30 de setembro de 2020

Opinião – “O Sal das Lágrimas” de Philippe Garrel

Sinopse

As primeiras conquistas de um jovem e a paixão que tem pelo pai. Esta é a história de um jovem da província, Luc, que vai a Paris para se candidatar à Escola Boulle. Na rua, encontra Djemila, com quem vive uma aventura. De regresso a casa do pai, reencontra uma ex-namorada, Geneviève, enquanto Djemila alimenta a esperança de o rever. Quando recebe a notícia da entrada na Escola Boulle, vai para Paris e abandona a namorada que está grávida…

Opinião por Artur Neves

Philippe Garrel é sempre igual a si próprio. Atualmente com 71 anos ele continua a divertir-se em arranjar uma narrativa sobre os factos que apresenta numa história de amor cheia de percalços, que pode ser uma história que conheçamos pessoalmente, ou por interpostas pessoas, e deixa ao espectador a responsabilidade de a mastigar, digerir e julgar de acordo a sua experiencia de vida e as suas convicções, sem interferir com a sua visão pessoal que usa apenas para mostrar como as coisas se passaram. É isto o cinema de Philippe Garrel.

A preto e branco como é hábito, Garrel conta-nos uma história de juventude, de aprendizagem da vida de um rapaz Luc (Logann Antuofermo) criado na província e com educação limitada, que ama o pai, (André Wilms) marceneiro, por quem ele nutre forte amor filial e devoção pela sua entrega a uma arte que ele pretende seguir, depois de adquirir formação complementar em Paris, na Escola de Artes e Ofícios Boulle, onde ele se candidata como aluno.

Na grande cidade, que vai implicar uma grande transformação na sua vida para fazer o exame de admissão, ele confronta-se com o despertar do amor com Djemila (Oulaya Amamra) num namoro de juventude limitado pela exiguidade de tempo em que estão juntos e pela recusa dela ao primeiro encontro a sós. Depois do exame, volta a casa de seu pai e durante a realização de um trabalho num cliente encontra uma amiga de infância Geneviève (Louise Chevillotte) com quem enceta um namoro e uma relação de vida com propósitos de futuro, todavia abandona-a logo que recebe a confirmação de admissão na Escola Boulle, num ato chauvinista e arrogante de independência masculina, por não estar disposto a lidar com o futuro filho que vem a caminho.

Em Paris, com os novos amigos descobre o amor apaixonando-se por Betsy (Souheila Yacoub) que lhe sugere uma relação triangular com um anterior relacionamento, Paco (Martin Mesnier) que ainda mantém e que ele aceita numa coabitação temporária por tempo indeterminado. Luc e Betsy declaram mutuamente o seu amor, enquanto ela salta de cama em cama no mesmo quarto e na mesma noite. Quando se precisa de privacidade uma gravata pendurada na porta pelo lado de fora avisa do facto. Ela é transparente com ambos e convive com amor pelos dois sem abandonar nenhum, numa relação aberta, franca e assumida pelos três, embora diferenciando a sua preferência mais consistente por Luc.

É assim que Garrel nos apresenta o amor em 2020 para pessoas heterossexuais, brancas e europeias que apenas existem para amar e ser amadas, sem implicações sociais dos seus atos, ou conflitos políticos ou económicos que os condicionem. Garrel não nos indica qualquer dos caminhos, apenas os apresenta, captando os atos e as pessoas numa apresentação trágico cómica, (dependente do ponto de vista) do estereótipo burguês, citadino, sobre o amor e seus possíveis triângulos, ora tradicionais, ora inovadores ligados aos nossos tempos.

Garrel não cuida de qualquer dos personagens que são tomados e largados tal como nos foram apresentados, exceto de Luc e do seu pai, ocupando este um papel centralizador na vida de Luc de que ele tenta libertar-se, mostrando um distanciamento em relação à sua contribuição para este imbróglio que cabe ao espectador deslindar qual o sentido a dar-lhe na sua imagética pessoal e privada. Pelo meu lado também não vou dar qualquer contributo, apenas que veja e despenda algum tempo a pensar num assunto que afinal é de todos.

Classificação: 5 numa escala de 10

 

29 de setembro de 2020

Opinião – “I am Woman – A voz da Mudança” de Unjoo Moon

Sinopse

1966. Helen Reddy (Tilda Cobham-Hervey) chega a Nova York com a filha de três anos, uma mala e 230 dólares. Tinham-lhe dito que ganhara um contrato de gravação, mas a editora destrói-lhe prontamente as esperanças, dizendo que não precisa de mais cantoras femininas e aconselhando-a a divertir-se em Nova Iorque, antes de regressar à Austrália.

Sem visto, Helen opta por ficar em Nova Iorque de qualquer maneira, para tentar lançar uma carreira de cantora. Mal conseguindo pagar as contas e sustentar a filha, trava amizade com a lendária jornalista de rock Lillian Roxon. Esta torna-se a sua melhor amiga e inspira-a a escrever e a cantar a icónica canção "I Am Woman". Revelando-se um Hino para o Movimento Feminista, a canção estimula toda uma geração de mulheres a lutar pela mudança.

Ainda em Nova Iorque, também conhece Jeff Wald (Evan Peters), um jovem aspirante a manager de talentos que virá a ser seu agente e marido. Jeff ajuda-a a chegar aos tops, mas é viciado em droga, o que acaba por tornar tóxica a relação entre eles. Presa num rodopio de fama e dependência de Jeff, que lhe gere a vida pessoal, Helen encontra forças para recuperar o controle da sua carreira e continuar a tentar concretizar os seus sonhos.

Opinião por Artur Neves

Parece estar na moda, filmes sobre a vida de figuras destacadas da música mundial, tais como “Judy” sobre Judy Garland interpretada por Renée Zellweger, Freddie Mercury em "Bohemian Rhapsody" representado por Rami Malek que nestas crónicas eu já discordei da escolha do ator, ou Elton John em "Rocketman" representado por Taron Egerton e desta vez temos Helen Reddy a ser homenageada neste “I am Woman” representada por Tilda Cobham-Hervey uma atriz australiana, tal como Helen que para lá da música se destacou como a autora de uma canção que foi adotada como hino da emancipação feminina nos Estados Unidos, funcionando assim como a recuperação de um icon quase esquecido (em Portugal não me lembro da citação do seu nome, talvez devido à política da época) mas perfeitamente justo considerando a influencia agregadora para o movimento feminista de segunda onda que começou nos USA em 1960, durou duas décadas e espalhou-se pelo mundo ocidental com o objetivo de estabelecer uma verdadeira igualdade de oportunidades entre homens e mulheres.

