7 de novembro de 2014

Opinião - Os Jogos da Fome

Título: Os jogos da Fome
Autor: Suzanne Collins
Editora: Presença

Sinopse:
Num futuro pós-apocalíptico, surge das cinzas do que foi a América do Norte Panem, uma nova nação governada por um regime totalitário que a partir da megalópole, Capitol, governa os doze Distritos com mão de ferro. Todos os Distritos estão obrigados a enviar anualmente dois adolescentes para participar nos Jogos da Fome - um espectáculo sangrento de combates mortais cujo lema é «matar ou morrer». No final, apenas um destes jovens escapará com vida… Katniss Everdeen é uma adolescente de dezasseis anos que se oferece para substituir a irmã mais nova nos Jogos, um acto de extrema coragem… Conseguirá Katniss conservar a sua vida e a sua humanidade? Um enredo surpreendente e personagens inesquecíveis elevam este romance de estreia da trilogia Os Jogos da Fome às mais altas esferas da ficção científica.

Opinião por Vitor Caixeiro:
Numa época em que o mercado da literatura juvenil é inundado por romances que exaustivamente esgotam o conteúdo do fantástico, nomeadamente no que toca a criaturas mágicas e humanos com poderes sobrenaturais, surge esta saga como uma lufada de ar fresco e revigorante. Os Jogos da Fome é muito mais do que aquilo que à primeira vista aparenta ser, ultrapassando qualquer ideia banal contida num livro já conhecido. É cativante, poderoso, emocionante. Como tal, é um sucesso garantido.

A trama centra-se no conceito de distopia, uma realidade irremediável entranhada no mundo das suas personagens. Desde o primeiro momento é claro que existe uma divisão entre elas, distinguindo-as em dois grupos: aquelas que se encontram em plena felicidade com a situação actual que as rodeia, os cidadãos do Capitólio, e as restantes que constituem as multidões dos distritos condenados à sua clausura e miséria.

O livro fornece-nos o ponto de vista deste último grupo através de uma jovem chamada Katniss Everdeen. Habitante do decadente Distrito 12, Katniss encontra-se numa constante luta diária para impedir que a sua família morra à fome. Ela é o seu único sustento após um trágico acontecimento que mudou a sua vida para sempre, enfrentando todas as adversidades sem nunca vacilar ou mostrar sinais de fraqueza. Por vezes, Katniss evidencia esta faceta inquebrável como uma defesa, pois por dentro não passa de uma humana cujos sentimentos se encontram entorpecidos pela mágoa. É, portanto, dotada de uma personalidade forte, corajosa e persistente, características que se tornam evidentes a partir do momento da Ceifa e que se tornam trunfos importantíssimos para ultrapassar o desafio que a aguarda. Se esta leitura é aliciante, devemo-lo a Katniss. Também do Distrito 12 surge Peeta, um rapaz encantador, cheio de vitalidade e presença. O seu padrão de vida difere do de Katniss, ainda assim os seus destinos cruzam-se várias vezes, como que um mistério que os conduz à meta final. À medida que se conhece Peeta descobre-se que, para além de amável, é alguém extremamente inteligente com um sentido de perspicácia exímio. Há momentos em que as suas acções põem em causa a imagem que o leitor até então tinha delineado. A credibilidade desta personagem transforma-se numa grande dúvida, e até mesmo quando se parecesse esclarecê-la, há detalhes que permanecem sem solução. Peeta está envolto em surpresas inesperadas, o que faz dele uma personagem tão interessante quanto Katniss. Entre as restantes figuras destacam-se Haymitch, um antigo vencedor dos Jogos que auxilia Katniss e Peeta nesta tarefa, embora a maior parte do tempo esteja ausente, Gale, o companheiro de Katniss que lhe fornece um porto de abrigo e segurança, e ainda Rue, uma menina muito especial cuja doçura encanta tanto a Katniss como ao leitor.

Porém, não são só as personagens a proeza desta história. Outra das suas grandes forças é a própria história e o que a constrói. A ideia de mundo no qual uma revolução conduziu a um estado extremista em que a sociedade se encontra minuciosamente estratificada não é novidade. O que é de facto novo e merece reconhecimento pela sua originalidade é a criação de um tipo de provação ao qual os mais carecidos são submetidos para demonstrar a sua impotência e incapacidade perante os poderosos, e fazer disso um majestoso evento no qual se testa ao limite as fronteiras físicas e mentais do homem. Resumidamente, é um combate sangrento conhecido como os Jogos da Fome. O que para uns é um sádico prazer, para outros é o caminho para a devastação da morte. Esta dicotomia é a chave para manter a adrenalina nos Jogos, ao mesmo tempo que nos bastidores a angústia e a ansiedade dominam. Mas é na arena que o verdadeiro perigo reside.

Esta é uma história que explora como o poder pode levar a mente humana à loucura de tal forma a cometer o crime de aniquilar a sua própria raça pela violência, e ainda pior, apreciá-lo. Seja por diversão ou por jogada política, a mensagem passa quando o sangue é derramado, quando cada lágrima cai por um jovem que partiu cedo demais. E é nessa sensibilidade que ainda vive nos habitantes dos distritos que sobressaem os valores humanos, a única arma capaz de fazer frente ao Capitólio. Este contraste torna-se cada vez mais evidente no decorrer da obra, o que em muito se deve à magnífica Katniss.

Sendo um livro inclinado para o público juvenil, a autora optou por uma escrita simples, fluente, ainda assim sempre ponteada por emoção. Na verdade, o leitor não se consegue apartar do que se passa na cabeça da protagonista, vivendo intensamente cada acontecimento com esta. É um leitura alucinante, vertiginosa, inebriante até ao fim da última página.

Com tudo isto é impossível não querer mais. Suzanne Collins arriscou bastante a ainda bem que o fez. Com Os Jogos da Fome, teceu um ponto de partida bastante sólido capaz de surpreender qualquer tipo de público. As expectativas para Em Chamas, o próximo volume, são imensas. Conseguirá manter-se o mesmo nível? Melhor qualidade ainda faria desta saga uma das melhores deste século.  Aconteça o que acontecer, Felizes Jogos da Fome! E que a sorte esteja sempre convosco.

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