21 de abril de 2021

Opinião – “Uma Miúda com Potencial” de Emerald Fennell

Sinopse

Da visionária realizadora Emerald Fennell (Killing Eve) chega-nos uma nova e deliciosa versão da vingança...Todos pensavam que Cassie (Carey Mulligan) era uma miúda com potencial... Até um misterioso acontecimento ter subitamente arruinado o seu futuro. Nada na vida da Cassie é o que parece ser: ela é perversamente inteligente, tentadoramente astuta, e está a viver uma vida dupla e secreta durante a noite. E agora, um encontro inesperado está prestes a dar a Cassie a oportunidade de corrigir os erros do passado nesta história emocionante e extremamente cativante.”Uma Miúda com Potencial” foi nomeado para 4 Globos de Ouro®: Melhor Filme – Drama, Melhor Atriz -Carey Mulligan, Melhor Realizador e Melhor Argumento.

NOTA: Esta crónica já foi publicada neste blogue quando da estreia deste filme nas plataformas de streaming. O que se noticia agora é a sua estreia nas salas de cinema, prevista para 29 de Abril de 2021, distribuído pela Cinemundo.

Opinião por Artur Neves

Com uma tradução para português aceitável, este; “Uma Miúda com Potencial” foi considerado na lista dos nomeados para os Globos de Ouro, bem como, na recente lista para os prémios BAFTA (73ª British Academy Film Awards) de cinema, em Inglaterra. Com um argumento no género thriller representa ainda a estreia auspiciosa da realizadora inglesa Emerald Fennell, também autora do argumento, que com este filme inicia a sua carreira em longas-metragens, duma maneira tão prometedora como a protagonista da história que nos mostra este filme.

Ela, Cassandra Thomas, Cassie para os amigos, é uma estudante de medicina que perto dos seus 30 anos decidiu suspender o seu curso de medicina para se dedicar à tarefa justicialista sobre um evento traumático que a acompanha desde a juventude e a impede de ser feliz. Ela simula um estado de completa embriaguez nos bares que frequenta, provocando lascivamente os frequentadores masculinos com espírito predador que ela arrasta para um motel, ou os acompanha a casa para uma lição de consentimento e de respeito sobre a real vontade da parceira, que eles nunca mais esquecerão.

Não quero revelar demais como se processa o castigo, mas na altura da “lição” Cassie assume o espírito do acidente acontecido com uma amiga da faculdade que ela tratava como irmã e morreu às mãos de outros colegas; Madison (Alison Brie), e Dean Walker (Connie Britton) que permaneceram imóveis e mudos perante irrefutáveis provas da violação a que a amiga foi sujeita. Cassie assume um papel difícil e perigoso que não lhe permite grande margem de autonomia, mas o desgosto e a raiva presente nas suas memórias impede-a de recuar na sua cruzada pela razão e pela vingança.

Na manhã seguinte já a vemos no pleno controlo das suas faculdades caminhando com os seus sapatos de salto alto na mão enquanto devora com apetite um hambúrguer a caminho do seu trabalho de ocasião numa cafetaria. Este é um filme de mulheres que lutam contra a violação por homens sem escrúpulos e pelo respeito a que têm direito como pessoas com capacidade de decisão e de vontade autónoma.

A história deste filme explora de forma ousada ideias complexas que se cruzam nos pensamentos humanos e nas normas legais. Fazer justiça pelas próprias mãos nunca é uma solução aconselhável, mas por vezes as circunstâncias assim nos conduzem a este limite. O filme mostra-nos o fundamentalmente importante sobre o sexo consentido, ou a falta da sua aquiescência, e a tolerância das instituições académicas para os estudantes masculinos e os seus devaneios impulsivos generalizadamente compreendidos quando apanhados em transgressão.

