin 'Norman que perdoa Paul pela sua morte, como Cristo aos fariseus, mas fundamentalmente oferece-nos uma justificação condenatória sobre a relação entre racismo e guerra, com uma paixão alucinada de imagens e ideias fortes. Muito bom, recomendo.

Atualmente só pode ser visto na plataforma Netflix desde 12 de Junho.

Classificação: 8,5 numa escala de 10

13 de junho de 2020

Opinião – “Os Tradutores” de Regis Roinsard


Sinopse

Nove tradutores foram escolhidos por uma editora implacável e trancados em um bunker luxuoso para traduzir o livro altamente antecipado, de um autor famoso, em tempo recorde. Embora os tradutores estejam confinados e vigiados à vista para evitar qualquer tipo de fuga de informação por causa dos grandes riscos financeiros, uma crise irrompe quando alguém publica na internet as primeiras dez páginas do romance e chantageia a editora a pagar 5 milhões de euros.

Opinião por Artur Neves

No retorno possível e tímido às salas de cinema com todas as reservas impostas pela pandemia eis que temos este “Os Tradutores” estreado ontem, 12 de Junho, nos cinemas City, pela mão da distribuidora Cinemundo, no género thriller, bem ao jeito do cinema Hitchcockiano (se é que o conceito existe) por nos mergulhar num enigma aparentemente impossível de acontecer, considerando as condições reservadas aos tradutores que foram selecionados para fazer a tradução em várias línguas de “Dédalus” o ultimo volume de uma trilogia escrita por um autor francês que se remete ao mais completo secretismo da sua personalidade, publicitando somente o seu nome.

Deixo aqui uma nota especial para a atris portuguesa Maria Leite, que desempenha o papel da personagem escolhida para a tradutora de português. Não comento as caraterísticas da personagem em si, determinadas pelo argumento da história, acrescentando somente tratar-se de um personagem new wave não muito comum na sociedade portuguesa, particularmente neste ramo de negócio. Penso tratar-se do reflexo como os outros vêm a nossa cultura e o nosso povo. Do ponto de vista da representação, o personagem está muito bem conseguido e Maria Leite, que pertence ao quadro fixo de atores do Teatro Nacional São João no Porto, não ficou diminuída na confrontação com alguns consagrados.

Regis Roinsard o realizador francês responsável pelo projeto apresenta como antecedente “A Datilografa” de 2012, uma comédia romântica na área do trabalho de escritório em 1958, com todos os maneirismos e convenções da época, que não serve de indicativo para este filme que documenta a loucura do estado de desvario e obsessão com o roubo de direitos da indústria editorial, que se por um lado beneficiou com a desenvolvimento tecnológico, por outro, sofre horrores com a cópia pirata e com os royalties perdidos.

Nesta história cria-se o suspense pela forma como os acontecimentos que foram antecipadamente previstos e acautelados, ocorrem de surpresa, ainda com o processo de tradução a decorrer e com a revelação das dez primeiras folhas serem divulgadas na internet. Decorrente dessa ameaça todo o ambiente de rotina maçadora inerente ao trabalho de tradução é alterado e todos os eleitos passam a ser suspeitos da fraude, seguindo-se pela tentativa de descoberta do responsável.

Isso implica uma sequência agitada de denúncia, acusação, defesa e meios de segurança que nos parecem forçados para o tema abordado. A literatura nunca despertou emoção ou twists muito movimentados na sua confeção, pelo que apesar de toda a agitação, falta em adrenalina o que excede em complicação e formalismo, muito embora enfatize que apesar da implícita rotina do trabalho de tradução, escrever é um ato solitário em que se tenta condensar toda a criatividade na capa ou na imagem que representa a história.

O verdadeiro criador pode usar técnicas modernas que todavia não interferem com o ato de criação á moda antiga, por vocação, dedicação, sem olhar ao tempo dedicado á criação ou aos proveitos dela obtidos que tem como exemplo máximo Marcel Proust e o seu extenso “Em busca do Tempo Perdido” citado no filme pelo editor. O suporte em papel está na genética do livro. O suporte eletrónico, embora moderno e atual, propicia o roubo e a falsidade e no mundo atual em que o que existe tem de dar lucro para permitir ser continuado, a história de Regis Roinsard bem pode ficar por aqui, pois esgota-se no fogo que a consome e aos livros.