Nesse campo “I am Woman” distingue-se dos seus congéneres anteriormente citados, até porque a projeção mundial de Helen Reddy foi mais modesta como cantora, sendo a sua obra mais significativa construída por raiva contra o marido e os homens em geral, numa altura em que o vício da droga exibido por este, já causava sérios danos à relação do casal.

Tal como a sinopse amplamente descreve o estrelato de Helen deveu-se à sua persistência assente no grande espírito de sacrifício em compor e cantar canções doces e suaves em bares quase desertos, numa altura em que o mundo estava voltado para os Beatles, Rolling Stones e outros intérpretes masculinos de música mais moderna que a sua.

Para o bem e para o mal conheceu o seu marido Jeff Wald (Evan Peters), numa altura em que este também procurava o seu lugar no mundo, era empreendedor, amaram-se e constituíram uma dupla em que ela era o “show” e ele o “business” e lutaram contra as gravadoras que lhe davam prémios, chamavam-lhe de “querida” mas tratavam-na com desdém e negavam-lhe a tão desejada gravação que só Jeff Wald conseguiu. Aliás Wald era um lutador, não fosse o vício da cocaína que o traiu e acabou com seu o casamento com Helen, em 1975 a sua empresa de gestão de carreiras agenciou figuras como; Miles Davis, Marvin Gaye, Sylvester Stallone, Donna Summer e Mike Tyson, entre outros. Com os novos tempos a Sony comprou a empresa de Wald, embora ele tenha continuado ao leme até 1991.

Atualmente Helen Reddy tem 79 anos, sofre de Alzheimer e vive num lar rodeada de conforto, atenções e cuidados, mas a estreia do filme em 2019 e o seu visionamento motivou-lhe memórias que a fizeram exibir um sorriso que aos filhos e aos mais próximos lembraram o seu sorriso de sempre, muito embora sem ter articulado qualquer palavra referente à época.

A performance de Tilda Cobham-Hervey é consistente e agradável de ver, personificando uma Helen que não vacila nem se deixa abater contra as contrariedades da vida e da família, todavia o argumento não esclarece o que aconteceu à sua carreira para terminar tão completamente em 1983 e porque o seu legado é generalizadamente desconhecido do público de hoje, sendo constituído por músicas intemporais, em que “I am Woman” só identifica a estrela mas não conta a história da mulher. Interessante no género.

Classificação: 6 numa escala de 10

 

23 de setembro de 2020

Opinião – “Antebellum” de Christopher Renz, Gerard Bush


 Sinopse

"Antebellum" centra-se na personagem de Veronica (Janelle Monáe), doutorada em sociologia e autora de livros de sucesso sobre o tema da privação de direitos dos negros nos EUA, há muito inscrita de forma profunda no país.

Veronica deixa o marido, Nick, e a filha, Kennedi, para viajar até Nova Orleães, onde fará uma palestra. Na cidade do sul, as suas palavras recordam ao público que chegou a hora de os afroamericanos se fazerem ouvir. No entanto, Veronica ainda não percebeu que o mesmo destino que a escolheu para nos salvar do passado também a ligou a uma mulher escravizada dos tempos da Guerra Civil, Eden (também interpretada por Monáe), que trabalha num campo de algodão entre o calor sufocante enquanto o fantasma do conflito cresce ao redor dela e de outros que também sobrevivem em circunstâncias desumanas. Através do tempo e de diferentes mundos e eras, Eden e Veronica encontram-se em circunstâncias que alteram para sempre as suas vidas

Opinião por Artur Neves

Este filme apresenta-se como uma história mística envolvendo algum terror sobrenatural, mas deve mesmo ser classificado como filme de terror puro e duro, não pelo seu conteúdo, mas pela forma esdruxula como aborda os factos que quer contar.

Não é que os problemas sobre a descriminação racial que têm como expoente relevante a escravatura nos estados do sul dos Estados Unidos da América no final do século XIX, que deram origem à guerra da secessão entre 1861 e 1865, numa altura em que a morte de George Floyd acendeu inflamadamente as questões do racismo que não pertencem ao passado mas que continuam entre nós e na ordem do dia, e como tal não podem ser esquecidas, mas sim relativamente à forma como são apresentadas neste filme de cultura pop que mostra a raça negra como meros corpos em vestes esfarrapadas sem qualquer respeito pela sua identidade e por tudo o que a seguir se mostra.

O filme começa com as cenas tradicionais da escravização dos negros numa plantação sulista de algodão em que se destaca uma escrava, Eden (Janelle Monáe) perseguida por um sádico capitão sulista e capataz da fazenda, Captain Jasper (Jack Huston) que decreta a regra de absoluto silencio entre os escravos e captura Eden que havia tentado escapar. Ela é arrastada até uma cabana onde um general (Eric Lange) a marca selvaticamente com um ferro em brasa e lhe bate até a prostrar, numa cena que nos lembra a arrogância histórica de “12 Anos Escravo” e o conteúdo barato de pornografia com tortura, por cerca de 40 minutos.

Depois consuma-se o descalabro da história, toca um telemóvel e Eden, com o nome de Veronica, acorda em 2019, na sua cama com o seu envolvente marido, Nick (Marque Richardson) e a sua filha Kennedi (London Boyce) na sua casa de luxuoso conforto de classe média alta a preparar-se para viajar até New Orleans onde vai participar numa conferencia sobre o seu livro recentemente publicado.

Na receção do hotel mostram-nos o disfarçável desprezo da rececionista branca pela sua pessoa, bem como na indicação de uma mesa junto á cozinha no restaurante, por uma empregada, tentando mostrar que a condição de mulher negra na américa não mudou muito até agora mas sem qualquer análise nem nota crítica que fundamente ou sequer aponte o motivo da descriminação. Afinal ela não é uma negra qualquer e para os que se destacam a américa tem outro figurino de comportamento.