Carey Mulligan dá o melhor de si à interpretação de um personagem sofredor que assumiu a responsabilidade de não deixar o crime de uma pessoa que lhe era tão próxima, impune, ou esquecido numa investigação interrompida, através de múltiplas tentativas de vingança purificadora. As suas razões são genuínas e no seu caminho encontra homens em quem excita os seus piores impulsos para nos mostrar e provar a si própria a justeza dos seus actos contra todas as ações censuráveis. A obstinação dos propósitos de Cassie é um conceito exaustivo que por outro lado nos mostra que nem todos os homens que ela encontra são igualmente merecedores do mesmo tratamento, mas a sua determinação em atingir os objetivos faz-nos pensar que eles ainda são piores, residindo aqui a parcialidade desta história que nos agarra ao ecrã, entre drama, comédia e suspense durante 114 minutos, com significativo agrado.

Classificação: 7 numa escala de 10

 

20 de abril de 2021

Opinião – “O Pai” de Florian Zeller

Sinopse

Anthony (Anthony Hopkins, vencedor de um Óscar) tem 81 anos e mora sozinho no seu apartamento em Londres, rejeitando todas as enfermeiras que a sua filha Anne (Olivia Colman, vencedora de um Óscar) tenta impor-lhe. Porém, esse apoio torna-se cada vez mais urgente para ela, pois vai deixar de poder visitá-lo todos os dias – decidiu mudar-se para Paris para viver com um homem que acabou de conhecer...

Mas se isso é verdade, quem é o estranho que irrompe pela sala de Anthony, afirmando ser casado com Anne há mais de dez anos? E porque diz tão convictamente que estão na casa do casal e não no apartamento de Anthony? E ela não tinha decidido ir viver para Paris? Estará Anthony a perder o juízo? Parece que o mundo, por instantes, deixou de ter lógica.

‘O Pai’ aborda a trajetória extremamente tocante de um homem, outrora forte e enérgico, cuja realidade se vai desmoronando lentamente perante os nossos olhos. Mas é também a história de Anne, a filha que enfrenta um dilema igualmente revelador e doloroso: o que fazer com o pai? Como viver o momento mantendo a dignidade dos dois?

Opinião por Artur Neves

Como resultado da adaptação da peça teatral premiada do dramaturgo francês Florian Zeller “Le Père” temos aqui uma versão melhorada do tema da evolução da demência, adaptado e traduzido para a língua e cultura inglesa por Christopher Hampton que transcende as raízes teatrais pela mão de Anthony Hopkins no papel central de Anthony, dando corpo a um personagem que funciona bem em si mesmo, instalando alguma confusão no espectador até este entender que está a ver a interpretação do mundo exterior através da mente perturbada de Anthony.

Anthony tem 80 anos, vive no seu espaçoso apartamento em Londres e luta com a filha Anne (Olivia Colman) que o visita regularmente, para a convencer de que está bem de saúde, não precisa de ninguém que cuide dele, que só têm como objetivo roubar-lhe o que ele possui, tal como o relógio de pulso desaparecido de que ele não prescinde, mas que a sua filha facilmente recupera, escondido por ele num lugar secreto, do qual já se tinha esquecido.

O apartamento é um espaço físico rígido, mas a disposição dos móveis e a própria decoração das salas muda constantemente sendo-nos apresentado em planos lentos, circulando por corredores e portas num cenário labiríntico que por vezes nos confunde. É a mesma técnica usada nos filmes de terror em que uma porta entreaberta significa uma ameaça ou pelo menos uma surpresa desconhecida. Também aqui o espectador tem de se habituar a um layout mutável quase de cena a cena e quanto mais cedo o aceitar melhor desfrutará da excelente representação que lhe é oferecida.

Hopkins e Colman são excelentes a defender os seus personagens e se dele nos recordamos pelo seu impressionante Hannibal Lecter de “O Silêncio dos Inocentes” recentemente comemorado pelos seus 30 anos de estreia, ela, mostra-nos que pode fazer qualquer coisa e que neste desempenho nunca teve um momento em falso em qualquer das muitas cenas em que aparece. Ambos foram merecidamente nomeados para os Óscares mas duvido que sejam contemplados, considerando a recente distinção de Hopkins nos BAFTA deste ano e Colman recebeu um Oscar em 2019 pelo seu desempenho em “A Favorita” no papel da rainha Anne, monarca inglesa no século XVIII.

