15 de setembro de 2020

Opinião – “O Ano da Morte de Ricardo Reis” de João Botelho

Sinopse

O Ano da Morte de Ricardo Reis, é a adaptação para cinema, do romance homónimo de José Saramago. Entrelaçando os fios da ficção e da História, o escritor concebeu um encontro particular, entre o defunto Fernando Pessoa, o criador, com uma das suas criaturas, o heterónimo Ricardo Reis, regressado ao país ao fim de 16 anos de exílio no Brasil. 1936 é o ano de todos os perigos, do fascismo de Mussolini, do nazismo de Hitler, da terrível guerra civil espanhola e do Estado Novo de Salazar. Pessoa e Reis são dois lúcidos observadores da agonia de um tempo, tão similar ao que vivemos. Nessa relação intrometem-se duas mulheres, Lídia e Marcenda, as paixões carnais e impossíveis de Ricardo Reis.

Opinião por Artur Neves

Fernando Pessoa o nosso mais enigmático e ilustre poeta, ensaísta e escritor do princípio do século XX, defensor acérrimo da Língua Portuguesa construiu a sua obra através de vários heterónimos, em cada um dos quais ele abordava as questões da vida, do amor, da sociedade com linhas diferentes de pensamento como que de pessoas efetivamente diferentes se tratassem. Na realidade seriam mesmo diferentes e viveriam como que em universos paralelos, dentro da mesma pessoa, fingindo a sua independência parcial e ajudando-o assim a sobreviver à solidão depressiva do seu verdadeiro “eu”.

José Saramago, o nosso 2º prémio Nobel, pegou num dos heterónimos de Fernando Pessoa, que não tinha data de falecimento definida, Ricardo Reis e concebeu um encontro da criatura com o seu criador, para entabular conversas e debates sobre o mundo, o país, e os conceitos de vida, morte e amor num romance que pode ser encarado como sendo; Fernando Pessoa visto por José saramago.

Em boa verdade a ideia é brilhante, e o romance adaptado ao cinema por João Botelho segue rigorosamente este, segundo declaração do realizador, constituindo assim em 1984, data da publicação do romance, a visão que Fernando Pessoa teria da nossa época extrapolada das suas conversas ficcionadas consigo próprio em 1936, onde analisa os tempos conturbados da ascensão dos regimes autoritaristas que começavam a despontar por toda a Europa naquele ano. A atual estreia do filme também se justifica pela evolução da direita e da extrema direita a que temos assistido, um pouco por todo o lado, nesta mesma Europa.

A história para suportar este estranho encontro é o regresso do Brasil de Ricardo Reis (Chico Díaz) que fica hospedado no Hotel Bragança na Rua do Alecrim, inaugurado em 1924 por Mário Xara Brazil, investidor brasileiro na época, cujo hotel atualmente se denomina desde 2014 por “LX Boutique Hotel”. (A realidade dentro da ficção fantástica).

Nesse hotel Ricardo Reis, começa a receber a visita do seu criador Fernando Pessoa (Luís Lima Barreto) recentemente falecido, mas ainda dentro do tempo que ele atribuía ao tempo de memória dos familiares, amigos e conhecidos, nove meses, tal como o tempo de gestação de uma vida até ao nascimento. O personagem de Fernando Pessoa parece-nos estranho por não corresponder ao arquétipo que generalizadamente nos é apresentado em fotografias, magro, esquálido, silencioso e metido consigo. A explicação apresentada pelo realizador é que Pessoa, tendo efetivamente morrido aos 47 anos, apresentava um aspeto físico compatível com uma idade de 70 anos, donde a escolha deste ator.

Nesses encontros entre Pessoa e Ricardo Reis são então abordados os grandes temas da vida, (que no romance devem ter servido a Saramago para desenvolver pequenos ensaios literários), sobre a vida, a morte, o estado do país, a consolidação do regime de Salazar e a sua providência social com a criação da “Sopa dos Pobres”, o Estado Novo e a sua recém criada polícia política PVDE, que em tudo se intermete e intervém, bem como os grandes movimentos mundiais da época como o fascismo de Mussolini, o nazismo de Hitler e mais próximo de nós, o início da guerra civil espanhola.

O amor também é abordado nas conversas, onde Pessoa elogia e inquire as caraterísticas românticas de Ricardo Reis com Lídia (Catarina Wallenstein) a criada de quarto que se apaixona pelo Dr. Ricardo e que constitui o seu amor carnal com quem se relaciona sexualmente e Marcenda (Victoria Guerra) uma filha de família que todos os meses fica com o pai no hotel para comparecer a uma consulta médica que não traz melhoras para o seu mal, mas que o contacto com Ricardo Reis e o amor platónico desenvolvido entre ambos lhe confere uma noção de maioridade negada no seio familiar.

O filme foi rodado a preto e branco para enfatizar o contraste entre o claro e escuro dos ambientes onde os personagens se movem com diferentes preocupações, embora para mim isso constitua apenas uma desculpa. É igualmente possível criar os mesmos ambientes a cores, bem como as mudanças de cena, que são executadas com o fecho progressivo da iris do obturador, como se fazia no cinema mudo. Todavia, estas idiossincrasias do realizador não interferem na história, que apesar de um certo desligamento entre cenas, tão característico do cinema português, constitui um bom espetáculo e merece ser visto durante todos os seus 130 minutos. É uma oportunidade para ver chover a sério em Portugal. Recomendo.

Classificação: 7 numa escala de 10

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