Ainda no hotel, com as suas amigas há uma cena de invasão no seu quarto por uma menina muito loura de brancura caucasiana e voz de mel (Jena Malone) que produz um diálogo incómodo de cariz premonitório mais assustador, mas que em nada resulta porque não tem consequências diretas. Ela e as amigas saem do hotel para passar uma noite divertida e viajam em carros diferentes. No carro onde ela viaja, encontra o Captain Jasper que a rapta e envia de volta a 160 anos antes, para a plantação de algodão, com a diferença de agora levar o telemóvel que lhe permite enviar a sua localização para o marido e para a filha apesar de continuar lutar com os seus captores e a fugir aos seus torcionários.

“Antebellum”, que no final do filme ficamos a saber que se trata de um parque temático sobre o período da escravatura nos USA (os americanos encaram os seus esqueletos de frente e não são como nós que ainda não decidimos criar um museu do Salazarismo) acaba por ser uma viagem imprópria à violência histórica contra os negros, considerando que não tem nada a acrescentar à realidade racista de parte do povo americano.

Não sei o que é que os seus realizadores tinham pensado para esta história, mas para mim é um fracasso artístico de duas pessoas com um objetivo que superava a sua capacidade de atingi-lo, considerando as falhas estéticas e narrativas que apresentam num mundo sem lógica e com personagens tão superficiais e parcos na sua missão. A história não tem sentido e para ver este filme é necessário assumir que se vai adquirir um modelo de não cinema.

Classificação: 2 numa escala de 10

22 de setembro de 2020

Opinião – “Sempre o Diabo” de António Campos

Sinopse

Em Knockemstiff, no Ohio e nas redondezas, estranhas personagens - um falso pregador (Robert Pattinson), um casal de assassinos em série (Jason Clarke e Riley Keough) e um xerife corrupto (Sebastian Stan) - convergem em torno do jovem Arvin Russell (Tom Holland) enquanto ele luta contra as forças do mal que o ameaçam a ele e à sua família. Passado entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da guerra do Vietname, o filme do realizador António Campos, apresenta um cenário ao mesmo tempo horrendo e sedutor que opõe justos e corrompidos. Adaptado do romance de Donald Ray Pollock.

Opinião por Artur Neves

A história deste filme adaptada do romance de Donald Ray Pollock, de 2011, com o mesmo nome, que também faz de narrador da acção, mostra-nos a vida da américa rural depois da guerra com o Japão em 1957, da qual o pai do protagonista Willard Russell (Bill Skarsgård) nos há-de apresentar memórias aterradoras de uma vida implacável, ornamentada de crueldade e miséria que serve de base e formação do seu filho Arvin Russell (Tom Holland) que nunca se libertará do sacrifício do seu cão Jack morto pelo seu pai como moeda de troca para Deus lhe conceder a ressurreição da sua mãe Charlotte (Haley Bennett) vitimada por um cancro sem cura. Todavia como ela inevitavelmente morre, ele tira a sua própria vida pelo insucesso da sua esperança num Deus misericordioso, que imprime em Arvin a noção elementar de acção - consequência.

Muitos outros males provocados por um Diabo omnipresente vão-se seguir ao longo dos 138 minutos deste filme, numa ladainha de horrores que mostram o mal como um veneno infiltrado na vida de todos os personagens, veiculado por uma fé cega em que se baseia a prática da sua religião, seja por zelo piedoso ou por pura perversão ancorada na ignorância e na vida limitada dos seus praticantes.

O realizador de origem latino-americana, nascido em Nova Iorque e autor do argumento em parceria como seu irmão Paulo Campos, mostra-nos que o mal está em todo o lado e sobrevive em todas as comunidades, transportado por hospedeiros humanos, desde que estes se disponham a disseminá-lo sobre o manto diáfano da fé num Deus castrador e impositivo, desde que a sua vontade não seja obedecida em conformidade com os cânones sociais que os divulgam.

“Sempre o Diabo” (The Devil all the Time no original) compõe-se assim de um conjunto de pessoas horríveis, ligadas pela fé, fazendo coisas terríveis uns aos outros para provar que a raça humana é a única que espalha o mal em torno de si própria sem qualquer razão para lá da sua vontade e interesse. Não quero revelar os personagens criados no filme porque cada um apresenta uma especificidade da maldade que exibe, mas estão todos bem conseguidos, credíveis e recriam o modelo gótico da sociedade sulista dos USA, sem subtilezas e acompanhados nos seus atos por canções pop vintage generalizadamente inocentes que se tem tornado frequente nos trabalhos recentes de David Lynch e Quentin Tarantino como pano de fundo para a violência mostrada.

Cedo, percebemos que o principal tema do filme é a religião, qualquer religião que promova o fanatismo pelas suas premissas, em semelhança com o fanatismo clubista no sentido de quem não está por nós está contra nós. É a negação da equidade e da tolerância através da vida quotidiana de três famílias influenciadas pela devoção cega numa crença que influencia todos os personagens ficando condenados a repetir os erros dos seus antepassados, por muito que se afastem dessa linha de comportamento.

O argumento é bom, graças à obra que lhe está na origem e se a narração de Donald Ray Pollock está adequada ao que as imagens não podem transmitir, conferindo-lhe engenho narrativo na maior parte do tempo, outras situações há em que Pollock antecipa o que posteriormente se irá ver, lamentando-se aqui que o benefício literário da sua exposição se transforme num inconveniente, porque no campo audiovisual as imagens não precisam do anúncio da sua exposição.

Contas feitas este é um filme da Netflix ao nível de “O Irlandês” “A História de um Casamento” ou mesmo “Joker” embora com significativas diferenças de contexto para este. Bem construído, convincente e bem interpretado está disponível na plataforma desde 16 de Setembro. Recomendo sem reservas.

Classificação: 8 numa escala de 10

 

17 de setembro de 2020

Opinião – “Summerland” de Jessica Swale

Sinopse

Alice (Gemma Arterton) é uma mulher muito independente, que, no seu escritório em Summerland, investiga e desmascara mitos, recorrendo à ciência para refutar a existência da magia. Consumida pelo trabalho, mas também profundamente só, Alice vive atormentada por um caso amoroso que viveu.

