Sinopse
Vencedor da Palma de Ouro no
último Festival de Cinema de Cannes. Após uma série de crimes sem explicação,
um pai reúne-se ao seu filho que estava desaparecido há 10 anos. Combinando
terror e “body horror”, eis um filme que a realizadora Julia Ducournau descreve
deste modo: "para dar a ‘Titane’ a sua forma definitiva, concentrei-me na
ideia de que através de uma mentira, podes dar vida ao amor e à humanidade.
Quis fazer um filme que, pela sua violência, pudesse parecer ‘desagradável’ a
princípio, mas que depois nos levasse a apegar-nos às personagens e, em última
análise, a receber o filme como uma história de amor. Ou melhor, uma história
sobre o nascimento do amor”.
Opinião
por Artur Neves
É o segundo longa metragem
de Julia Ducournau e ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2021, estando
selecionado pela França para competir aos Óscares 2022 na categoria de filmes
estrangeiros. Como era quase uma desconhecida para mim e uma surpresa a sua
vitória, pesquisei os seus antecedentes tendo verificado que são poucos; Dois
filmes para a televisão, uma curta metragem, e “Row” de 2016, o seu primeiro
filme como realizadora, com a história de uma jovem estudante sedenta de carne
crua. É um filme complexo e chocante, mas pela novidade imaginativa da história
(não se trata de vampirismo) pareceu-me até mais interessante que este “Titane”,
muito embora, e tal como nos diz a sinopse, se procure um caminho alternativo
para o amor, a compaixão, o sentimento de pertença, a compensação da perda de
um homem envelhecido que só procura a sua continuação, o seu legado. É assim um
nome para acompanhar com atenção pois promete surpresas.
“Titane” é assim um filme de
terror corporal, significando isso que a sua negatividade resulta da sua
malformação, seja ela genuína ou adquirida. No presente caso trata-se de
Alexia, uma garotinha que viaja no banco de trás do carro de seu pai e o irrita
com palavras e acusações. No extremo da discussão ela solta o cinto de
segurança e o pai volta-se para a repreender, desviando os olhos da estrada e
provocando um despiste donde resulta um grave ferimento na cabeça de Alexia,
com quebra do osso craniano que é tratado com a implantação de uma placa de titânio
que lhe provoca uma particular cicatriz demasiado evidente e uma alteração
comportamental que justifica o enredo da história.
O que quer que o desastre
lhe tenha provocado, a criança Alexia (Adèle Guigue), era já de si uma criança
problema, uma “semente ruim” na opinião do seu inútil pai, de olhos mortiços
que se acendem com fúria quando o provoca e a história não exclui a ideia de
que ela quereria provocar o desastre para se ver livre dele. Depois de ela sair
do hospital e algum tempo passado, Alexia (Agathe Rousselle) adulta, ganha a
vida fazendo dança erótica e soft strip-tease
em feiras e salões de exposição automóvel, despertando paixões em alguns
frequentadores que ao tentarem interagir com ela são mortos sem piedade, de
forma cruel e sanguinária. São vários assassínios em série que lançam a
suspeita sobre ela de cuja publicidade tem de se esconder.
No final de uma sessão ela
sente o chamamento de um Cadillac da década de 50, bebedor de gasolina mas bem
conservado, por quem ela sente uma atração arrebatadora e com quem pratica sexo
louco, do qual resulta uma gravidez que ela não esperava, mas que lhe faz crescer
a barriga e inchar os seios donde brotam gotas de óleo negro, assim como pela
sua vagina durante o banho. É como se o seu corpo fosse somente o recetáculo de
algo que ela não domina, não conhece, nem lhe pertence.
Para se esconder do retrato
robot publicado pela polícia, ela parte o nariz a si própria, corta o cabelo
até manter escondida a peculiar cicatriz, cinta-se com ligaduras para esconder
o peito e a barriga em desenvolvimento, veste roupas largas e entrega-se numa
esquadra de polícia como sendo o desaparecido Adrien, há muito procurado pelo
pai, Vincent (Vincent Lindon) chefe de bombeiros da corporação local, que se
desmancha em lágrimas por ter encontrado o seu filho continuamente procurado.
E é aqui que a história
passa da escuridão para a luz, da fantasia para a realidade. Vincente é um
personagem sóbrio, com princípios, com regras, é atlético, embora a idade já
lhe negue a frescura muscular de outros tempos que ele tenta compensar sem
sucesso com esteroides, revelando o medo e a confusão de menino que foi forte
noutros tempos. Aqui revela-se a inteligência da realização deixando propagar-se
um misto de emoções contraditórias que culminam com o aconchego de Alexia à
cabeça de Vincente deitada no seu colo, que faz lembrar uma Pietá acariciando o
seu filho, constituindo a mais forte metáfora do filme.
Estes dois personagens são o
“alfa” e o “ómega” de toda a história ao perceberem que precisam um do outro. Alexia
ansiava por um pai cuidador que não denegrisse a sua integridade. Vincente
precisava ver-se como pai, mesmo que seja de um filho que ele sabe não lhe
pertencer nem compreender, mas não julga, apenas aceita conforme se apresenta. Ambos
encontram assim a redenção das suas vidas, entre horrores inclassificáveis,
entre atos de violência e sexo, entre traumas inconfessáveis, apenas procurando
a bênção um do outro.
É isto que Ducournau nos
traz neste “Titane”, na forma de um corpo transmogrificado, um bebé de
automóvel humanoide e um pai em perda de si e da função que persegue. Nem todos
são reais mas todos procuram aceitação e amor. É muito interessante ver como
esta distopia foi apresentada por Ducournau. Eu gostei e recomendo.
Em cena nos cinemas em sala
e sem replicação por streaming até
agora.
Classificação: 7 numa escala de 10
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