Na cena em que Anne procura admitir mais uma cuidadora, devido á expulsão da última pelo seu pai, pode admirar-se a extrema versatilidade de Hopkins alternado entre o charme acolhedor e a crueldade, ao insinuar-se primeiro na conversa com Laura (Imogen Poots) durante a sua entrevista com Anne para apresentação ao lugar e de seguida atacando-a devastadoramente pelo seu sorriso franco e aberto, não perdendo a compostura numa série de sorrisos gelados que misturam pena com humilhação, saindo posteriormente da sala como se nada tivesse acontecido.

Todo o filme desafia o público na avaliação da coerência dos factos que lhe apresenta colocando-nos no mundo mutante de Anthony elaborando magistralmente a narrativa da demência e da perda de memória e embora sem possuir um momento mais marcante ou mais empolgante pela degenerescência progressiva da doença, é um filme incrivelmente perfeito ao terminar no regresso á origem do ser humano que quando sente que tudo falha ao seu redor, refugia-se no desejo de ser amado, no acolhimento do consolo remoto da sua mãe, que reclama, no momento em que se consciencializa de que tudo o que reconhece da sua vida está a ser arrancado dele definitivamente. Muito bom, recomendo vivamente.

Tem estreia prevista para 6 de Maio nas salas de cinema.

Classificação: 8 numa escala de 10

 

16 de abril de 2021

Opinião – “Mais uma Rodada” de Thomas Vinterberg

Sinopse

Existe a teoria que o ser humano deveria nascer com uma pequena quantidade de álcool no sangue e que a embriaguez moderada abre as mentes para o mundo ao nosso redor, diminuindo os problemas e aumentando a criatividade. Atentos a esta teoria, Martin e três dos seus amigos, professores cansados do ensino secundário, embarcam numa experiência para manter um nível constante de intoxicação durante o dia de trabalho. Se Churchill venceu a Segunda Guerra Mundial ébrio, quem sabe o que alguns copos podem fazer por eles e pelos seus alunos? Os resultados iniciais são positivos e o pequeno projeto dos professores transforma-se num verdadeiro estudo académico. Mas rapidamente fica claro que a experiência, ainda que interessante, traz consequências.

Opinião por Artur Neves

Quem não sentiu que aquele copito a mais lhe libertou a imaginação, a fluência verbal e a boa disposição numa reunião de amigos?... se não sentiu é porque não se conhece, é demasiadamente contido ou tem medo de revelar a si próprio a sua autenticidade reprimida. É disto que trata esta história muito bem realizada por Thomas Vinterberg, já nomeado para o prémio de melhor realizador e interpretada por um Mads Mikkelsen ao seu melhor nível que neste desempenho revela-nos um personagem profundamente humano com todas as suas misérias, tristezas e desencantos, intercaladas por momentos de pura euforia e felicidade. Qual das duas é a verdadeira essência humana?... ou será que ambas fazem parte de um todo harmónico e perfeito?...

Mads Mikkelsen é Martin, um professor de História, de aparência triste e taciturna que não consegue empolgar os seus alunos para a matéria versada nas aulas ao ponto que a classe reclamar dele junto da diretora manifestando o seu receio de impreparação para o exame de qualificação a que serão sujeitos no final do ano. Todavia ele não é incompetente, é somente chato e desinteressante no seu trabalho escolar. E casa, sua esposa Anika (Maria Bonnevie) dá-lhe uma resposta evasiva mascarada de gentileza, quando ele lhe pergunta se se tornou chato. A sua pergunta porém não é inocente porque ele notou que ela aceitou todos os turnos de trabalho em horário noturno, em que ele está em casa, possivelmente para não se encontrarem. Os dois filhos do casal vegetam em frente à televisão e olham-no sem realmente o verem. Ele tornou-se estranho, ou todos eles tornaram-se estranhos para ele e isso preocupa-o e tolhe-lhe a possibilidade de se sentir feliz, afogando-se na sua monotonia.