Quando Frank (Lucas Bond), um irrequieto rapaz evacuado de Londres aquando de um ataque durante a II Guerra Mundial, lhe vai parar a casa e ela se vê obrigada a cuidar dele, a inocência e curiosidade deste acordam em Alice emoções que ela julgara estarem enterradas. Aceitando a milagrosa imprevisibilidade da vida, Alice descobre que as feridas podem ser curadas, que há segundas oportunidades, e que, talvez… a magia afinal exista. Uma paixão, uma amizade, um verão inesquecível: esta é a história de Summerland.

Opinião por Artur Neves

A história que temos aqui é bem curiosa, mesmo apesar de a partir de certa parte do argumento tudo seja desvendado, embora já subliminarmente esperemos esse desfecho. Alice Lamb (Gemma Arterton em mais um bom desempenho das caraterísticas humanas) é uma escritora reclusa na sua própria casa totalmente dedicada ao seu objetivo de procurar os factos por detrás dos mitos e do folclore populares, numa missão de desmontagem de crenças.

O local é a costa litoral do condado de Kent, com as suas arribas cortadas a pique sobre o atlântico norte, numa pequena vila em que os seus habitantes não compreendem a atividade de Alice e pensam nela como espia a soldo dos alemães e os mais jovens consideram-na bruxa. Na realidade o seu comportamento social é desbragado e rude, completamente desapiedado dos mais velhos e repulsiva para os mais novos.

O governo inglês tem receio dos bombardeamentos alemães sobre Londres e promove a deslocação dos mais jovens para a província, a cargo de casais que se voluntariem para os aceitar temporariamente enquanto dure a guerra, permitindo-lhe estudar e cumprir a escolaridade da forma mais normal possível. Mesmo sem se ter candidatado, calha a Alice a custódia de Frank (Lucas Bond) cujo pai é piloto da RAF e a mãe funcionária do ministério da defesa, não podendo afastar-se da capital.

Embora muito contrariada e sem esconder o seu desagrado Alice recebe Frank, com o qual, lentamente vai estabelecendo uma relação de amizade, de companheirismo para amenizar a sua solidão ao ponto de ter com ele conversas do seu foro íntimo como a pergunta que formula se ele acharia estranho o amor entre duas mulheres. Frank responde que desde que haja amor é sempre preferível a uma ligação entre um homem e uma mulher sem amor. Percebe-se a intenção no contexto da história mas constitui uma resposta improvável na década de 40, de um miúdo de 10 anos, mesmo sendo filho de uma casal nessa situação.

Através de fragmentos em flashback ficamos a saber que o desequilíbrio emocional de Alice decorre dela ter perdido há muito tempo a mulher que amou, Vera (Gugu Mbatha-Raw que igualmente defende muito bem o seu personagem). Os seus encontros entre as duas guerras são tão encantatórios e delicados como passageiros, pois Vera tem um desejo de realização tão grande como o seu amor por Alice, mas não abdica dele.

Escrito e realizado por Jessica Swale que se estreia aqui na sua primeira longa metragem (até agora só tinha realizado curtas e filmes para a TV) a história do filme é doce, bucólica, bem interpretada e convincente em todos os seus personagens, quer sejam principais ou secundários, decorrente do seu excelente elenco. Possui alguns twists de probabilidade duvidosa mas que se aceitam no contexto da história. Como filme em ambiente de guerra que se preza, tem de ter tragédia e dor, mas conduz-nos a um final gratificante, coerente e agradável, pese embora que depois de apresentadas todas as características rezingonas de Alice, a figura materna que nos é mostrada é relativamente improvável. Ainda assim, vê-se com agrado

Classificação: 6 numa escala de 10

 

15 de setembro de 2020

Opinião – “O Ano da Morte de Ricardo Reis” de João Botelho

Sinopse

O Ano da Morte de Ricardo Reis, é a adaptação para cinema, do romance homónimo de José Saramago. Entrelaçando os fios da ficção e da História, o escritor concebeu um encontro particular, entre o defunto Fernando Pessoa, o criador, com uma das suas criaturas, o heterónimo Ricardo Reis, regressado ao país ao fim de 16 anos de exílio no Brasil. 1936 é o ano de todos os perigos, do fascismo de Mussolini, do nazismo de Hitler, da terrível guerra civil espanhola e do Estado Novo de Salazar. Pessoa e Reis são dois lúcidos observadores da agonia de um tempo, tão similar ao que vivemos. Nessa relação intrometem-se duas mulheres, Lídia e Marcenda, as paixões carnais e impossíveis de Ricardo Reis.

Opinião por Artur Neves

Fernando Pessoa o nosso mais enigmático e ilustre poeta, ensaísta e escritor do princípio do século XX, defensor acérrimo da Língua Portuguesa construiu a sua obra através de vários heterónimos, em cada um dos quais ele abordava as questões da vida, do amor, da sociedade com linhas diferentes de pensamento como que de pessoas efetivamente diferentes se tratassem. Na realidade seriam mesmo diferentes e viveriam como que em universos paralelos, dentro da mesma pessoa, fingindo a sua independência parcial e ajudando-o assim a sobreviver à solidão depressiva do seu verdadeiro “eu”.

José Saramago, o nosso 2º prémio Nobel, pegou num dos heterónimos de Fernando Pessoa, que não tinha data de falecimento definida, Ricardo Reis e concebeu um encontro da criatura com o seu criador, para entabular conversas e debates sobre o mundo, o país, e os conceitos de vida, morte e amor num romance que pode ser encarado como sendo; Fernando Pessoa visto por José saramago.

Em boa verdade a ideia é brilhante, e o romance adaptado ao cinema por João Botelho segue rigorosamente este, segundo declaração do realizador, constituindo assim em 1984, data da publicação do romance, a visão que Fernando Pessoa teria da nossa época extrapolada das suas conversas ficcionadas consigo próprio em 1936, onde analisa os tempos conturbados da ascensão dos regimes autoritaristas que começavam a despontar por toda a Europa naquele ano. A atual estreia do filme também se justifica pela evolução da direita e da extrema direita a que temos assistido, um pouco por todo o lado, nesta mesma Europa.

A história para suportar este estranho encontro é o regresso do Brasil de Ricardo Reis (Chico Díaz) que fica hospedado no Hotel Bragança na Rua do Alecrim, inaugurado em 1924 por Mário Xara Brazil, investidor brasileiro na época, cujo hotel atualmente se denomina desde 2014 por “LX Boutique Hotel”. (A realidade dentro da ficção fantástica).

