24 de fevereiro de 2022

Opinião – “Drive my Car” de Ryûsuke Hamaguchi

Sinopse

Dois anos após a morte de sua esposa, Yusuke recebe uma oferta para dirigir uma produção de Uncle Vanya num festival de teatro em Hiroshima. A produção designa Misaki, uma jovem taciturna para conduzi-lo no seu amado Saab 900 vermelho. À medida que a estreia da produção se aproxima, as tensões aumentam entre o elenco e a equipe, principalmente entre Yusuke e Koji Takatsuki, um ator de TV que compartilhava uma ligação indesejada com a falecida esposa de Yusuke. Assim, este é forçado a confrontar verdades dolorosas levantadas do seu passado, e começa – com a ajuda da sua motorista – a enfrentar os mistérios assombrosos que sua esposa deixou para trás

Opinião por Artur Neves

O cinema Japonês ainda é para alguns de nós uma fonte de surpresa decorrente da relativa ignorância que temos acerca da sua filosofia de vida, da sua moral e dos seus costumes sempre aparentemente reverenciais para com o outro. No caso presente, os seus 180 minutos de duração pode constituir um fator dissuasor, que desde já aviso, não deve ser tido em conta. Baseado num conto da coleção de Haruki Murakami; “Homens sem Mulheres” sobre as barreiras e os segredos mais íntimos que existem entre pessoas ligadas, esta história é multifacetada, progredindo em diversos assuntos que se entretecem com muita coerência sem deixar pontas soltas, apesar de nos surpreender logo desde as primeiras imagens com um fluxo de ideias que àquela altura se apresenta como um mistério impenetrável, decorrente das escassas informações que possuímos.

A história brevemente descrita na sinopse percorre um caminho de amor, perda, aceitação, paz e redenção num novo amor, atravessando um mar de tristeza profunda que se move em ritmo glacial (daí a sua extensa duração) e nos mostra comportamentos e conceitos de alma como poucos filmes se atreveram a fazer. Todo o enredo gira em torno da obra de Chekhov “ Tio Vanya” que envolve todos os personagens, incluindo a defunta esposa Oto Kafuku (Reika Kirishima) de Kafuku (Hidetoshi Nishijima) que criava histórias sempre que eles faziam sexo. Oto tinha esse fetiche, até ao ponto de derivar sobre as falas da peça de Ghekhov durante o ato e ler para gravar em cassete toda a peça, exceto as falas de Kafuku. Ele levava e ouvia a peça quando viajava ao volante do Saab 9000 e completava os espaços em branco milimetricamente deixados no suporte para a sua intervenção. Por outro lado Kafuku não se sentia capaz de assumir o papel em público por não se sentir ao nível de interpretar o papel do Tio Vanya que ele conhecia de cor ao longo de toda a peça.

O filme é dividido em partes, sendo os primeiros 40 minutos a apresentação de Kafuku e dos mistérios que envolvem o seu relacionamento com sua esposa. Ele é um ilustre diretor de teatro em Tóquio dirigindo produções multilingues com dialetos do Japão e dos países vizinhos e é convidado para dirigir em Hiroxima uma parceria nos mesmos moldes da mesma peça de Chekhov que ele conhece como ninguém e que para ele tem um significado ainda desconhecido decorrente dos mistérios construídos por Oto. Ela produz estranhas ideias para história após o coito, narrando-as para ele no período de recobro. Tudo isto acontece depois de ele a ter encontrado tendo um caso com um ator, em sua própria casa, no regresso de uma viagem imprevistamente adiada. Essa visão, essa confirmação da traição não lhe provoca qualquer reação ou comentário, apenas o motiva para obter uma justificação para o seu comportamento. No dia em que prometeram falar sobre assunto, ele ao chegar a casa encontra-a morta no chão, vítima de um AVC.

Esse hiato criado na sua mente, nas suas expectativas para encontrar uma razão, vai condicioná-lo no seu trabalho em Hiroxima. Todos os dias ele é compelido a percorrer o seu estranho passado com sua esposa na companhia de uma condutora ao volante do seu carro que a produção do festival lhe impõe a presença por segurança e que por inerência vai-se inteirando das suas mais profundas preocupações e revelando igualmente a sua conturbada existência.

Este drama japonês vem colecionando elogios da crítica e venceu três prémios no festival de Cannes 2022, incluído o de melhor argumento adaptado, justificando-se plenamente o tempo utilizado por Hamaguchi para nos introduzir numa problemática de suspensão do espírito quando somos surpreendidos por um ato de todo inesperado. O tempo é necessário não só para compreender os personagens, mas para que sintamos uma imagem do que cada um deles sente no seu posicionamento da história que se insere na peça de Chekcov e nos mistérios de Oto Kafuku. Recomendo vivamente, sem reservas…

Tem estreia prevista em sala dia 10 de Março

Classificação: 8 numa escala de 10

 

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