16 de março de 2022

Opinião – “Cordeiro” de Valdimar Jóhannsson

Sinopse

A rotina de María (Noomi Rapace) e Ingvar, (Hilmir Snær Guðnason), um casal que vive na Islândia rural, é interrompida quando descobrem um bizarro recém-nascido no seu curral de ovelhas. Este evento leva o casal a tomar uma decisão que desafia as leis da natureza, com a perspetiva inesperada de uma vida familiar poder trazer-lhes muita felicidade… antes de começar a destruí-los.

Opinião por Artur Neves

Este filme, que caberá na classificação de suspense e fantasia, apesar da qualidade da interpretação dos seus intérpretes, comedido, fundamentalmente usando imagens que valem pelo que significam, com poucas falas, pode entediar-nos se não tivermos conhecimento da figura mitológica de “Pã”, o deus grego dos bosques, dos campos, dos rebanhos e dos pastores assumindo um comportamento maioritariamente protetor, embora possa ser vingativo para quem não cuida da natureza e destrói a flora e a fauna. É representado com orelhas longas e chifres, tronco humano e pernas de bode, andando em duas patas e carregando consigo um flauta. Os caminhantes noturnos dos bosques, que andam sem destino, possuídos por solidão que os predispõem a terrores súbitos sem causa aparente, podem ser acometidos de pânico, ou seja: medo de “Pã”.

O livro “O grande Deus Pã” escrito por Arthur Machen dá-nos uma visão algo diferente, não tão bucólica, mas antes destruidora e maligna, cheio de desejo sexual insaciável, sem escrúpulos, que está mais de acordo com o papel que lhe cabe nesta história, porque ele encarna uma tendência comum a todo o universo.

O filme começa por nos apresentar o casal que vive numa casa no meio de nada. Eles estão equipados para as suas necessidades, com motocultivadores e um carro para deslocação à vila, familiarizando-nos com o ambiente frio, a paisagem sempre coberta de neve e eles fazem o que é necessário debaixo de chuva e de vento, porem, apesar de se entreajudarem e colaborarem em todas as tarefas o seu semblante é monótono, triste e sem vida. As cenas são interpretadas pelas ações dos personagens, cumprindo o calendário da vida no local, com pouquíssimos diálogos, mostrando-nos os grandes planos da região vazia, montanhosa, embora bela e envolvente. Os olhares silenciosos entre Ingvar e Maria deixam transparecer um luto dolorido por continuarem sós, os dois estão isolados naquela imensidão geográfica e vivem sem interferências externas e estão preparados para eventos inexplicáveis, que nós, tal como eles, esperamos que aconteçam.

Uma das tarefas realizadas pelos dois é a alimentação dos cordeiros e a ajuda aos partos que ocorrem. Numa dessas alturas um acontecimento bizarro ocorre quando o terceiro filho de uma ovelha apresenta uma forma hibrida entre animal e humano a que ela batiza imediatamente por Ada e toma-a no colo sem que nós vejamos declaradamente a sua forma particular. É aqui que temos de pensar que a aceitação imediata da filha de um sátiro, de Pã, ou seja lá de que pai deu à vida aquele nascimento. A história não está nem um pouco interessada em teorizar a essência do seu aparecimento, mas antes o facto de a sua existência provocar alterações dos relacionamentos entre humanos e com criaturas de outra natureza o que pressupõe que essa coabitação entre partes diferentes da natureza não pode ser apaziguadamente entronizada.

Desde o início daquele nascimento, as coisas complicam-se quando a mãe natural, a ovelha que a pariu, reclama a sua presença, balindo continuamente para reclamar a sua posse. Maria resolve as coisas matando a mãe natural, reconhecendo assim uma falha da natureza e assumindo o papel da ovelha que matou. Curiosamente é de Maria que depende todas as decisões e Ingvar aceita placidamente todos os acontecimentos seja em que sentido for.

Ficamos a saber que Ingvar tem um irmão que subitamente chega ao lugar, como que introduzindo um fator desiquilibrante na relação entre os dois. Pétur (Björn Hlynur Haraldsson) tem dificuldade em aceitar Ada, aquele ser hibrido que ele não consegue classificar como pessoa ou animal. Mais uma vez é Maria que o põe fora de casa levando-o á paragem do transporte e dando-lhe algum dinheiro para que ela não volte. Ele não pertence aquela história nem tem lugar ali. Só nos resta agora dar corpo às sombras, aos passos furtivos, ao horror mitológico que de súbito se revela para levar o que lhe pertence. Só Maria fica viva, não somente para ver quem leva a sua filha, mas também para chorar a morte do marido e para sentir a completa solidão por ter mandado embora o seu cunhado.

Este filme é a primeira longa metragem de Valdimar Jóhannsson, um realizador Islandês que até agora só tinha sido responsável de efeitos especiais e conseguiu com este argumento de horror mitológico manter um elevado grau de imprevisibilidade, um bom suspense dramático com uma história simples embora complexa, que justifica ficarmos atentos aos seus próximos trabalhos. Muito interessante.

NOTA: O poster publicado não é o oficial do filme, mas eu escolhi-o por representar com mais propriedade os dois elementos fundamentais da história.

Tem estreia prevista em sala dia 31 de Março

Classificação: 7 numa escala de 10

 

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