Sinopse
Uma judia hassídica de
Brooklyn foge a um casamento combinado e vai para Berlim, onde um grupo de
músicos a acolhe... até que o passado vem bater-lhe à porta. Baseado no livro
de memórias homônimo publicado no New York Times de Deborah Feldman, Unorthodox
é a história de uma garota que rejeita sua educação radicalizada e parte para
começar uma nova vida segue o rasto sombrio das suas origens para descobrir os
mistérios perigosos do passado de sua família.
Opinião
por Artur Neves
Numa altura em que as obras
mais apetecíveis permanecem suspensas aguardando melhores dias para a sua
exibição é a altura de fazer uma incursão pelo mundo das séries,
particularmente das minisséries, que não eternizam a sua existência para lá da
razoabilidade coerente do argumento que lhe serve de fundamento. É nessa
categoria que se situa esta minissérie de quatro episódios, num total de 215
minutos, que não perderia nada se fosse convertida em filme, considerando a
sequência restrita entre os episódios que compõem a história contada.
Aliás se observarmos o
mastodôntico “Liga de Justiça” de Zach Snyder’s apresentado em 2021 com a
escandalosa duração de 242 minutos em que mistura numa inenarrável história
todos os defuntos super heróis da Marvel, esta minissérie até se apresenta como
limitada para mostrar o ridículo e a incongruência contidos na religião judaica
ortodoxa, subordinada à Tora e a todos os seus atávicos princípios, amplamente desadequados
à vida real e ao tempo em que vivemos.
A minissérie reporta-nos
assim, na pele de Esther Shapiro (ternamente conhecida por Esty) interpretada
por Shira Haas, uma atriz israelita, o percurso tortuoso de vida de Deborah
Feldman que anos antes igualmente abandonou a comunidade hassídica de Williamsburg
a que pertencia, rumo à Alemanha, já com uma filha no ventre depois de um
casamento combinado, da forma que Esty nos mostra nesta excelente minissérie,
que estabeleceu ficar por aqui não se prevendo qualquer “2ª temporada” ou
sequela duma história real contada na terceira pessoa. Aliás uma minissérie deve
se mesmo assim.
O filme começa por nos mostrar
o encontro (a apresentação) entre de Esty a Yanky Shapiro (Amit Rahav) com todo
o protocolo definido pela Tora que estabelece a supremacia absoluta do homem
sobre a mulher, devendo esta remeter-se ao papel de parideira e quanto mais
parir melhor, porque mais rapidamente cumprirá os objetivos de repovoar o mundo
com cidadãos judeus, compensando assim os falecidos no Holocausto.
O encontro, a preparação
para o casamento, a divulgação dos seus deveres de esposa, comunicados a uma
rapariga de 19 anos que ignora completamente a vida sexual, incluindo a sua
própria anatomia íntima e a função dos seus órgãos, (esta cena merece reflexão
sobre a legitimidade da castração do desejo e das emoções de um ser humano, através
de uma convenção religiosa) a fragilidade do relacionamento entre os combinados
“noivos” incumbidos a cumprirem um ritual preestabelecido mas que não os
vincula afetivamente, porque simplesmente não se conhecem, são apenas o fruto
do arranjo familiar com o beneplácito do Rabino da comunidade a que pertencem,
fazem desta história um documento com importantes e estranhas revelações sobre comportamentos
sociais.
Depois de realizado o
casamento é preciso consumá-lo e neste capítulo é também apresentado toda a
mecânica do processo (não há outra forma de dizer isto) com os falhanços
sucessivos e o temor expresso por uma mulher que em repetidas noites de
desgosto e sofrimento em todas as fracassadas tentativas de sexo que mortificam
o seu espírito por não cumprir o objetivo anunciado de elevação do ego do seu
marido. Quando finalmente a “coisa” se resolve, num ato de raiva sem amor, é
evidente o chocante horror visceral na face de Esty contra a expressão de
prazer vitorioso de Yanky, que exprime sem qualquer reserva a profunda
desigualdade entre sexos vigente na sua comunidade.
A partir daqui Esty decide
que não pertence mais ali e prepara a sua fuga para Berlim, ao encontro da mãe
que anos antes teve o mesmo destino. Em Berlim segue-se o percurso de Esty que
sem conhecimento da vida fora da sua comunidade procura sobreviver com a ajuda
de amigos ocasionais em cujo círculo se consegue integrar. A Alemanha e a
cidade de Berlim desempenham também um significativo papel considerando o seu
impacto no passado para a comunidade judia e a minissérie utiliza-a bem,
evidenciando a sensação de trauma do Holocausto que fornece uma tensão para o
confronto das ideologias em presença.
Completado com frequentes flashbacks que nos informam das motivações
dos eventos mostrados, "Unorthodox" funciona dentro do universo
expandido de rebelião religiosa e drama lésbico que a realizadora Maria
Schrader, em conjunto com as criadoras do argumento, transformaram em drama familiar
e de costumes, num thriller fascinante, onde uma jovem em busca da sua individualidade
e em rutura com crenças inculcadas desde o berço, contrastam com os esforços
pífios de homens que a perseguiram em Berlim e julgam que a podem deter.
A atriz israelita Shira Haas
tem um desempenho fabuloso entre o drama do amadurecimento como mulher e a
história de sobrevivência que unilateralmente enceta. O seu marido Yanky Shapiro
(Amit Rahav) representa um frágil hassidista embrutecido por uma religião
castradora que nem se apercebe que sua mulher está grávida, de tão imbuído que
está no seu papel protocolar. Para perseguir a sua esposa em Berlim, ele recebe
a ajuda do seu primo Moishe Lefkovitch (Jeff Willbusch) um grosseiro arrivista,
já sinalizado pelo Rabino da comunidade que o incumbe dessa tarefa com a
promessa de reinserção e do perdão pelos anteriores desvios. Cabe ainda referir
que Jeff Willbusch é ele mesmo, na vida real, um dissidente da comunidade
Hassidi. Esta é pois uma minissérie que recomendo vivamente. Em exibição na
plataforma Netflix.
Classificação: 8,5 numa
escala de 10
PS: Para os mais curiosos informo
que estão disponíveis no YouTube, um Making
of da série em 20 minutos e um documentário de 90 minutos sobre Deborah
Feldman.