Nesse hotel Ricardo Reis, começa a receber a visita do seu criador Fernando Pessoa (Luís Lima Barreto) recentemente falecido, mas ainda dentro do tempo que ele atribuía ao tempo de memória dos familiares, amigos e conhecidos, nove meses, tal como o tempo de gestação de uma vida até ao nascimento. O personagem de Fernando Pessoa parece-nos estranho por não corresponder ao arquétipo que generalizadamente nos é apresentado em fotografias, magro, esquálido, silencioso e metido consigo. A explicação apresentada pelo realizador é que Pessoa, tendo efetivamente morrido aos 47 anos, apresentava um aspeto físico compatível com uma idade de 70 anos, donde a escolha deste ator.

Nesses encontros entre Pessoa e Ricardo Reis são então abordados os grandes temas da vida, (que no romance devem ter servido a Saramago para desenvolver pequenos ensaios literários), sobre a vida, a morte, o estado do país, a consolidação do regime de Salazar e a sua providência social com a criação da “Sopa dos Pobres”, o Estado Novo e a sua recém criada polícia política PVDE, que em tudo se intermete e intervém, bem como os grandes movimentos mundiais da época como o fascismo de Mussolini, o nazismo de Hitler e mais próximo de nós, o início da guerra civil espanhola.

O amor também é abordado nas conversas, onde Pessoa elogia e inquire as caraterísticas românticas de Ricardo Reis com Lídia (Catarina Wallenstein) a criada de quarto que se apaixona pelo Dr. Ricardo e que constitui o seu amor carnal com quem se relaciona sexualmente e Marcenda (Victoria Guerra) uma filha de família que todos os meses fica com o pai no hotel para comparecer a uma consulta médica que não traz melhoras para o seu mal, mas que o contacto com Ricardo Reis e o amor platónico desenvolvido entre ambos lhe confere uma noção de maioridade negada no seio familiar.

O filme foi rodado a preto e branco para enfatizar o contraste entre o claro e escuro dos ambientes onde os personagens se movem com diferentes preocupações, embora para mim isso constitua apenas uma desculpa. É igualmente possível criar os mesmos ambientes a cores, bem como as mudanças de cena, que são executadas com o fecho progressivo da iris do obturador, como se fazia no cinema mudo. Todavia, estas idiossincrasias do realizador não interferem na história, que apesar de um certo desligamento entre cenas, tão característico do cinema português, constitui um bom espetáculo e merece ser visto durante todos os seus 130 minutos. É uma oportunidade para ver chover a sério em Portugal. Recomendo.

Classificação: 7 numa escala de 10

14 de setembro de 2020

Opinião – “Minha querida Nora” de Méliane Marcaggi

Sinopse

Farta das infidelidades do seu marido, Louise (Alexandra Lamy), de 45 anos, parte para um fim de semana na Córsega. Mas após uma noite selvagem de paixão desenfreada com um homem que acaba morto, Louise vê-se confundida com uma namorada secreta de longa data pela temível – mas dedicadíssima – mãe dele (Miou Miou).

Pressionada pelo outro filho, que inventara uma mítica namorada para o irmão dissoluto com o intuito de tranquilizar a mãe, Louise acaba por alinhar no jogo para evitar suspeitas. Mas perante o crescente apego que a “sogra” revela por ela, Louise descobre mais sobre si mesma do que alguma vez imaginou ser possível... acabando por ganhar com isso uma família improvável.

Opinião por Artur Neves

Os franceses sabem contar histórias de amor de largo espetro, isto é, reportando-nos ao conteúdo da sinopse que resume todo o enredo da história, a infidelidade do marido Marc (Patrick Mille) ou a noite de paixão desenfreada de Louise são meros apontamentos justificativos para tudo o que se vai seguir no aspeto da amizade, respeito pelas tradições, empatia para quem nos quer bem sem nos conhecer, generosidade e autoquestionamento sobre as motivações das nossas atitudes que levam a um conhecimento mais profundo dos sentimentos enquistados por vinte anos de apagamento emocional.

Quanto a mim, é nesta vertente que esta história se afirma, embora comece com as trapalhadas habituais das comédias francesas, nos casais franceses com infidelidades mútuas e trocadilhos vários, mas que neste filme desembocam no encontro de Louise com Andréa (Miou Miou, uma atriz nascida em 1950 e com presença no cinema francês desde 1971) no personagem de uma sogra generosa para com a mulher que aturou o seu filho até esta morte anunciada mas guardada em segredo no seu coração de mãe.

O local da ação é na Córsega, montanhosa e bucólica, nos arredores de uma aldeia perdida na serra, isolada do futuro, onde as tradições pontuam e mostram o caminho para todas as relações. A igreja mostra o sentido da religião, (re ligação) ao altíssimo, embora o padre esteja preso por atitudes desviantes das práticas que apregoa, mas ainda assim constitui a referência espiritual de toda a comunidade, mesmo que presida à missa acompanhado à vista por dois guardas prisionais que nunca o largam.

O café é a sala de reuniões da aldeia, onde tudo se sabe e se comenta mesmo sem se saber, é o lugar de opinião, de crítica, de justiça, de decisão para que todo o mal acabe e todo o bem comece, com fina ironia, com comédia nas cenas mais radicais, realizado e escrito por Méliane Marcaggi uma atriz e realizadora francesa que tem andado muito pela televisão e tem neste filme a sua primeira oportunidade de longa metragem que lhe saiu bem, com sentido, graça, emoção e a subtil provocação duma cultura ancestral que com ajudas destas têm de evoluir sem contudo perderem a dignidade que as caracteriza. Muito interessante, recomendo

Classificação: 6 numa escala de 10

 

10 de setembro de 2020

Opinião – “O Segredo do Refúgio” de Dave Franco

Sinopse

Dois casais alugam um refúgio perfeito à beira-mar, mas, em pouco tempo, o que deveria ser um fim de semana de descanso assume contornos sinistros…

“O Segredo do Refúgio” é o thriller de estreia em realização de Dave Franco, protagonizado por Alison Brie (“Glow”), Dan Stevens (“Downton Abbey”), Jeremy Allen White (“Shameless”) e Sheila Vand (“Argo”).

