17 de abril de 2015

Opinião - Aparição - Vergilio Ferreira

Título: Aparição
Autor: Vergílio Ferreira
Editora: Quetzal

Sinopse:
Excerto
"Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza..."

Opinião por Sérgio Filipe Martins:
Não é apenas no género dramático que o reconhecimento encerra a personagem num labirinto inescapável de sofrimento. Em muitos textos de natureza diversa vamos encontrar também esse momento crucial em que à iluminação do espírito do protagonista se sobrepõe a mais sombria das experiências emocionais. Os textos bíblicos, por exemplo, nas suas caleidoscópicas visões da moral divina, encerram muitos momentos em que os homens são amiúde confrontados com o fruto da sua fraqueza. Não admite o fraticida que «é maior a minha maldade que a que possa ser perdoada» (Génesis, 4.13)? E o que dizer de Pedro, assaltado por aguda dor ao descobrir que inscrevera no seu cadastro moral a mais abjecta das reacções ao negar o seu Mestre três vezes, quando pouco tempo antes prometera assinar com o próprio sangue o vínculo que o ligava ao Nazareno (S. Mateus, 26.35)?
Isto não significa, contudo, que o divino ou os seus ditames morais seja a única força motriz desse instante epifânico em que todas as dúvidas sobre a nossa natureza se dissipam. É certo que, neste ou naquele texto, a presença intimidatória de uma entidade suprema se insinua na confissão do espírito mais intrépido, mas para o homem emancipado de Deus (ou, para todos os efeitos, de qualquer ideia de divino) a dor não é menos intensa, a aflição menos sufocante. No caso da Aparição, por exemplo, a voz existencialista de Vergílio Ferreira acaba por construir duas dimensões do reconhecimento. Por um lado, é Alberto Soares, o narrador-personagem-principal, que no epílogo expia a arrogância dos seus ensinamentos admitindo-se como culpado, enfim, na doutrinação do assassino de Sofia: «Ao contrário do que esperava, não fui notificado para o julgamento do Carolino. Da minha culpa, aliás, quem poderia decidir além dele, de mim, de nós, dos que sabem a linguagem que é ignorada pela lei?». Por outro, é o próprio Vergílio quem tenta comunicar uma revelação que, nas palavras de Eduardo Lourenço, «consiste no incomunicável da verdade dessa mesma revelação». Escritor e personagem palmilham ambos, afinal, um mesmo terreno onde todo oconhecimento conduz ao reconhecimento da sua própria falência, logo à impossibilidade de se erigirem certezas que sustenham a existência humana.
Embora o reconhecimento só pareça ganhar sentido dentro de uma determinada economia narrativa, também em certas realizações literárias desprovidas de um fio diegético, como é o caso da poesia lírica, ele está presente, em particular no tom confessional que informa o olhar do poeta sobre a sua própria vida, ela tomada como metáfora de tragédia: «Erros meus, má fortuna, amor ardente,/Em minha perdição se conjuraram;/ Os erros e a fortuna sobejaram,/ Que pera mim bastava o Amor somente.» E adianta: «Errei todo o discurso dos meus anos/Dei causa a que a Fortuna castigasse/As minhas mal fundadas esperanças.» (Camões) Outro, séculos mais tarde, também admitia: «Razão feroz, o coração me indagas,/ De meus erros a sombra esclarecendo…» (Bocage, «Sobre estas duras, cavernosas fragas»).

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