Ficha Técnica:
Título Original: Amour Fou
Título Nacional: Amour Fou
Argumento: Jessica Hausner
Realização: Jessica Hausner
Fotografia: Martin Gslacht
Produção: Martin Gslacht, Antonin Svoboda e outros.
Opinião por João Salvador Fernandes:
Amour Fou, filme da realizadora
austríaca Jessica Hausner, foi o vencedor do prémio Melhor Filme -
Jaeger-LeCoultre da edição 2014 do Lisbon & Estoril Film Festival: uma
película geometricamente curiosa e profundamente teatral, dotada de um subtil e
minucioso humor negro. Bastará vê-la para perceber o que pretendo dizer com a
referência ao seu geometrismo, mas, adiante, melhor explicarei o uso do termo.
Sinopse:
No início do século XIX, o Romantismo e as ondas de choque da Revolução Francesa vão-se impondo por toda a Europa, enquanto as mentalidades conservadoras e conformistas do Velho Continente entram em contenda com o emergir dos nacionalismos, dominados
pelo subjectivismo, o lirismo sonhador, o exagero, a demanda pelo desconhecido
e as obsessões pela liberdade, pelo amor e pela morte próprias dessa revolução de mentalidades.
A acção, nesta longa-metragem, inicia-se nessa época, em Berlim, no lar da
família Vogel e no transcurso de um serão festivo; o cravo, com a sua sonoridade
característica, escolta as canções melancólicas e rotineiras que colhem os
aplausos mecânicos e esperados dos convidados. Neste contexto, surge-nos, então, a
personagem histórica Heinrich Von Kleist, poeta, romancista, dramaturgo e contista
alemão, que busca pela mulher ideal para o seguir na transcendência da
carne e do osso através da morte.
Depois de muito procurar e de
muitas desilusões, ao ser rejeitado por aquela que conquista o seu coração, a
sua prima Marie (Sandra Hüller), Heinrich (Christian Friedel) encontra em
Henriette Vogel (Mite Birte Schnöink) – uma dona de casa típica da
alta-sociedade que se deixou encantar pelos seus poemas – a pessoa que
preenche os seus inusitados e mórbidos requisitos.
Henriette é, de facto, o modelo
de mulher das classes possidentes germânicas, sem espaço para a sua
individualidade e consagrada à filha e ao marido,
Friedrich Louis Vogel (Stephan Grossman): homem obcecado em executar um novo
imposto que afectará todas as classes sociais.
Heinrich, por sua vez, é o
protótipo do poeta romântico, sedutor, egocêntrico, desejando a aclamação
metafísica do seu Eu lúgubre mediante um falecimento acompanhado por alguém que
eleve a dignidade desse acto. Confrontado, a início, com as recusas da prima e de
Henriette, aproveita-se do diagnosticar de um tumor incurável a esta última,
bem como da fragilidade psicológica daí decorrente, para a manipular e convencer
a participar no seu suicídio glorioso.
Crítica:
Se, neste recinto opinativo,
comentei a preocupação contínua de alguns realizadores com o enquadramento,
posso afirmar que, neste filme, Jessica Hausner ultrapassa-os largamente. No âmbito imagético, todos os pormenores, inspirados em quadros de Johannes Vermeer, são um hino
aos ângulos e às linhas rectas, materializados em planos metódicos que contêm, normalmente, um ponto de
focagem que permite criar uma noção de profundidade, correctamente emoldurada
pelos acessos, janelas, portas e paredes, em cenários estranhamente cativantes.
Jessica Hausner constrói, assim, uma estética geométrica que, não
descurando um ou outro aplanamento e uma soberba composição de cores, traduz,
com uma beleza sinistra, a atmosfera fria, conservadora e automatizada da vivência quotidiana
da Prússia de 1811.
Entrementes, vai-nos brindando com a reprodução precisa dos hábitos da nobreza e burguesia prussianas, as discussões sociais e filosóficas da época, o colóquio de transição entre
o Antigo Regime e o novo, não esquecendo, nunca, as contradições entre um racionalismo em decadência,
um sentimentalismo a desabrochar e as crendices de quem se considera detentor
do conhecimento irrefutável.
Amour Fou não autoriza desempenhos imponentes por parte dos seus actores, que, com tenuidade, diálogos literários e interpretações teatrais espelham a sua ambiguidade intrínseca, fazendo-nos entender que aquela sociedade é uma genuína prisão; alías, o único momento de naturalidade, na verdade, é-nos demonstrado pela filha de Henriette a brincar ao ar livre com patos, quando as grilhetas das regras comunitárias são ignoradas.
Indubitavelmente, esta fita é um
encontro com o espectador que se desenrola de forma astuta; cheia de
duplicidades e mal-entendidos que a enriquecem, oferta-nos a sensação de que,
mais do que uma tragédia, esta é uma comédia de costumes.
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