Opinião por Artur Neves

Nesta história, Dave Franco, nascido e criado na Califórnia, estreia-se como realizador da sua primeira longa metragem que aborda a construção do suspense em duas formas aparentemente diversas, mas que o filme prova não estarem assim tão distantes, considerando que na primeira aborda-se as mentiras que contamos aos outros e a nós mesmos e na segunda, o efeito da tecnologia pôr a nu os nossos segredos mais íntimos que não queremos partilhar com os outros e que fazem parte da mentira que não queremos assumir.

Confuso?... nem tanto, porque o filme consegue apresenta-las claramente no intervalo temporal de um fim de semana, numa casa de sonho alugada para o desfrute de uma merecida pausa intercalar na rotina do trabalho, que se transforma num angustiante pesadelo, com uma história de infidelidade, duplamente repudiada, e a ação de voyeurismo do dono da casa num ato declarado de violação de privacidade, que nenhum dos personagens envolvidos quer que seja revelado.

A ideia do fim de semana surge na cabeça de Charlie (Dan Stevens) como comemoração da conquista de um grande projeto para a sua startup tecnológica situada em Portland, na qual Mina (Sheila Vand) é sócia e principal desenvolvedora de software. Para partilhar a alegria desta significativa conquista, tanto Charlie, como Mina, incluem no grupo os seus companheiros que são; Michelle (Alison Brie) mulher de Charlie e Josh (Jeremy Allen White), irmão mais novo de Charlie e companheiro de Mina, por quem nutre além de amor, uma grande admiração pela sua inteligência e conhecimento de programação, inversamente proporcional à sua baixa autoestima, decorrente de ser somente um condutor de Uber numa família de sucesso.

É este quarteto que aluga a casa de sonho, que lhes é apresentada à chegada por Taylor (Toby Huss) um rude e vagamente displicente gestor da propriedade que logo à partida se mostra intolerante com o facto de Mina ser de origem muçulmana. Muito embora essa má impressão à chegada não deixe sequelas no grupo, tudo se transforma quando percebem que Taylor tem acesso à casa na ausência deles, mesmo sendo para satisfazer um pedido de Michelle que á entrada lamentou ter-se esquecido de trazer o seu telescópio, ao perceber que o céu límpido e a noite sem poluição luminosa seria o lugar ideal para fazer observação das estrelas.

É neste ambiente de luxo que subtilmente começam a emergir divergências entre os nossos quatro protagonistas. Eles estão de fim de semana, são todos partes relacionadas, provocam-se mutuamente com brincadeiras verbais que os caracteriza, bebem e fumam para descontrair que simultaneamente aliviam os espartilhos da conveniência, do ressentimento e da dúvida, até certo ponto controlada. Charlie é sempre o mais sério, ou calculista, que restabelece o equilíbrio. Mina oscila entre um equilíbrio delicado e a exuberância de que mais tarde se arrependerá. Michelle é uma pragmática serena e consciente que procura cumprir os objetivos da viajem com a ajuda do cunhado Josh, que paira um pouco à deriva tentando ocupar um lugar naquele grupo a que ele procura pertencer.

O filme que começa como um thriller psicológico, vai evoluindo para algo mais dramático e paranoico, embora lógico, considerando o grau de censura que as cenas nos sugerem e que criam o suspense crescente, embora básico e direto, que a história utiliza. Para um estreante em realização Dave Franco mostra segurança na formação do ambiente e compreensão na possibilidade do suspense dentro dele, todavia o final da história é brusco e fácil que parece terem-lhe faltado tempo e dinheiro para pôr em prática outras ideias. Ainda assim, o enredo prende o espectador e faz valer o tempo despendido.

Classificação: 6 numa escala de 10

8 de setembro de 2020

Opinião – “A Vida Extraordinária de Copperfield” de Armando Iannucci


Sinopse

A partir da obra-prima de Dickens, A Vida Extraordinária de Copperfield traz-nos uma visão renovada e diferente da obra semiautobiográfica do seu autor. Passado na década de 1840, o filme narra a vida do seu icónico protagonista (interpretado por Dev Patel), enquanto este se movimenta num mundo caótico, na tentativa de encontrar um lugar que parece escapar-lhe. Da sua infeliz infância à descoberta do seu dom como contador de histórias e escritor, o percurso de David – ora hilariante, ora trágico – é sempre cheio de vida, cor e humanidade.

Opinião por Artur Neves

Nada de confusões, este Copperfield nada tem a ver com o “mágico” americano seu homónimo mas antes com uma obra de ficção escrita por Charles Dickens, lançada em Londres pela editora Bradbury & Evans em 1850 que narra à maneira de Dickens, com descrições rápidas e concisas sobre as características dos seus personagens, o seu próprio percurso de vida desde o nascimento até á idade adulta da publicação do livro, que viria a torná-lo reconhecido pelos leitores que começavam a aparecer numa classe de comerciantes e outros agentes sociais que deram origem ao início de uma classe média burguesa no século XIX em Inglaterra.

O livro terá sido publicado inicialmente em fascículos, entre Maio de 1849 e Dezembro de 1850, aos quais se seguiu a publicação da obra completa, escrita na primeira pessoa e relatando os seus múltiplos contactos com as pessoas que constituíram o seu círculo familiar e de amigos.

Assim encontramos, entre outros personagens, a sua mãe Clara Copperfield (Morfydd Clark) descrita como inocente mas dura, o seu padrasto cruel e violento Edward Murdstone (Darren Boyd) que após a morte da esposa e do seu filho recém-nascido, o coloca a trabalhar numa fábrica de que era o principal acionista. A fiel caseira da família Copperfield Clara Peggotty (Daisy May Cooper) que tratou dele com carinho na infância, o acompanhou pela juventude e o incentivou a tornar-se independente. A sua tia excêntrica e temperamental Betsey Trotwood (Tilda Swinton) que passou a ser sua guardiã, quando ele fugiu da fábrica de Edward Murdstone. Wilkins Micawber (Peter Capaldi) um homem sensível que estabelece uma amizade com David e o ajuda, apesar das suas imensas dificuldades financeiras, sempre perseguido pelos seus credores que reclamavam os empréstimos concedidos. Mr Wickfield (Benedict Wong) corretor e advogado da sua tia Betsey Trotwood, que acaba por lhe estropiar toda a fortuna em maus negócios decorrentes do seu vício em álcool e do seu perverso sócio Uriah Heep, (Ben Whishaw) que por intervenção de Agnes (Rosalind Eleazar) é descoberto, incriminado por fraude e preso.

