9 de junho de 2015

Opinião - Caim - José Saramago


Título: Caim
Autor: José Saramago
Editora: Caminho

Sinopse:
Quem diabo é este Deus que, para enaltecer Abel, despreza Caim?
Se em O Evangelho Segundo Cristo José Saramago nos deu a sua visão do Novo Testamento, em Caim regressa aos primeiros livros da Bíblia. Num itinerário heterodoxo, percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha pela mão dos principais protagonistas do Antigo Testamento, imprimindo ao texto o humor refinado que caracteriza a sua obra.
Caim revela o que há de moderno e surpreendente na prosa de Saramago: a capacidade de fazer nova uma história que se conhece do princípio ao fim. Um relato irónico e mordaz no qual o leitor assiste a uma guerra secular, e de certa forma, involuntária, entre o criador e a sua criatura.

Opinião por Vitor Caixeiro:
Fomos ensinados a ver a evolução da história da humanidade, a nossa história, através de duas formas distintas: a ciência, que nos explica como a partir de uma ínfima partícula surgiu a complexidade que hoje se apresenta como o corpo humano, ou a religião, essa grande força elaborada pelo próprio homem que desvenda os mistérios da nossa origem e da moralidade que nos é inerente. Em Caim, Saramago pega nesta última vertente para descodificá-la à sua maneira, fazendo referência a vários episódios do Génesis que confronta com o seu olhar muito próprio. Com uma ironia omnipresente e um tom desassombradamente crítico, Caimexpõe a verdadeira natureza do homem e, consequentemente, a verdadeira natureza do seu Deus.
Esta história começa com as figuras de Adão e Eva que, segundo a Bíblia, foram os nossos primordiais ancestrais. O autor situa-nos no místico Jardim do Éden e desde logo nos apercebemos que não é uma simples visita ao paraíso. Pelo contrário, a partir do famoso acto do pecado que Saramago tão naturalmente descreve, a dádiva divinal transforma-se numa maldição imperdoável que condena Adão e Eva "ad eternum". Não fosse este pecado e talvez ainda hoje estivéssemos a viver no paraíso, mas isso seria outra história para outra vida de seres que seriam perfeitos, o que Saramago deixa explícito ser inexistente neste mundo ou noutro mundo qualquer, incluindo o divino.
Com a reviravolta da ira de Deus, o ser humano vê-se pela primeira vez obrigado a lutar pela sua sobrevivência. Ou seja, é aqui que Adão e Eva começam a construir a sua vida e se integram no mundo que lhes pertence conhecendo os seus iguais. Da relação dos progenitores nascem três crias, entre as quais Caim, e desde o momento em que Caim se apresenta na narrativa passa a fazer parte dela constantemente. Primeiramente é-nos dada a conhecer a faceta mais negra de Caim, através de um acto que nas nossas mentes é impensável. No entanto, à medida que a história evolui e que se fica a conhecer melhor Caim, apercebemo-nos de que afinal aquela faceta não era a sua, mas sim a de outro alguém, esse alguém que Saramago prontamente responsabiliza uma e outra vez. Deste modo, Caim revela-se uma figura honesta, realista e, como se vem a perceber mais tarde, lutadora pelos seus interesses.
Ao longo dos capítulos, Caim viaja entre os denominados "presentes futuros", os vários cenários que o levam por diversos episódios bíblicos. Desde o ataque a Jericó até ao imenso dilúvio, Caim assiste às missões que Deus incute no homem para prevalecer a sua vontade. O leitor assiste, igualmente, às batalhas e aos sacrifícios sangrentos que ficaram registados na história em nome da religião. Partilhando a opinião do autor, considero que em nada conduziram se não para cimentar a ideia da crueldade que pode atingir um homem se está em questão deter um poder maior e preservar o ideal de um Deus imperioso que tudo quer, pode e manda.
Torna-se evidente que Caim é a voz do autor a dar vida ao conflito entre este e Deus, contrariando e criticando afincadamente os seus propósitos e os seus meios de acção. A natureza desta personagem consegue em vários momentos sobrepor-se à presença divina e elucidar-nos com premissas cheias de verdade e que, quer aprovemos quer não, nos fazem reflectir sobre os nossos defeitos e as nossas virtudes, mas acima de tudo sobre a nossa condição humana inequivocamente imperfeita.
Todo este relato é feito num tom profundamente irónico e crítico. Num discurso corrente repleto de metáforas, eufemismos e disfemismos, o autor fornece a sua visão única e inquebrável de um tema altamente controverso da nossa sociedade actual. Quem conhece a escrita de José Saramago sabe o que pode esperar de Caim.
Resta deixar um aviso aos crentes para que não tomem as palavras de Saramago como um ataque, mas sim como uma reflexão sobre os valores morais e pessoais que durante toda a história sofreram quebras em diversos momentos. O que importa é que há vozes capazes de ultrapassar esses declínios e utilizá-los para demonstrar que também existe algo de bom no homem, quando este deixa de ser governado por uma força invisível e decide encontrar em si mesmo a sua própria força para continuar o seu caminho. Uma dessas vozes é Caim. Outra, é Saramago.

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