10 de março de 2020

Opinião – “A Verdade” de Hirokazu Koreeda


Sinopse

Fabienne (Catherine Deneuve), um ícone do cinema, é a mãe de Lumir (Juliette Binoche), que escreve argumentos em Nova Iorque.
A publicação das memórias daquela grande atriz leva Lumir a regressar à casa da sua infância, com a família.
Mas o reencontro depressa virará confrontação: verdades abafadas, rancores inconfessados e amores impossíveis revelam-se sob os olhares espantados dos homens. Fabienne está a fazer um filme de ficção-científica onde tem o papel da filha envelhecida de uma mãe perpetuamente jovem. Realidade e ficção confundem-se, obrigando mãe e filha a reencontrar-se…
Realizado pelo japonês Hirokazu Koreeda, “A Verdade” é o primeiro filme do realizador após a nomeação de ‘Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões’ ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Opinião por Artur Neves

A primeira coisa que me surge para dizer sobre este filme é que é um filme estranho, se não vejamos: Realizado pelo japonês Hirokazu Koreeda detentor da Palme d’Or em Cannes 2018 com o filme “Shoplifters: Uma família de Pequenos Ladrões” a dirigir um filme de ficção científica em França, com Fabienne Dangeville (Catherine Deneuve), que com 73 anos é mais velha do que a mãe, Amy (Ludivine Sagnier) que não envelhece por estar a viver num outro planeta longe da Terra e deslocou-se para ver a filha.
Por seu lado Fabienne, recebeu a visita da filha, Lumir (Juliette Binoche) argumentista, que vive em Nova Yorque com seu marido Hank (Ethan Hawke – um ator que nunca valorizei mas que está francamente a melhorar) e a filha do casal, Charlotte (Clémentine Grenier) numa história de família falada em Francês e Inglês, incluindo a pequena Charlotte, um cão, mas que nem ladra e um cágado… obviamente mudo.
Confuso?... eu também fiquei, mas as coisas vão-se compondo com uma história irónica, uma Fabienne coquete que se assume como mentirosa, alegando que por ser atriz tem todo o direito para tal e uma Lumir que viaja até à Europa para assistir ao lançamento do romance autobiográfico da mãe, depois de lhe corrigir a versão final do texto, reconhecendo-lhe as inverdades que ela recorda de atenções e cuidados pela filha, mas de que ela não se lembra e os contesta.
Fabienne não liga muito ao assunto nem às correções apontadas pela filha e admite alegremente as falhas referidas por Lumir justificando-se com o facto de a verdade ser mais chata do que a versão que ela arranjou para o livro, ter querido ser melhor atriz do que realmente é, ser egoísta, frívola, sem instintos maternais e oportunista em usar os outros a seu belo prazer, fazendo-se amar apenas pelos que não a conhecem ou privam de perto com ela. Despachou o marido, pai de Lumir, e vive já com o terceiro substituto cuja principal caraterística é servir-lhe sempre o chá à temperatura que ela gosta, apesar de ser um desastre na cama.
Uma temática destas não é comum em filmes franceses, particularmente com atores tão significativos da cultura francesa, portanto só pode ser classificado como um filme estranho. Por outro lado parece ser uma imagem invertida de “Shoplifters”, onde se conta uma história de estranhos que parecem ser parentes. Aqui, conta-se a história de parentes que parecem ser estranhos e constitui o grande trunfo de Koreeda que nos “pinta” um quadro de família comovente e caloroso, com ironia e malícia suficiente que nos prende em diálogos surpreendentes.
Considerando obras anteriores deste autor, tais como; “Andando” de 2008 ou “Tal Pai Tal Filho” de 2013, pode concluir-se ser mais uma manifestação da tendência de escalpelização das relações familiares de Koreeda, que nos oferece a sua visão perspicaz e inteligente sobre a natureza dos relacionamentos entre pais e filhos e a sua evolução numa família moderna onde as coisas não acontecem como tradicionalmente deveriam acontecer, ou esperamos que aconteçam.
Por oposição, decorrem as relações entre Fabienne e Amy no filme de ficção científica que ambas estão a filmar e que tanto desagrada a Fabienne, que tem de ser forçada a voltar ao estúdio para que não seja acusada de rutura de contrato.
Trata-se portanto de uma história ousada que identifica a família como uma coisa viva, animada, onde é perigoso confiar totalmente na justeza da memória do passado, retirando-lhe a oportunidade de se renovar e de se compor com novas realidades. Algo complexo mas interessante, recomendo.

Classificação: 7 numa escala de 10

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