David cai de paixão por Dora Spenlow (Morfydd Clark, que também interpreta o personagem de Clara Copperfield) uma menina bela e ingénua mas um pouco lerda, de pele branca e cabelos louros aos caracóis e embora sinta não ser a pessoa certa casa-se com ela, que morre após o aborto do que seria o primeiro filho. É a oportunidade da sensível Agnes, que secretamente o amava há muitos anos e finalmente ambos descobrem a felicidade que habitava com eles. Casam-se e têm muitos filhos.

O filme é assim esta multiplicidade de contactos, vivencias, alegrias e tristezas ao sabor da linha de vida de David Copperfield num registo de comédia, farsa e drama, com personagens muito vincados, unidimensionais, que se cruzam no tempo de vida e entretecem esta teia de relações fantasiando o que terá sido a vida de Charles Dickens vista por ele próprio, através do seu avatar David Copperfield. Não é um filme com mensagem particular, apenas uma história de ficção sobre um mundo real já desaparecido que nos distrai durante 120 minutos.

Classificação: 6 numa escala de 10

3 de setembro de 2020

Opinião – “Roubaix, Misericórdia” de Arnaud Desplechin


Sinopse

Roubaix, uma noite de Natal. O comissário Daoud percorre a cidade que o viu crescer. Carros incendiados, altercações… Na esquadra, um novo elemento, Louis Coterelle, acaba de chegar. Daoud e Louis vão investigar a morte de uma idosa. Duas jovens mulheres, Claude e Marie, são interrogadas. Pobres, alcoólicas, amantes.

Opinião por Artur Neves

Este filme é cinema do Real, isto é, a história que nos é pormenorizadamente contada, aconteceu com todos os contornos que nos são apresentados no filme realizado por Arnaud Desplechin e representado por atores que interpretam os principais personagens de Claude (Léa Seydoux) e Marie (Sara Forestier), detidas para investigação de um crime ocorrido num bairro incluído na jurisdição da esquadra de Roubaix, sob a direção do comissário Daoud (Roschdy Zem).

Á semelhança do programa “Casos de Polícia” da SIC Notícias, Mosco Boucault, jornalista francês ao serviço do canal France 3, acompanhou durante o ano de 2002 uma equipa de detetives da esquadra de Roubaix, um bairro pobre de Paris habitado fundamentalmente por emigrantes magrebinos, uns legais outros ilegais, onde tomou contacto com este caso de assassínio de uma idosa, perpetrado por Stéphanie e Annie, que no filme são representadas por Claude e Marie anteriormente referidas, além de documentar com impressionante realismo a vida numa esquadra de subúrbios e os mistérios da alma humana.

As duas mulheres viviam na mesma casa, Stéphanie (Claude - Léa Seydoux) tem um filho que está institucionalizado e Annie (Marie - Sara Forestier) de sexo misto ou indefinido, nutre profundo amor carnal e forte dependência emocional por Stéphanie que por falta de melhores oportunidades se sente compelida a aceitar aquela situação que não revela a sua verdadeira tendência como mulher.

Para ambientar a história, o filme também contempla os casos de denúncia culposa de incêndio de um carro, para obter vantagens da seguradora, uma tentativa de roubo com violência, a fuga de casa dos pais de uma adolescente e uma violação, mas o “prato forte” documental centra-se nas duas mulheres, inicialmente confrontadas com um incendio num quintal próximo em que elas são interrogadas como testemunhas de acusação dos presumíveis autores por motivos criminais.

A descoberta do cadáver da senhora que habitava o apartamento contíguo ao delas volta a coloca-las sob os holofotes da polícia e desta vez, as suas declarações individuais revelam contradições de depoimento que nenhuma sabe explicar com razoabilidade. O comissário Daoud, profundamente conhecedor dos hábitos da população do bairro onde passou a infância e a juventude, começa a desconfiar dos seus depoimentos e aumenta a pressão sobre elas nos interrogatórios separados a Claude e Marie que começa a quebrar a sua resistência ao pacto de silêncio estabelecido entre as duas.

É aqui que o filme tem o seu ponto alto pela expressão do fardo de culpa do culpado que ao não aguentar a pressão da verdade que lhe é apontada, soçobra ao peso da sua culpa e começa a falar, primeiro vacilantemente e depois completamente revelador, do modo como cometeu o ato, de forma a aliviar todo o peso que já não suporta e para se sentir outra vez humano e em paz consigo mesmo. Depois dessa revelação está exausta e pede apenas que a deixem dormir.

Os interrogatórios continuam com todo o pormenor descritivo possível, primeiro na esquadra numa simulação com um boneco e depois numa reconstituição no local em que Annie reproduz sobre a cama da defunta o modo como pressionou o travesseiro sobre o rosto da vizinha, enquanto lhe apertava o pescoço e como pediu ajuda á sua namorada Stéphanie, que visivelmente mais consciente tenta atenuar as condições de realização do crime, embora revivendo no local todo o horror do ato praticado, entre duas cervejas e um cigarro fumado à pressa.

Toda a história contém uma realidade palpável, descrita minuciosamente num bairro com uma população carente mostrando uma polícia competente e conhecedora da humanidade que ainda assim existe sob a natureza destas duas criminosas, que coabitam com as misérias de uma sociedade arruinada pelo álcool, droga e pela ociosidade que lhes retira perspetivas de futuro. Este filme foi apresentado em competição oficial no festival de Cannes 2019, por somente agora ter sido autorizada a teatralização deste caso de 2002, após ter transitado em julgado. Muito bom, recomendo.

Classificação: 8 numa escala de 10

 

Opinião – “O 3º andar: Terror na rua Malasaña” de Albert Pintó


Sinopse

A família Olmedo abandona a sua aldeia, esperando que uma vida na cidade lhes traga mais prosperidade, e compra um apartamento no terceiro andar do número 32 da Rua Manuela Malasaña, em Madrid. Mas os Olmedo desconhecem que há mais uma presença no apartamento que adquiriram. Algo de cuja existência não se apercebem vai pôr em risco as suas vidas e eles vão ter de se defender. E se a coisa mais aterradora de uma vida na cidade não estiver lá fora... mas sim dentro da nossa casa?... Inspirado numa história real.

