22 de dezembro de 2021

Opinião – “O Acontecimento” de Audrey Diwan

Sinopse

França, 1963. Anne é uma aluna jovem e brilhante com um futuro promissor pela frente. Mas quando engravida, vê desaparecer a oportunidade de terminar os estudos e escapar aos constrangimentos das suas origens sociais. Perante a aproximação dos últimos exames e a barriga a crescer, Anne resolve tomar medidas, ainda que tenha de enfrentar a vergonha, o sofrimento e se arrisque a ir para a prisão. Uma adaptação do romance homónimo de Annie Ernaux, que aborda a sua experiência com o aborto quando este ainda era ilegal em França nos anos 60.

Opinião por Artur Neves

Esta história passou-se em França no início a década de 60 e relata na primeira pessoa os danos físicos e psicológicos com a lei iníqua que vigorava na época, mas o princípio ainda existe inculcado nos espíritos conservadores que mantém vivas filosofias extintas por direito. Como pode ser possível e legítimo negar a uma mulher o direito de decisão sobre o seu corpo e sobre a sua vontade?... pode… e não está muito longe de nós… basta lembrarmo-nos de alguns dos países pertencentes à união europeia, que anteriormente estavam ligados ao extinto bloco soviético, assim como as políticas de conceção ligadas às religiões islâmicas. Este filme é um libelo baseado na memória de quem sofreu isso na pele e publicou o seu testemunho em forma de livro.

A história está muito bem contada através do personagem de Anne Duchesne (Anamaria Vartolomei) que mostra a ansiedade, o terror e a incapacidade de solução para o seu problema à medida que as semanas passam. É chocante observar com toda a crueza o seu desespero crescente e quase insuportável ver a sua cedência a esse desespero através de tentativas perigosas que ela decide experimentar no seu corpo. Em todo o drama da sua história ela esteve sempre sozinha, entregue aos seus medos, à sua vergonha e á culpa imposta por uma sociedade rígida e patriarcal. Os médicos a que tinha acesso não violavam a lei (que vigorou até 17 de Janeiro de 1975) e os mais extremistas mentiam no sentido do tratamento prescrito para provocar dificuldades acrescidas à vontade das suas pacientes.

O filme está bem construído, apoiado numa montagem fluida que nos mostra uma narrativa em forma de corrida conta o tempo e transcreve muito bem toda a pressão sobre Anne à medida que as semanas passam, como um rolo compressor que destruirá tudo á sua passagem, os seus projetos, os seus desejos, o seu futuro, porque se for denunciada será presa e perderá a possibilidade de evoluir socialmente. Nada tem mais importância para Anne do que a realização desse aborto, as aulas já não a motivam, a família fica mais longe e os amigos não têm soluções nem contemplação para o seu segredo, só essa ideia obsessiva a move como uma psicose angustiante que dia a dia a isolará mais do mundo que era o seu.

O cinema já abordou este tema anteriormente como em “Uma Questão de Mulheres” de Claude Chabrol em 1988, ou “4 Meses; 3 Semanas e 2 Dias” de Cristian Mungiu em 2007 em que reporta a ajuda de uma mulher a uma amiga num caso de aborto ilegal na Roménia dos anos 80, mas nunca nos tinha oferecido uma abordagem tão direta da violência que está intimamente ligada a este ato, violência física que implica a enorme resistência de uma mulher que deseja desfazer uma construção do próprio corpo e desfrutar plenamente da sua vontade e da sua liberdade individual para salvar o seu futuro, numa França misógina e conservadora que exclui e condena quem prevarica, tornando-se para Anna uma questão de sobrevivência. Bem estruturado e muito bem interpretado. Venceu o Leão de Ouro do festival de Veneza 2021. Recomendo vivamente.

Tem estreia prevista em sala no dia 6 de Janeiro de 2022

Classificação: 8 numa escala de 10

 

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