O Ano da Morte de Ricardo
Reis, é a adaptação para cinema, do romance homónimo de José Saramago.
Entrelaçando os fios da ficção e da História, o escritor concebeu um encontro
particular, entre o defunto Fernando Pessoa, o criador, com uma das suas
criaturas, o heterónimo Ricardo Reis, regressado ao país ao fim de 16 anos de
exílio no Brasil. 1936 é o ano de todos os perigos, do fascismo de Mussolini, do
nazismo de Hitler, da terrível guerra civil espanhola e do Estado Novo de
Salazar. Pessoa e Reis são dois lúcidos observadores da agonia de um tempo, tão
similar ao que vivemos. Nessa relação intrometem-se duas mulheres, Lídia e
Marcenda, as paixões carnais e impossíveis de Ricardo Reis.
Opinião
por Artur Neves
Fernando Pessoa o nosso mais
enigmático e ilustre poeta, ensaísta e escritor do princípio do século XX,
defensor acérrimo da Língua Portuguesa construiu a sua obra através de vários heterónimos,
em cada um dos quais ele abordava as questões da vida, do amor, da sociedade
com linhas diferentes de pensamento como que de pessoas efetivamente diferentes
se tratassem. Na realidade seriam mesmo diferentes e viveriam como que em
universos paralelos, dentro da mesma pessoa, fingindo a sua independência parcial
e ajudando-o assim a sobreviver à solidão depressiva do seu verdadeiro “eu”.
José Saramago, o nosso 2º
prémio Nobel, pegou num dos heterónimos de Fernando Pessoa, que não tinha data
de falecimento definida, Ricardo Reis e concebeu um encontro da criatura com o
seu criador, para entabular conversas e debates sobre o mundo, o país, e os
conceitos de vida, morte e amor num romance que pode ser encarado como sendo;
Fernando Pessoa visto por José saramago.
Em boa verdade a ideia é
brilhante, e o romance adaptado ao cinema por João Botelho segue rigorosamente
este, segundo declaração do realizador, constituindo assim em 1984, data da
publicação do romance, a visão que Fernando Pessoa teria da nossa época
extrapolada das suas conversas ficcionadas consigo próprio em 1936, onde analisa
os tempos conturbados da ascensão dos regimes autoritaristas que começavam a
despontar por toda a Europa naquele ano. A atual estreia do filme também se
justifica pela evolução da direita e da extrema direita a que temos assistido,
um pouco por todo o lado, nesta mesma Europa.
A história para suportar
este estranho encontro é o regresso do Brasil de Ricardo Reis (Chico Díaz) que
fica hospedado no Hotel Bragança na Rua do Alecrim, inaugurado em 1924 por Mário
Xara Brazil, investidor brasileiro na época, cujo hotel atualmente se denomina desde
2014 por “LX Boutique Hotel”. (A realidade dentro da ficção fantástica).
Nesse hotel Ricardo Reis, começa
a receber a visita do seu criador Fernando Pessoa (Luís Lima Barreto)
recentemente falecido, mas ainda dentro do tempo que ele atribuía ao tempo de memória
dos familiares, amigos e conhecidos, nove meses, tal como o tempo de gestação
de uma vida até ao nascimento. O personagem de Fernando Pessoa parece-nos
estranho por não corresponder ao arquétipo que generalizadamente nos é
apresentado em fotografias, magro, esquálido, silencioso e metido consigo. A explicação
apresentada pelo realizador é que Pessoa, tendo efetivamente morrido aos 47
anos, apresentava um aspeto físico compatível com uma idade de 70 anos, donde a
escolha deste ator.
Nesses encontros entre
Pessoa e Ricardo Reis são então abordados os grandes temas da vida, (que no
romance devem ter servido a Saramago para desenvolver pequenos ensaios literários),
sobre a vida, a morte, o estado do país, a consolidação do regime de Salazar e a
sua providência social com a criação da “Sopa dos Pobres”, o Estado Novo e a
sua recém criada polícia política PVDE, que em tudo se intermete e intervém, bem
como os grandes movimentos mundiais da época como o fascismo de Mussolini, o nazismo
de Hitler e mais próximo de nós, o início da guerra civil espanhola.
O amor também é abordado nas
conversas, onde Pessoa elogia e inquire as caraterísticas românticas de Ricardo
Reis com Lídia (Catarina Wallenstein) a criada de quarto que se apaixona pelo
Dr. Ricardo e que constitui o seu amor carnal com quem se relaciona sexualmente
e Marcenda (Victoria Guerra) uma filha de família que todos os meses fica com o
pai no hotel para comparecer a uma consulta médica que não traz melhoras para o
seu mal, mas que o contacto com Ricardo Reis e o amor platónico desenvolvido
entre ambos lhe confere uma noção de maioridade negada no seio familiar.
O filme foi rodado a preto e
branco para enfatizar o contraste entre o claro e escuro dos ambientes onde os
personagens se movem com diferentes preocupações, embora para mim isso
constitua apenas uma desculpa. É igualmente possível criar os mesmos ambientes
a cores, bem como as mudanças de cena, que são executadas com o fecho
progressivo da iris do obturador, como se fazia no cinema mudo. Todavia, estas idiossincrasias
do realizador não interferem na história, que apesar de um certo desligamento
entre cenas, tão característico do cinema português, constitui um bom
espetáculo e merece ser visto durante todos os seus 130 minutos. É uma oportunidade
para ver chover a sério em Portugal. Recomendo.
Classificação: 7 numa escala
de 10
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