Durante uma festa de aniversário com colegas professores na mesma escola, o aniversariante, Nikolaj (Magnus Millang) sugere a todos a realização de uma experiência para análise da teoria de Finn Skårderud, um psicólogo norueguês real, que postulou que o organismo humano tem naturalmente um deficit de álcool, pelo que todos deveriam promover a si próprios um nível controlado de alcoolemia como forma de serem mais produtivos e mais felizes. Aqui, o filme apresenta situações reais de líderes mundiais, tais como; Brejnev, Clinton e outros que se apresentaram em público no desempenho das suas funções visivelmente alcoolizados.

A proposta soa a revelação para Martin e os outros dois amigos; Peter (Lars Ranthe) e Tommy (Thomas Bo Larsen) sucumbido por um processo de divórcio que aderem á sugestão para testar a teoria. Nos primeiros tempos os resultados são estimulantes e os ligeiros excessos verificados servem de gaudio e distração para todos. Martin consegue mesmo emergir do seu torpor diário tornando-se melhor professor, pai e marido, apresentando melhor desempenho geral, conseguindo até certo ponto derrubar os escolhos da sua própria melancolia.

Todavia, os efeitos perversos desta terapêutica começam a notar-se quando Martin caminha cambaleante contra as paredes e o stock de garrafas de Tommy, professor de ginástica, é descoberto no balneário do ginásio da escola, tornando-se esta história num sério aviso ao consumo excessivo de álcool. Martin percebe ainda que o entorpecimento pelo álcool não elimina as dores interiores, nem resolve os problemas familiares que existem.

Depois de várias demonstrações do efeito nocivo do excesso de álcool, da morte solitária do seu amigo Tommy, Vinterberg esforça-se por nos apresentar um final inesquecível numa festa de final de curso com os alunos daquele ano, em que Mikkelsen mostra os seus dotes de dançarino desde os tempos de juventude em que praticou ballet. Martin move-se com ligeireza, girando no ar e pulando numa expressão de alegria exultante projetando o resultado da lição aprendida e concluindo num voo para o rio na orla de Copenhaga, num dos melhores filmes do ano já nomeados para o Óscar de 2021. Muito interessante a não perder, com estreia prevista em 29 de abril nas salas portuguesas.

Classificação: 8 numa escala de 10

 

10 de abril de 2021

Opinião – “Akelarre - O Ritual da Irmandade” de Pablo Agüero


 Sinopse

Em 1609, um grupo de mulheres do País Basco acusadas de bruxaria tenta adiar a sua execução, convidando o inquisidor a testemunhar o seu ritual do Sabbat.

Opinião por Artur Neves

Este novo filme de Pablo Agüero, realizador nascido na Argentino em 1977 e com um curriculum pouco extenso foi adquirido pela Netflix, mas não é mais do que um remake de “Akelarre” de 1984 estreado no festival de Berlim e realizado por Pedro Olea, ambos, financiados pelo governo do País Basco, com a diferença de este apresentar caraterísticas de ter sido contemplado com um orçamento inferior ao primeiro.

Antes de continuar com apreciação do filme em si, julgo importante esclarecer o leitor que Akelarre significa “Sábado das Bruxas“, ou “Sabbat“, em euskera, língua basca e constitui uma reunião de pessoas que alegadamente praticam bruxaria, bem como outros ritos de cariz hermético, distinguindo-se porém o Sabbat numa cerimónia com animais, onde são realizados banquetes e danças que celebram as estações do ano, tais como a época das colheitas ou a lactação dos animais, com pouca relação com reuniões de bruxas malignas para realizar orgias, Missa Negras, lançar encantamentos ou preparar poções secretas para fins específicos.