É daqueles filmes que nos prendem enquanto duram, mas no retorno ao grande ecrã e com uma história intrincada de crime e fuga só pode ser recomendável.

Classificação: 6 numa escala de 10

9 de junho de 2020

Opinião – “K.O.” de Fabrice Gobert


Sinopse

Antoine Leconte é um homem de poder - arrogante, dominante em seu ambiente profissional e vida pessoal. Admirado por alguns, odiado por outros, nada e ninguém resiste a ele ... Até o dia em que um de seus funcionários o ataca brutalmente. Quando ele recupera a consciência no hospital, nada é como era: Antoine se encontra no lugar de um homem comum, descendo a escada social e profissional - e ao seu redor, todos os papéis são invertidos. Isso é um sonho ou realidade? Uma conspiração? Um pesadelo? Esgotamento? ... Determinado a reerguer-se, Antoine terá que lutar para recuperar tudo o que perdeu, sonho ou realidade? Será uma conspiração contra ele? Ele está K.O.

Opinião por Artur Neves

Classificado como thriller, mas sugerindo um género na área do drama psicológico, este filme apresentado em antestreia na Festa do Cinema Francês de 2017, traz-nos uma história que dificilmente interpretamos como pertencendo à classificação atribuída, estabelecendo mais uma vez as significativas diferenças de conteúdo entre as cinematografias europeia e americana, que o nosso mercado tem tendência em nos servir sem distinção. O realizador Fabrice Gobert com uma ampla obra de argumentista e diretor de séries para televisão desde 2002, apresenta-nos aqui o seu primeiro trabalho para cinema muito bem conseguido.

Laconte (Laurent Lafitte) é um gestor de topo numa empresa de comunicações que age discricionariamente com todos os subordinados na perseguição voraz do sucesso absoluto que ele pretende alcançar para a empresa e para si próprio como objectivo último da sua passagem pela vida. Na sua vida privada, escassa e frugal, replica o mesmo comportamento reunindo-se de bens materiais avultados, onde desfruta de uma caricatura de vida sentimental, parca de afetos, na companhia da sua mulher, Solange (Chiara Mastroianni) que deambula solitária pela casa com muito pouca ligação com ele e com as suas necessidades, que ele satisfaz onde calha.

Porém, há sempre um dia em que tudo muda, e esse dia acontece quando na sequência de um enfarto ligeiro ele entra em coma e o seu cérebro letárgico reverte todos os conceitos estabelecidos fazendo-o “viver” uma vida oposta da que está convencido que é a que detém por direito, confrontando-o com a “vida” dos outros que ele subjuga.

Imobilizado na cama do hospital, o outrora poderoso Laconte, “faz-se” sofrer das dificuldades normais que provoca aos outros, como que vivendo a sua vida num espelho, que transforma a imagem simétrica do seu contrário, na realidade que ele é agora forçado a viver, coabitando e relacionando-se com todos os personagens da sua vida real, mas num patamar de igualdade que lhe é completamente estranho, contra o qual ele se revolta, e por isso luta com todas as suas forças remanescentes na memória passada.

Trata-se pois da luta interna deste homem, agora fragilizado pelo acidente vascular que sofreu, sendo confrontado com a sua fraqueza e normalidade humana que ele sempre recusou, que ele sempre escondeu sob o manto diáfano do despotismo em benefício de um bem maior, que subitamente, através de um evento violento o despoja das suas premissas e o confronta com uma vida e uma realidade que totalmente desconhece, embora sempre tenha vivido nela mas noutro contexto. Trata-se no fundo, do confronto connosco próprios para que possamos progredir para um nível superior de existência, se soubermos aprender e aceitar a oportunidade de redenção através do reconhecimento dos nossos erros.

Bem interpretado, escorreito no argumento, sem deixar pontas soltas e com uma história interessante sobre o verdadeiro “eu” de um personagem que se confunde entre a realidade, e a fantasia com que está sonhando, constituindo aqui um bom exemplo da cinematografia francesa moderna de qualidade. Recomendo.

Disponível na plataforma Filmin para o utilizador, pelo preço de €3,95 durante 72 horas.

