12 de novembro de 2019

Opinião – “Passámos por cá” de Ken Loach


Sinopse

Ricky (Kris Hitchen) e a sua família lutam arduamente contra as dívidas desde o colapso financeiro de 2008. A certa altura, Ricky tem uma oportunidade de recuperar alguma independência com uma furgoneta novinha em folha e a possibilidade de ter o seu franchise como motorista de entregas por conta própria. É um trabalho duro, mas o emprego da mulher como cuidadora não é mais fácil. A família é forte, mas quando ambos são empurrados em sentidos diferentes, o ponto de rutura torna-se iminente.
Filme nomeado à Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2019.

Opinião por Artur Neves

É curioso notar a evolução deste realizador, sempre voltado para histórias “com gente dentro” mas abordadas de acordo com os ventos da época e como se tem desencantado depois do recente arrefecimento da economia europeia a partir de 2008. Note-se que em 2009 Ken Loach apresentou-nos “Á Procura de Eric”, uma comédia com traços dramáticos, em que um carteiro fanático de futebol, recebia instruções e treino de Eric Cantona á mistura com tiradas filosóficas deste, aplicadas ao futebol. Seguiu-se “O Salão de Jimmy” em 2014 já mais sério, “Eu, Daniel Blake” em 2016 corporizando uma forte crítica aos serviços sociais irlandeses e agora esta história que nos desmonta o embuste do empreendedorismo individual quando “apoiado” num franchising fortemente explorador do franchisado.
Para lá da história, sente-se que Loach está a cobrar dividendos do sucesso, justo aliás, de “Eu, Daniel Blake”, carregando mais forte nas sombras negras que pairam sobre esta família irlandesa, em que a mulher, cuidadora ao domicílio de vários doente acamados ou impossibilitados de desenvolverem autonomamente as suas necessidades básicas, abdicou do seu automóvel para dar como entrada para a carrinha de transporte de entregas do negócio do marido, que se prolonga durante 14 horas diárias, porque as entregas têm de ser cumpridas e os objetivos atingidos e policiados por um scanner que o acompanha e confirma o cumprimento das tarefas.
Qualquer falta ao cumprimento do programa dá origem a multas e nenhuma justificação de ausência é atendível, quer seja por motivos familiares ou mesmo por doença, ou como resultado de um ataque de malfeitores à carrinha para roubar os bens e maltratar o condutor. Ken Loach mostra-nos de forma empolgante, realista e credível o resultado desta economia espetáculo que apesar de novas formas de apresentação serve sempre os mesmos, com total indiferença por quem trabalha e cria riqueza.
Para Ricky Turner (Kris Hitchen) e Abbie Turner (Debbie Honeywood) o trabalho não é gratificante nem promove a vida familiar degradando a relação com o seu filho Sebastian 'Seb' Turner (Rhys Stone) em idade escolar frequentando uma formação em que não acredita através do que observa do confronto entre os pais. A irmã mais nova, Lisa Turner (Katie Proctor), sofre regressão de desenvolvimento com pesadelos e enurese noturna decorrente da tensão em que a família vive. O fundamental nesta história é o detalhe com que Loach nos mostram os efeitos do “trabalho escravo” na sociedade e na família, em que o amor é relegado para um plano fora da estabilidade de uma relação que se quer manter mas que tem contra ela forças que é incapaz de contrariar.
Este filme trata de um tema importante e igualmente sombrio que se torna urgente na sociedade atual, em que uns poucos pretendem obter tudo à custa de muitos que não têm outra alternativa se não servi-los de acordo com o “figurino” que lhes é imposto e que no fundo repete a pergunta que Ken Loach já anda a fazer há muitos anos: a vida tem realmente de ser assim?... Muito interessante, recomendo.

Classificação: 7,5 numa escala de 10

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