Os Sabbats são somente celebrações pagãs em homenagem à vida, à natureza e a tudo o que nela existe, onde se canta, dança e se comem alimentos naturais reforçados com alucinogénios, (muito comuns durante o ritual para se atingir o êxtase) com os quais se pretende mostrar agradecimento e veneração á natureza que os produziu, transmitindo aos fiéis uma experiencia espiritual intensa que lhes permitiria sentirem um equilíbrio harmonioso de comunhão e pertença com a natureza que veneravam.

O argumento deste filme é baseado no livro; Tratado de Feitiçaria Basca de Pierre de Lancre, que era jurista na corte do rei Henrique IV de França, e que o escreveu após uma visita ao País Basco, no ano de 1609, apreciando os rituais a que assistiu sob a influência das convenções religiosas impostas pela Inquisição Espanhola que definia como adoração a Satanás todas as manifestações de adoração a uma cabra negra, ou ao porco, tal como genericamente acontecia e como interpretou, nos Sabbats a que assistiu durante a visita.

Embora o argumento e a história que o suporta assentem numa base verdadeira sobre um período histórico em que as mulheres eram condenadas só por existirem o filme em si mesmo parece perdido na dimensão do seu conteúdo, porque Rostegui (Alex Brendemühl) o padre inquisidor, acompanhado pelo seu Consejero (Daniel Fanego) e relator da viagem e dos eventos nela presenciados só se preocupam em queimar as “bruxas” que não são mais do que mulheres normais, das quais sobressai Ana (Amaia Aberasturi) não só pela sua beleza, como principalmente por se ter apercebido da fragilidade das intenções dos inquisidores e da volubilidade das suas convicções, arquitetando um plano para fugir à condenação, seduzindo Rostegui e convencendo-o a assistir a um Sabbat preparado por ela e pelas outras mulheres jovens da vila com intenção expressa de fuga.

Ana e todas as outras jovens do grupo já estão presas e o filme não nos permite conhecê-las mais, para lá de esparsos flashbacks em inocentes brincadeiras no feno ou no convento onde foram presas e retidas agrilhoadas na masmorra. Que elas não eram bruxas já tínhamos concluído, que elas tinham capacidade de organização entre si, que a Inquisição Espanhola era um órgão discricionário e autoritário, também, e para lá disso não existe mais nada que motive o espectador para os 92 minutos de um filme que pretende retratar uma época e uma tradição pagã recheada de cultura.

Sou forçado a concluir que Pablo Agüero não tem mãos para defender este projeto, donde se pode justificar o baixo orçamento com que foi contemplado. Ele pretende criar cenas de suspense com a preparação do Sabbat e do golpe de fuga das raparigas, mas não resultam. A perseguição das jovens em fuga pelos soldados enviados para as capturar é ridícula e não convence, percebe-se a queda cautelosa dos duplos empregados no filme, a perseguição não gera qualquer adrenalina porque os soldados não as perseguem, correm desordenadamente e de tal modo, que nem a câmara os consegue enquadrar.

É pena, porque a história contém uma mensagem importante de resistência à prepotência, obscurantismo e discricionariedade de atitude perante a genuinidade da natureza. Um flop

Disponível na plataforma Netflix

Classificação: 3 numa escala de 10

7 de abril de 2021

Opinião – “Concret Cowboy” de Ricky Staub

Sinopse

Um adolescente rebelde vai a Filadélfia passar o verão com o pai afastado e encontra um novo sentido de família numa comunidade de cowboys afro-americanos.

Opinião por Artur Neves

A história dos USA veiculada pelo cinema de Hollywood não nos mostra esta faceta da conquista do oeste americano pelos negros imigrantes que chegaram ao novo continente nos séculos XVIII e XIX e que tal como outros povos vinham à procura do sucesso e do futuro. Como tal é lógico que tenham existido cowboys negros, para lá dos ingleses e irlandeses louros e de olhos azuis que nos têm sido vendidos nos westerns produzidos pela indústria americana. Aliás Quentin Tarantino já nos tinha mostrado esta realidade em “Django Libertado” de 2012, ou posteriormente em “Os Oito Odiados” de 2015, para não citar outros exemplos.

