Roubaix, uma noite de Natal.
O comissário Daoud percorre a cidade que o viu crescer. Carros incendiados,
altercações… Na esquadra, um novo elemento, Louis Coterelle, acaba de chegar.
Daoud e Louis vão investigar a morte de uma idosa. Duas jovens mulheres, Claude
e Marie, são interrogadas. Pobres, alcoólicas, amantes.
Opinião
por Artur Neves
Este filme é cinema do Real,
isto é, a história que nos é pormenorizadamente contada, aconteceu com todos os
contornos que nos são apresentados no filme realizado por Arnaud Desplechin e
representado por atores que interpretam os principais personagens de Claude (Léa
Seydoux) e Marie (Sara Forestier), detidas para investigação de um crime
ocorrido num bairro incluído na jurisdição da esquadra de Roubaix, sob a
direção do comissário Daoud (Roschdy Zem).
Á semelhança do programa “Casos
de Polícia” da SIC Notícias, Mosco Boucault, jornalista francês ao serviço do
canal France 3, acompanhou durante o ano de 2002 uma equipa de detetives da
esquadra de Roubaix, um bairro pobre de Paris habitado fundamentalmente por
emigrantes magrebinos, uns legais outros ilegais, onde tomou contacto com este
caso de assassínio de uma idosa, perpetrado por Stéphanie e Annie, que no filme
são representadas por Claude e Marie anteriormente referidas, além de
documentar com impressionante realismo a vida numa esquadra de subúrbios e os
mistérios da alma humana.
As duas mulheres viviam na
mesma casa, Stéphanie (Claude - Léa Seydoux) tem um filho que está institucionalizado
e Annie (Marie - Sara Forestier) de sexo misto ou indefinido, nutre profundo
amor carnal e forte dependência emocional por Stéphanie que por falta de
melhores oportunidades se sente compelida a aceitar aquela situação que não
revela a sua verdadeira tendência como mulher.
Para ambientar a história, o
filme também contempla os casos de denúncia culposa de incêndio de um carro,
para obter vantagens da seguradora, uma tentativa de roubo com violência, a
fuga de casa dos pais de uma adolescente e uma violação, mas o “prato forte”
documental centra-se nas duas mulheres, inicialmente confrontadas com um
incendio num quintal próximo em que elas são interrogadas como testemunhas de
acusação dos presumíveis autores por motivos criminais.
A descoberta do cadáver da
senhora que habitava o apartamento contíguo ao delas volta a coloca-las sob os
holofotes da polícia e desta vez, as suas declarações individuais revelam
contradições de depoimento que nenhuma sabe explicar com razoabilidade. O comissário
Daoud, profundamente conhecedor dos hábitos da população do bairro onde passou
a infância e a juventude, começa a desconfiar dos seus depoimentos e aumenta a
pressão sobre elas nos interrogatórios separados a Claude e Marie que começa a
quebrar a sua resistência ao pacto de silêncio estabelecido entre as duas.
É aqui que o filme tem o seu
ponto alto pela expressão do fardo de culpa do culpado que ao não aguentar a
pressão da verdade que lhe é apontada, soçobra ao peso da sua culpa e começa a
falar, primeiro vacilantemente e depois completamente revelador, do modo como
cometeu o ato, de forma a aliviar todo o peso que já não suporta e para se
sentir outra vez humano e em paz consigo mesmo. Depois dessa revelação está exausta
e pede apenas que a deixem dormir.
Os interrogatórios continuam
com todo o pormenor descritivo possível, primeiro na esquadra numa simulação
com um boneco e depois numa reconstituição no local em que Annie reproduz sobre
a cama da defunta o modo como pressionou o travesseiro sobre o rosto da vizinha,
enquanto lhe apertava o pescoço e como pediu ajuda á sua namorada Stéphanie,
que visivelmente mais consciente tenta atenuar as condições de realização do
crime, embora revivendo no local todo o horror do ato praticado, entre duas
cervejas e um cigarro fumado à pressa.
Toda a história contém uma
realidade palpável, descrita minuciosamente num bairro com uma população
carente mostrando uma polícia competente e conhecedora da humanidade que ainda
assim existe sob a natureza destas duas criminosas, que coabitam com as
misérias de uma sociedade arruinada pelo álcool, droga e pela ociosidade que
lhes retira perspetivas de futuro. Este filme foi apresentado em competição
oficial no festival de Cannes 2019, por somente agora ter sido autorizada a
teatralização deste caso de 2002, após ter transitado em julgado. Muito bom,
recomendo.
Classificação: 8 numa escala
de 10
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