Classificação: 7 numa escala de 10


3 de junho de 2020

Opinião – “Ema” de Pablo Larraín


Sinopse

Depois de um longo e penoso processo de adoção, Ema, uma bailarina de "reggaeton", e o seu marido, Gastón, ficam responsáveis por cuidar de Polo, um menino órfão que nunca conheceu a estabilidade de uma família. A adaptação revela-se mais difícil do que imaginavam e algum tempo depois, Polo provoca um acidente que fere gravemente a irmã de Ema. Este incidente terrível deixa marcas e faz com que Ema tome a decisão de devolver a criança. Isso vai mudar radicalmente a forma como Ema e Gastón se vêem um ao outro, a si mesmos e ao mundo que os rodeia.

Opinião por Artur Neves

A sinopse anterior descreve o essencial deste “Ema” realizado por Pablo Larraín realizador Chileno nascido em 1976 que inclui no seu curricula cinematográfico obras tão diferentes como “Não” de 2012, um filme sobre revolta e direitos humanos contra a ditadura de Pinochet, “O Clube” de 2015 em jeito de denúncia sobre pedofilia praticada por religiosos católicos, que representa o seu filme mais emblemático, ou “Jackie” de 2016 sobre Jacqueline Kennedy Onassis, em jeito de novela, apresenta-nos agora este “Ema” cujo enredo apenas serve para suportar as personagens que o desempenham em diferentes situações, as suas vivências, objetivos, filosofias de vida, não sendo a história o mais importante, que apenas serve como fio condutor dos eventos que nos vão sendo mostrados durante cerca de 107 minutos.
“Ema” estreou no Festival de Cinema de Veneza de 2019 e quem conhece Larraín através das obras anteriormente citadas ou de outras de relevo semelhante, como “Tony Manero”,de 2008, sobre a angustiante figura e personalidade de um dançarino clássico, vai estranhar esta incursão no mundo da dança moderna e do "reggaeton", uma dança popular imbuída de uma expressão corporal intensa e culto da figura, com a qual Larrain parece algo perdido e só remotamente parece conhecer na sua essência. Recorde-se ainda que Larrain pertence a uma família da classe alta do Chile que apesar de no tempo de ditadura terem apoiado Pinochet, não o impediu de realizar “Não”, que constituiu o mais popular libelo acusatório contra os anos de chumbo desse período histórico.
Ema (Mariana Di Girolamo) é uma jovem bailarina que exprime através dessa arte os seus desejos, frustrações e tendências pirómanas, que funciona como metáfora para a combustão das sua múltiplas paixões, (ela chega a dançar com uma garrafa de combustível ás costas e um lança chamas na mão que inclui na coreografia) revolta-se contra o facto do seu marido e coreógrafo Gastón (o mexicano Gael García Bernal) não ser capaz de a engravidar para lhe permitir ser mãe natural, o que justifica a adoção de Polo (Cristián Suárez) um órfão a quem ela transmite as desilusões da sua vida e promove uma educação disruptiva no sentido da promiscuidade e da auto destruição que vitimou a sua irmã com fogo e que neste filme se torna um elemento fundamental da narrativa.
Esse evento promove o abandono de Polo e a separação do casal, depois de diversas acusações mutuas em que se revelam coisas que não vimos, nem sabíamos até ali, mas que permitem por parte dos atores interpretações credíveis, intensas, com Ema a polarizar toda a ação, de olhos fixos no “inimigo” (para ela todos o são) cabelos constantemente oxigenados e penteado agarrado à cabeça, numa atitude pós adolescente agressiva, disposta a desafiar todos os que interferirem no seu caminho.
Na sua ânsia de agarrar a vida procura outro parceiro, que mais tarde viremos com surpresa saber de quem se trata, embora em todo o filme o universo da dança reflita bem o seu desejo incontornável por liberdade e por protagonismo na vida de todos os que a cercam.
Ela deseja ser livre com a mesma intensidade com que deseja ser mãe, não avaliando a incompatibilidade entre esses objetivos, porque o seu desejo de maternidade decorre da sua turbulência emocional vivida na infância, para a qual a piromania funciona como o meio de eliminar o passado que lhe é doloroso. É por tudo isto que “Ema” é estranho ao universo de Larrain, considerando que apesar de existir uma história, um substrato coerente emocionalmente válido e escorreito, ele deixa tudo nas mãos de um personagem tão indomável como indefinível que se consome no fogo que deliberadamente espalha.
“Ema”, está disponível nas plataformas Netflix por assinatura, ou em Filmin, pelo preço de €3,95, sem contrato nem fidelização durante 72 horas.

Classificação: 6 numa escala de 10