Sinopse
França, 1963. Anne é uma
aluna jovem e brilhante com um futuro promissor pela frente. Mas quando
engravida, vê desaparecer a oportunidade de terminar os estudos e escapar aos
constrangimentos das suas origens sociais. Perante a aproximação dos últimos
exames e a barriga a crescer, Anne resolve tomar medidas, ainda que tenha de
enfrentar a vergonha, o sofrimento e se arrisque a ir para a prisão. Uma
adaptação do romance homónimo de Annie Ernaux, que aborda a sua experiência com
o aborto quando este ainda era ilegal em França nos anos 60.
Opinião
por Artur Neves
Esta história passou-se em
França no início a década de 60 e relata na primeira pessoa os danos físicos e
psicológicos com a lei iníqua que vigorava na época, mas o princípio ainda
existe inculcado nos espíritos conservadores que mantém vivas filosofias
extintas por direito. Como pode ser possível e legítimo negar a uma mulher o
direito de decisão sobre o seu corpo e sobre a sua vontade?... pode… e não está
muito longe de nós… basta lembrarmo-nos de alguns dos países pertencentes à
união europeia, que anteriormente estavam ligados ao extinto bloco soviético,
assim como as políticas de conceção ligadas às religiões islâmicas. Este filme
é um libelo baseado na memória de quem sofreu isso na pele e publicou o seu testemunho
em forma de livro.
A história está muito bem
contada através do personagem de Anne Duchesne (Anamaria Vartolomei) que mostra
a ansiedade, o terror e a incapacidade de solução para o seu problema à medida
que as semanas passam. É chocante observar com toda a crueza o seu desespero
crescente e quase insuportável ver a sua cedência a esse desespero através de
tentativas perigosas que ela decide experimentar no seu corpo. Em todo o drama
da sua história ela esteve sempre sozinha, entregue aos seus medos, à sua
vergonha e á culpa imposta por uma sociedade rígida e patriarcal. Os médicos a
que tinha acesso não violavam a lei (que vigorou até 17 de Janeiro de 1975) e
os mais extremistas mentiam no sentido do tratamento prescrito para provocar
dificuldades acrescidas à vontade das suas pacientes.
O filme está bem construído,
apoiado numa montagem fluida que nos mostra uma narrativa em forma de corrida
conta o tempo e transcreve muito bem toda a pressão sobre Anne à medida que as
semanas passam, como um rolo compressor que destruirá tudo á sua passagem, os
seus projetos, os seus desejos, o seu futuro, porque se for denunciada será
presa e perderá a possibilidade de evoluir socialmente. Nada tem mais importância
para Anne do que a realização desse aborto, as aulas já não a motivam, a
família fica mais longe e os amigos não têm soluções nem contemplação para o
seu segredo, só essa ideia obsessiva a move como uma psicose angustiante que
dia a dia a isolará mais do mundo que era o seu.
O cinema já abordou este
tema anteriormente como em “Uma Questão de Mulheres” de Claude Chabrol em 1988,
ou “4 Meses; 3 Semanas e 2 Dias” de Cristian Mungiu em 2007 em que reporta a
ajuda de uma mulher a uma amiga num caso de aborto ilegal na Roménia dos anos
80, mas nunca nos tinha oferecido uma abordagem tão direta da violência que
está intimamente ligada a este ato, violência física que implica a enorme resistência
de uma mulher que deseja desfazer uma construção do próprio corpo e desfrutar
plenamente da sua vontade e da sua liberdade individual para salvar o seu futuro,
numa França misógina e conservadora que exclui e condena quem prevarica,
tornando-se para Anna uma questão de sobrevivência. Bem estruturado e muito bem
interpretado. Venceu o Leão de Ouro do festival de Veneza 2021. Recomendo vivamente.
Tem estreia prevista em sala
no dia 6 de Janeiro de 2022
Classificação: 8 numa escala
de 10
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