Sinopse
"CRASH" é um dos
maiores êxitos da carreira de David Cronenberg e, também, um dos seus filmes
mais controversos e polémicos. Adaptado do romance de J.G. Ballard, “CRASH” é
um filme demencial sobre o fascínio do sexo e da morte sobre rodas, uma macabra
visão sobre a combinação entre erotismo e mutilação, autodestruição calculada e
desejo sexual, morte violenta e acidentes rodoviários.
James Ballard (James
Spader), um produtor de filmes publicitários, tem um grave acidente de viação
ao colidir com outro automóvel, que resulta na morte do outro condutor e deixa
a mulher dele, ferida. No hospital, Ballard perde-se e volta a encontrar Helen
Remington (Holly Hunter), a viúva da vítima mortal do acidente. Na sua companhia
conhece Vaughan (Elias Koteas), um cientista e fotógrafo fascinado pela beleza
erótica dos ferimentos e das mutilações originadas por acidentes de viação.
Ballard começa por se sentir curioso em relação a Vaughan e às suas ideias de
recriar acidentes célebres, como o que vitimou James Dean. E, lentamente
deixa-se contagiar pelo erotismo que emerge da insólita combinação.
Opinião
por Artur Neves
Em 1996 este foi o filme
choque do ano que levantou grande polémica no Reino Unido tendo sido objeto de
análise pelo conselho de Westminster que emitiu um édito solene proibindo a sua
exibição nos cinema como proteção para os bons costumes, cujos guardiões se sentiram
atingidos nessa época com tanta exibição sexual associada ao erotismo provocado
por um acidente automóvel. Basicamente após um acidente com feridos e
eventualmente mortos, na opinião do realizador David Cronenberg e segundo a
prosa macabra de J.G. Ballard no seu romance “Crash”, original de 1973, com uma
história sobre uma parafilia designada por sinforofilia, (fetichismo sexual em
acidentes de automóvel) em que os sobreviventes são assaltados por um erotismo
avassalador que os convida à prática sexual imediata, até junto aos destroços
do carro sinistrado como mostram as últimas imagens deste filme.
Vinte e quatro anos depois surge-nos
esta versão “remasterizada” para alta definição (1080p) e 4K (2160p) UHD com
HDR (High Dynamic Range) supervisionadas por Cronenberg e pelo diretor de
fotografia Peter Suschitzky que nos garante fidelidade ao original e que tem
como vantagem clarear muitas das cenas que foram filmadas à noite e que se
apresentavam muito escuras. O upscaling
deste filme revelou-se uma boa solução acentuando os espaços menos escuros mas
sobretudo valorizando os espaços internos, opressivos e apertados dos carros
sinistrados onde se passa muita da ação da história, permitindo ao espectador
uma visão mais nítida do seu interior.
A história está
suficientemente descrita na sinopse pelo que não irei acrescentar mais nada,
exceto que a sua sequência não é muito linear privilegiando-se a exibição das
cenas que causam impacto no espectador em vez da construção da relação que as
suporta. O filme pretendia quebrar os tabus ainda vigentes na época mostrando inconformismo
perante comportamentos e crenças normativas que limitavam a liberdade
individual mutuamente aceite. Crash foi feito com a nítida intenção de ser
polémico, de chocar de frente com a generalizada hipocrisia das crenças sociais
e religiosas que conduzem à castração da líbido e à normalização e controlo dos
comportamentos humanos.
Cronenberg filma a história
sem valorizar muito o ambiente em que ela se desenrola, a cidade é apenas o
lugar, um labirinto de cimento e asfalto que se sobrepõe à empatia e ao
contacto humano e confere palco ao acidente que potencia o lado primitivo e
carnal das personagens que na história levam vidas desinteressantes e paradas,
sem interesses para lá da sua fixação obsessiva no desastre donde retiram toda
a sua humanidade. O desastre, o choque entre os automóveis funciona tanto como
o evento nocivo resultante, como a metáfora que acorda os personagens e os
retira do marasmo das suas vidas vazias porque é só para aquilo que eles
existem, para o sexo, para a partilha derradeira dos seus corpos, depois de mutilados
pelo acidente ou pelo choque deliberadamente provocado donde resulta esta
derradeira comunhão.
A narrativa é circular,
centrada no sexo quase explícito, embora sem nunca ser pornográfico, o filme
repete-se das formas mais esdruxulas de sexualidade humana das quais destaco o
personagem de Gabrielle (Rosanna Arquette), uma mulher de porte atraente mas
com ambas as pernas suportadas por um aparelho que forma um exosqueleto que lhe
permite a locomoção, vestida com um fato de cabedal rígido que serve de suporte
ao tórax. Apesar das dores que deve sentir por todo o corpo e de cicatrizes
visíveis nas pernas não perde o desejo sexual nem a apetência pelo desastre.
Quando estreou em Cannes e
desde logo polémico, embora tendo ganho o Prémio Especial do Júri pela ousadia
da sua originalidade, “Crash” ganhou aquela aura do extraordinário e do
diferente por abordar as relações humanas de uma forma tão violentamente inquietante
que se torna hipnotizante. Não nos seduz mas questiona-nos na nossa humanidade onde não cabe a indiferença.
Deve ser visto pelo menos uma vez na vida e estará disponível a partir de 7 de
Janeiro nos cinemas.
Classificação: 7 numa escala
de 10