Onde essa realidade foi mais acentuada e durou mais tempo foi precisamente em Filadélfia, no estado da Pensilvânia, onde decorre esta historia passada entre as décadas de 50 – 60, adaptada de um romance de Greg Neri, inspirado no Fletcher Street Urban Riding (Club da vida real de Filadelfia) que nos reporta a vida da comunidade negra ainda ligada aos cavalos e às cavalariças (as “oficinas” dos cavalos) que resistia aos novos tempos do cavalo mecânico que insistia e lhe bater á porta, constituindo-os num ghetto de habitante negros, com alguma permissividade das autoridades locais.

A frugalidade das sinopses da Netflix não refere que o “adolescente rebelde” é Cole (Caleb McLaughlin) filho de pais separados ao cuidado de sua mãe Amahle (Liz Priestley) em Detroit, que fica sem meios de o controlar depois de ele ter sido expulso da escola que frequentava. Em face dessa situação e não querendo deixar o filho sujeito às más companhias durante a sua ausência para trabalhar, Amahle viaja até Filadélfia para o entregar ao pai Harp (Idris Elba) que faz parte de uma comunidade de cavaleiros que gerem um estábulo em ruínas, com outros saudosos desta atividade e possuidores destes animais, que lutam contra o progresso e a evolução urbanística que os quer desalojar dos seus decrépitos e sujos locais de vida.

Harp é uma figura sóbria, de poucas falas, partilha a sua desarrumada casa com um cavalo, de nome Chuck, que habita um estábulo improvisado no que deveria ser a sua sala de estar, fornece-nos informações sobre o caráter de Harp, bem como, para a sua propensão para a rebeldia e não cumprimento de regras, principalmente se elas foram estabelecidas por brancos contra quem ele arregimenta adeptos.

É neste ambiente que Cole é largado, sem se lembrar que nasceu ali e se mudou devido á separação dos seus pais, todavia, não foi esquecido por Nessie (Lorraine Toussaint) uma vizinha amiga do seu pai que tenta apoiá-lo à chegada, quando ele se encontra na rua com dois sacos de lixo na mão onde guarda todos os seu pertences, batendo à porta de casa do seu pai ausente. Outra pessoa que igualmente não o esqueceu é Smush (Jharrel Jerome) um amigo de infância que trafica droga por conta, anda de automóvel à procura de oportunidades de lucro, tem um sonho para sair dali e pode incluir Cole, se ele quiser colaborar com a atividade do pequeno tráfico a que ele se dedica.

Com estes ingredientes fica formado o ambiente para o drama de família e a história de delinquência que com altos e baixos se transforma na redenção de Cole, na sua transformação de adolescente recalcitrante em homem válido, através do seu convívio com uma animal selvagem, recriando a memória distante contada em reuniões junto à fogueira, de curas conseguidas pelo convívio com cavalos, e na inevitável reconciliação da família que o gerou.

Trata-se de uma obra de ficção inspirada remotamente em factos reais, recriando uma instituição centenária situada ao norte de Filadélfia que não conhecemos de todo, onde se mantém a tradição de equitação negra, paredes meias com o centro da cidade, e que sobrevive apesar da pressão de gentrificação exercida sobre ela. Constitui ainda a estreia de Ricky Staub na direção de uma longa metragem onde se nota a sua preocupação de identificação de um tema que não lhe é familiar mas que soube defendê-lo. Todo o trabalho de atores está bem conduzido, tanto com os profissionais como com os não profissionais, todavia é um tema de esquecimento rápido por não se incluir no nosso imaginário.

Disponível na plataforma Netflix desde 2 de Abril

Classificação: 5 numa escala de 10