Opinião por Artur Neves

Já referi noutras crónicas, tenho apreciado o progresso do cinema espanhol, no sentido de se ter tornado mais maduro, mais consciente do seu papel de representativo divulgador do modo de estar da sociedade espanhola, como apoiante ou como crítico das suas atitudes em documentos que nos apresentam lições de vida a seguir ou a rejeitar.

No subgénero de cinema de suspense ou de terror, que tem os seus apreciadores particulares, também notei evolução na cinematografia espanhola, mas no caso presente parece que Albert Pintó reuniu uma coletânea de cenas tradicionais do género, tais como; sons, sombras, figuras fugitivas, possessões, seres deformados, levitações, exorcismos e toda mais uma série de outras caraterísticas que os efeitos especiais sabem potenciar e engendrou um argumento para ligar contínua e insistentemente as cenas coletadas.

Desde a primeira imagem até final, a história vai sucessivamente de acidente em acidente tentando provocar-nos o susto com a surpresa da sua aparição, cada uma mais dramática que a anterior até ao arremedo de exorcismo final não concretizado, porque o mal tem o poder de fazer desaparecer as letras da bíblia. Provavelmente para se eternizar e permitir uma sequela.

O mais confrangedor todavia, situa-se no facto da história não ser credível, as cenas preocupam-se somente em criar o susto gratuito, quer se verifique coerência ou não dos factos e das atitudes dos personagens em resposta aos mesmos, num completo desconchavo das sequências que nos vão sendo apresentadas, com a lógica remota de um espírito maligno habitar o 3º andar da rua Malasaña, algures em Madrid dos anos 70, sob o signo da inspiração numa história real.

Não duvido que naquela época e naquele meio social, no prédio antigo em que se situa aquele 3º andar, possa ter existido algum rumor de possessão espírita veiculado pelos moradores e vizinhos, todos eles trabalhadores em ocupações modestas. O que contesto é que a história seja contada à pressão dos eventos, em cenas risíveis de conteúdo e a resposta das personagens seja vaga ou até inexistente somente para permitir a continuada exaltação em crescendo dentro do tempo previsto para o videograma.

Num filme de terror “a sério” o medo deve ser insinuado subtilmente de forma a excitar os receios ou reservas do espectador nos seus próprios medos, que serão assim projetados nas cenas apresentadas provocando sentimentos de repulsa e negação, donde sairá a verdadeira ansiedade e a correspondente produção de adrenalina que o espectador fiel do género procura.

Nada disto se passa aqui, durante os 104 minutos deste equívoco que desde o início se percebe ao que vem. E é pena, porque a realização técnica do filme apresenta efeitos e recursos com potencial para contarem uma história decente.

Classificação: 4 numa escala de 10

1 de setembro de 2020

Opinião – “Regresso a Itália” de James D'Arcy


Sinopse

Robert (Liam Neeson) é um boémio artista londrino que regressa a Itália com o filho, Jack (Micheál Richardson), de quem se distanciara, com o objetivo de vender rapidamente a casa que herdaram da falecida mulher de Robert. Mas nenhum estava preparado para encontrar a outrora bela villa num estado de abandono total…

A cómica falta de competência de Robert para a bricolagem leva-o a procurar a ajuda de pitorescos habitantes locais, mas para Jack o estado da casa parece refletir a sua busca por memórias de tempos mais felizes com a sua mãe.

Enquanto Robert e Jack restauram meticulosamente a villa, começam também a reparar a sua relação. O futuro poderá ser bem diferente e surpreender ambos.

Opinião por Artur Neves

Este é um filme de memórias… dolorosas, algumas, ternas outras, mas durante todo o tempo a história sobrevoa um passado dos personagens, que se faz presente na direta medida do reconhecimento do tempo perdido ao terem encerrado o passado, como se isso fosse somente um mero resultado da vontade, da dor da recordação, ou da falta dela no caso de um deles.

James D'Arcy é um ator (em 2019 personificou Jarvis, o mordomo, em Vingadores: Endgame) que se estreia como realizador de uma longa metragem com este filme, numa história escrita por ele próprio e que tem a força emocional de um pai distante, que atende o seu filho que não vê há muito tempo, numa altura em que este precisa de dinheiro para realizar o seu sonho, que será conseguido à custa da venda da casa da família na Toscânia, abandonada desde o acidente fatal da mãe que desmembrou a relação.

Segundo as notas da produção, esta história não tem qualquer relação com a perda trágica da esposa real de Liam Neeson, em 2009, Natasha Richardson, mãe de Micheál, filho do casal, que adotou o apelido profissional de Richardson em homenagem à falecida atriz britânica tão importante na vida dos dois.

Todavia, não pode deixar de haver uma transferência de sentimentos, de memórias e de emoções, sentidos pelo ator de 68 anos e pelo seu filho de 25 ao interpretar uma história tão perto de uma realidade dolorosa, embora ocorrida noutro local, mas que assim confere honestidade e comoção a uma história simples na sua essência, que não seria vivida com tanta intensidade como o filme apresenta.

Tal como referido na sinopse tanto a casa na Toscânia, como a relação entre Robert e Jack já tiveram melhores dias, com entulho, pó, sujidade e destruição por todos os lados, sem falar na doninha que habita o que resta do armário e de um mural vermelho e negro que Robert pintou numa parede inteira, ao estilo de Jackson Pollock, para aplacar a sua fúria contra o infortúnio que o atingiu.

O plano todavia é vender a casa, Jack está à beira do divórcio e ficará sem meios de subsistência se não arranjar dinheiro para comprar a galeria de arte que dirige em Londres e que pertence à sua futura ex-mulher, portanto, embora ambos tendo pouco jeito para a bricolagem decidem por mãos à obra, com algumas ajudas extra, porque o objetivo é uma venda rápida.

Nesta situação em que a arte imita a vida, estão criadas as condições para uma catarse emocional que poderia ser mais profunda, mas que D'Arcy aborda superficialmente e polvilha de momentos de sensibilidade cómica entrelaçados com outros mais comoventes, chegando noutras alturas ao nível da farsa. Porém todo o filme é agradável e não se espere grandes surpresas das perspetivas que desde cedo são apontadas, nesta história que decorre num local de grande beleza natural, numa Itália rural com boa comida e gente boa. Representa um curto intervalo nas preocupações contra a covid-19. Recomendo.

Classificação: 6 numa escala de 10