Sinopse
Charlie Brown, Snoopy, Lucy, Linus e o restante gang dos “Peanuts” fazem a sua estreia no grande ecrã, numa animação 3D como nunca antes vista. Snoopy, o beagle mais adorável do mundo – e da aviação – embarca na sua maior missão e vai até aos céus perseguir o seu maior inimigo, O Barão Vermelho, enquanto o seu melhor amigo, Charlie Brown, começa a sua própria jornada épica.
Opinião por Marta Nogueira
Quinze anos após a morte de Charles Schulz, a Blue Sky Studios decide comemorar o 65º aniversário da banda desenhada e os 50 anos do especial de televisão “A Charlie Brown Christmas”, relançando o clássico do autor nos cinemas em versão animada 3D, a tempo de maravilhar as audiências na época natalícia e conseguir também certamente menções nos prémios de cinema que se avizinham – já está na corrida para Melhor Filme de Animação nos próximos Globos de Ouro. A ideia partiu do filho e do neto de Schulz, responsáveis pelo argumento, em parceria com Cornelius Uliano, e que acompanharam de perto toda a produção do filme para preservar o legado do pai/avô. O realizador escolhido para esta honra foi Steve Martino, responsável por “Ice Age – Continental Drift” e director de arte do mais antigo “Robots”.
É preciso começar por dizer que os Peanuts (curiosamente um nome que substituiu o inicial Li'l Folks por este ser demasiado parecido com outros nomes existentes na altura e de que Schulz nunca gostou por achar que não tinha qualquer dignidade), são fundamentalmente uma banda desenhada para adultos, isto é, tal como Peter Pan, possuem várias camadas de significados - podem ser apreciados por crianças a um nível superficial e podem e devem ser apreciados por adultos num nível mais profundo, pois estão carregados de nuances sobre problemas sociais fortes como o racismo, o bullying ou a violência infantil. De forma simples, os Peanuts contam a história de um menino cheio de inseguranças, Charlie Brown, e do seu fiel mas irreverente e muito mais seguro cão, Snoopy. Em seu redor gravitam uma série de personagens emblemáticas e tudo menos secundárias: a sabichona Lucy, sempre à procura de fazer a vida negra a Charlie; o seu irmão Linus, uma contradição ambulante composta por pensamentos filosóficos e fraldas; Sally, a irmã de Charlie, obcecada por abóboras voadoras e por Linus; Schroeder, o menino prodígio que só vê Beethoven à frente, para desespero da sua apaixonada Lucy; Peppermint Patty, a rapariga "saloia" que trata Charlie por "Chuck" e flirta com ele descaradamente, para mencionar apenas alguns.
Iniciada em 1950, é considerada uma das mais influentes bandas desenhadas de sempre, com mais de 300 milhões de leitores em 75 países e traduzida para 21 línguas. Schulz ganhou alguns dos mais prestigiantes prémios do género ao longo da vida, incluindo Emmys e uma capa da Time. Com este passado monstruoso, a fasquia era altíssima para a equipa de produção e, embora não sendo perfeito, estou em crer que o filme não desiludirá os fãs da série, nem desprestigiará a qualidade suprema do traço e da história do seu criador.
Comecemos pela parte visual: a animação é brilhante, literal e metaforicamente. As características perfeccionistas do traço de Schulz são respeitadas e até incrementadas pela apresentação no grande écran, puxando-nos para dentro da história - os fãs vão amar ver as suas personagens favoritas em grandes planos pormenorizados. O cuidado na escolha das vozes foi exímio, estão todas muito semelhantes às que nos habituámos a ouvir nos variados filmes de televisão que foram sendo produzidos ao longo dos anos e que foram supervisionados pelo próprio Schulz. Existe ainda uma diferença de grafismo muito interessante nas imagens oníricas das aventuras de Snoopy, que constituem um contraponto claro entre a suposta simplicidade da realidade da vila dos Peanuts (e o estilo caracteristicamente minimalista de Schulz) e a imaginação sem limites do segundo personagem mais popular da série (às vezes o mais popular). Todos os marcos do universo Peanuts foram respeitados ao pormenor, todos os momentos fundamentais introduzidos sem parecerem demasiado forçados, entrosados no ritmo geral da história desenvolvida especificamente para este filme - o monte de basebol, o quiosque de psicologia de Lucy, o lago gelado onde os Peanuts patinam no Inverno, o muro onde Charlie e Linus acabam invariavelmente a filosofar sobre a vida, a árvore comedora de papagaios de papel. A história aproveita uma velha paixão de Charlie, a Little Red-Haired Girl, que surge neste filme como uma nova aluna da escola e que vai ocupar os pensamentos de Charlie durante todo o enredo. Ele tudo fará para a conquistar ou, pelo menos, para acreditar intimamente que a poderá conquistar e é aqui que a narrativa se poderá desviar ligeiramente do tom cru de Schulz. O eterno inseguro optimista lutará contra todos os contratempos e sobretudo contra si próprio para conseguir "bater aquela bola" no ângulo correcto. Mas onde na banda desenhada, Charlie se ficaria certamente pelo “se” esperançoso, neste filme os seus esforços são recompensados, algo que não tenho a certeza que Schulz aprovasse completamente. Na banda desenhada esta história não acabaria mal, mas também não acabaria bem, a rapariga continuaria completamente imune aos encantos de Charlie porque nem se aperceberia dos seus esforços titânicos para a conquistar e nós sorriríamos nostalgicamente disto tudo, um pouco felizes por haver pelo menos um herói de banda desenhada que sofre tanto como nós, pobres humanos sujeitos à cinzenta realidade tão parca em finais felizes.
Apesar de tudo isto, ou por causa disto tudo, tenho algumas dúvidas sobre se o filme conseguirá o mesmo sucesso junto dos públicos mais jovens que não são conhecedores da série. Precisamente por causa das piscadelas de olho filosóficas e reflexões por vezes duras sobre a vida que espreitam por baixo da capa aparentemente idílica de uma vila tipicamente americana onde os adultos nunca se vêem, apenas se ouvem numa voz "trombónica" que é um dos ex-libris da série. E embora a produção tente aligeirar esta faceta mais realista/negra, com alguns truques como a introdução de um final feliz e a piscadela de olho aos concorrentes Mínimos feita por Woodstock e Companhia que se vão comunicando crípticamente ao longo do filme, não sei se bastará para motivar audiências pouco habituadas a subtilezas tão delicadas como a doce nostalgia sempre presente nos ambientes criados por Schulz.
Deste aparente paradoxo entre tentar respeitar as características marcantes do conceito de Schulz, mas ao mesmo tempo conquistar novas audiências, pode resultar uma confusão que não é carne nem peixe e que poderá deixar os fãs com sabor a pouco, sem conseguir agarrar as novas gerações, tão diferentes daquelas que cresceram com os Peanuts, constantemente bombardeadas por histórias em que o amor, a preserverança e o esforço compensam sempre.
Espero que não. Espero que sirva, isso sim, para refrescar a memória das crianças das décadas de 60, 70 e 80 e para que uma nova geração fique a conhecer os Peanuts e os vá descobrir melhor no papel. Se isso acontecer, a batalha será ganha, apesar de todos os contratempos e a bola terá conseguido ser bem lançada. Acreditem - o mundo é infinitamente mais rico e mais belo com os Peanuts a viverem nele.
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