28 de fevereiro de 2022

Opinião – “O Poder do Cão” de Jane Campion

NOTA: Este filme estreou inicialmente na plataforma de streaming Netflix e como tal já teve uma apreciação neste blogue, todavia as suas 12 nomeações para os Óscares da Academia Americana de 2022 e a estreia em sala pela mão da NOS Audiovisuais, justifica a sua republicação.

Sinopse

Severo, de olhos claros, bonito, Phil Burbank é brutalmente sedutor. Todo o romance, poder e fragilidade de Phil estão presos no passado e na terra: ele pode castrar um bezerro com dois golpes rápidos da sua faca; ele nada nu no rio, encharcando seu corpo com lama. Ele é um cowboy tão cru quanto as peles obtidas nas suas caçadas. Corre o ano de 1925. Os irmãos Burbank são fazendeiros ricos em Montana. No restaurante Red Mill, a caminho do mercado, os irmãos encontram Rose, a proprietária viúva e seu filho gentil, Peter.

Phil se comporta tão cruelmente que leva os dois às lágrimas, deleitando-se com sua dor e levando seus companheiros vaqueiros ao deleite dos brutos – todos exceto seu irmão George, que conforta Rose e depois volta para lhe propor casamento. Enquanto Phil oscila entre a fúria e a astúcia, sua provocação a Rose assume uma forma estranha – ele paira no limite de sua visão, assobiando uma música que ela não consegue tocar no piano que George lhe ofereceu. Humilha o filho dela de forma aberta, amplificada pelos aplausos dos vaqueiros ao serviço de Phil. Posteriormente, Phil assume voluntariamente a educação do menino sob sua responsabilidade. Este último gesto é a suavização de uma relação que deixa Phil exposto ou uma trama que se transforma em ameaça?

Opinião por Artur Neves

Jane Campion tornou-se notada quando em 1993 foi vencedora do Óscar da Academia Americana com o filme “O Piano” em que uma pianista muda, a sua filha e um piano de marca, são enviadas para Nova Zelândia, para ela casar com um fazendeiro abastado. Os problemas começam quando um trabalhador local se apaixona por ela. A pianista muda era Holly Hunter que tem aqui a sua ascensão ao estrelato através da direção de Jane Campion que faz dela um personagem ainda hoje inesquecível quando é nomeada pelas suas novas realizações, como neste filme em que o pormenor, a descrição lenta e porfiada da caraterização dos personagens os tornam reais, próximos de nós e convincentes nas atitudes que os vemos tomar na interpretação da história que os suporta.

A sinopse é suficientemente descritiva sobre o enredo da história pelo que vou voltar-me para o desenvolvimento dos personagens que é o que Jane Campion faz melhor, ao seu ritmo lento, pormenorizado, detalhando as diferenças significativas de uma história passada em Montana em 1925, em plena conquista do oeste americano, mostrando-nos que nem só de tiros, índios e cowboys se faz um western. O argumento foi baseado no romance com o mesmo nome, escrito em 1967 por Thomas Savage e o filme teve a sua estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Veneza em setembro de 2021 que lhe conferiu o Leão de Prata de Melhor Realização. O trabalho foi realizado na Nova Zelândia, numa zona montanhosa do país mas que não se parece com o estado de Montana, todavia as tomadas de vista panorâmicas, em jeito do que faria Terrence Malick, são impressionantes e atestam bem a maestria da autora.

As quatro personagens mencionados na sinopse são-nos meticulosamente apresentadas, começando por Phil (Benedict Cumberbatch), que se apresenta como um fazendeiro machista, duro, naturalmente agressivo, que esconde uma homossexualidade latente, menosprezando tudo e todos, bem como todas as atividades que não revelem a virilidade inerente à sua necessidade de a mostrar, para ocultar a sua fraqueza profunda e o seu segredo escondido entre ramos e folhas de árvores da floresta, onde periodicamente se recolhe para solitariamente apreciar em revistas fotográficas da época, corpos musculados de homens. Nesses momentos ele perde-se em fantasias homoeróticas e lembranças do seu mentor Bronco Henry falecido há cerca de 20 anos, de quem ele guardou um lenço que usa para se masturbar. Na realidade ele é apenas um ser sofrido pela sua condição, não é intrinsecamente mau, apenas sente necessidade de compensar a sua fraqueza com demonstrações violentas. O seu irmão George Burbank (Jesse Plemons) tem o comportamento oposto dele. É calmo, ponderado a falar com frases curtas e por vezes insuficientes para concretizar uma ideia, e para a necessidade de exuberância do seu irmão Phil, pelo que se torna o alvo das suas provocações, tratando-o sistematicamente por “gordo”, escarnecendo das suas premissas e da sua falta de apetência para a lidação com o gado. George tem estudos e outra visão da vida de que não abdica, como a constituição de uma família com a viúva Rose Gordon (Kirsten Dunst) dona do restaurante da cidade que o gere com a ajuda do seu filho Peter (Kodi Smit-McPhee), de aparência esguia, delicado, aspirante a médico, metido consigo e com os seus livros e com as suas habilidades manuais de fazer arranjos de flores em papel colorido que se destinam à decoração das mesas.

É com estes quatro elementos que Jane Campion desenvolve uma história de competição e confronto de personalidades. Quando George e Rose depois de casados coabitam com Phil a casa de família no rancho, Phil envolve-se em provocações psicológicas a Rose que integra muita emoção no papel do seu personagem, mas a força está com Phil. Peter por seu lado, observa, regista, mastiga as humilhações e com base na religiosidade da sua formação folheia o Livro de Oração, lê os Salmos 22:20 “Livra a minha alma da espada minha querida, e do poder do cão”, reflete, e sorrindo suavemente engendra um processo para castigar o pecador. Diabolicamente lindo, muito bem interpretado é merecedor de ser visto com tempo para o desfrutar ao longo dos seus 126 minutos. Recomendo sem reservas.

Em exibição em sala a partir de 03 de Março

Classificação: 7 numa escala de 10

 

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