24 de dezembro de 2015

Opinião – “Diário de Uma Criada de Quarto” de Benoît Jacquot




Sinopse:
Célestine, uma criada de quarto jovem e bela, acaba de chegar à província, vinda de Paris, para trabalhar com a família Lanlaire. Ela vai evitando os avanços do patrão, enquanto lida também com a Senhora Lanlaire, que governa a casa com um punho de ferro. É então que conhece Joseph, um misterioso jardineiro, por quem fica fascinada. O filme é uma adaptação do romance homónimo de Octave Mirbeau.
 
Opinião por Marta Nogueira
Diário de uma Criada de Quarto é uma adaptação do romance homónimo de Octave Mirbeau por Benoît Jacquot, realizador responsável pelos mais recentes Adeus, Minha Rainha e Três Corações. Com as anteriores adaptações de Renoir e Buñuel, Jacquot tinha uma pesada tarefa em mãos, que resolveu contornar de forma elegante tentando ser mais fiel ao livro do que os seus ilustres antecessores.
Quando escreveu o romance, Mirbeau quis reflectir sobre a escravidão dos tempos modernos, um mundo moribundo em que a divisão de classes era de tal forma rígida que alguém nascido do lado social errado, mesmo detendo todos os atributos necessários para uma vida de sucesso, nunca poderia aspirar a ele. É assim que nos é apresentada Célestine, a criada de quarto bonita, elegante, inteligente e expedita, que saltita de casa em casa, partilhando os segredos repugnantes da burguesia e escarnecendo intimamente deles ou, neste caso, debitando-os para o seu diário. São dela estas palavras no romance: “A veneração do dinheiro é a mais baixa das emoções humanas, mas é partilhada não apenas pela burguesia, como também pela maior parte de nós, gente pequena, gente humilde, mesmo os paupérrimos. E eu, Célestine, com toda a minha indignidade, toda a minha paixão pela destruição, eu também não sou imune a essa veneração.” Célestine prossegue explicando que de cada vez que encontra alguém com muito dinheiro, não consegue evitar um instintivo respeito por essa pessoa, como se ela apenas por ter mais dinheiro fosse mais do que todos os outros. É esta a base deste romance sobre uma criada de quarto que acaba dona de um café e tratando os seus empregados com a mesma indiferença que recebeu dos seus antigos patrões.
No filme, o diário de Célestine são os sussurros venenosos que ela vai “cuspindo” entredentes nas costas dos seus patrões, sempre que se vê vítima de uma injustiça qualquer absurda e os flashbacks que nos explicam os diversos patrões e casas por onde passou e que nos revelam também cada vez mais um pouco da sua verdadeira alma. E, se no início, Célestine nos parece insubordinada, às vezes mesmo malcriada, cínica e desencantada, lentamente percebemos que ela tem sentimentos e que a sua aparente arrogância provém do facto de saber que tem qualidades e atributos louváveis que, nascidos noutro berço, lhe poderiam proporcionar uma vida digna e segura, em vez de ter de se sujeitar aos humores e às manias dos seus vis patrões ricos. Na última casa onde a maior parte da acção se passa, Célestine acaba completamente hipnotizada por um jardineiro bruto e xenófobo, possivelmente até assassino, que lhe oferece uma espécie de contrato alternativo à sua vida de escravatura e com quem ela acaba por fugir, não tanto por amor, mas numa tentativa desesperada de alcançar a liberdade que sempre ambicionou.
À semelhança dos seus anteriores filmes, Jacquot oferece-nos um retrato de época modernizado, com uma leveza pouco habitual em películas que retratam períodos históricos. Adaptar um romance à tela é sempre um risco enorme, carregado de desafios nunca completamente imunes às comparações, ainda para mais com as duas anteriores adaptações já mencionadas. O esforço de Jacquot para respeitar o romance é sobretudo colocado em cima dos ombros ou do rosto de uma Léa Seydoux em estado de graça. A actriz que vimos em Inglorious Basterds, Meia-Noite em Paris, Missão Impossível e no mais recente Spectre, veste a personagem de Célestine com convicção e uma extraordinária expressividade e versatilidade do rosto, que a luz do premiado Romain Winding ilumina ora para nos revelar um anjo confuso e esperançoso, ora um demónio enegrecido pela vida. A Célestine de Léa aparenta ter deixado de sentir, ou nunca ter sentido, mas aos poucos, de forma subtil e estudada, vamos percebendo que existe um turbilhão revolto lá dentro pronto a explodir a qualquer momento, sem que ela deixe que isso aconteça jamais junto de quem não quer. Mas quem não conheça o romance ficará certamente na dúvida sobre as verdadeiras intenções e os verdadeiros sentimentos de Célestine, sobretudo no que diz respeito à sua relação com Joseph, o jardineiro com quem acaba por fugir. Essa será a parte mais fraca do argumento, que não consegue, a meu ver, estabelecer de forma clara a verdadeira natureza das relações do par e que poderá confundir o espectador, sobretudo com um final que poderá parecer um pouco dúbio.
Ainda assim, penso que o resultado é bastante positivo. Jacquot conseguiu fazer um filme fresco, fluído e ao mesmo tempo profundo, que fará o espectador reflectir sobre uma série de questões e que veicula a mensagem principal do romance, ainda que de forma muito concentrada, como acontece com quase todas as adaptações – a injustiça de um sistema de classes que amarra as pessoas eterna e irrevogavelmente a papéis estereotipados e que ainda hoje em dia se mantém actual em muitas partes do mundo nas mais variadas situações. Penso que se Jacquot tivesse seguido a sua intenção de fidelidade ao romance até ao final, mantendo a conclusão idêntica à do romance – Célestine acaba sendo patroa vil de outros – o filme teria ganho uma maior integridade de significado e uma maior clareza na sua globalidade.

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