17 de dezembro de 2014

Amour Fou - Crítica



Ficha Técnica:
Título Original: Amour Fou
Título Nacional: Amour Fou
Argumento: Jessica Hausner
Realização: Jessica Hausner
Fotografia: Martin Gslacht
Produção: Martin Gslacht, Antonin Svoboda e outros.

Opinião por João Salvador Fernandes:
Amour Fou, filme da realizadora austríaca Jessica Hausner, foi o vencedor do prémio Melhor Filme - Jaeger-LeCoultre da edição 2014 do Lisbon & Estoril Film Festival: uma película geometricamente curiosa e profundamente teatral, dotada de um subtil e minucioso humor negro. Bastará vê-la para perceber o que pretendo dizer com a referência ao seu geometrismo, mas, adiante, melhor explicarei o uso do termo.

Sinopse:
No início do século XIX, o Romantismo e as ondas de choque da Revolução Francesa vão-se impondo por toda a Europa, enquanto as mentalidades conservadoras e conformistas do Velho Continente entram em contenda com o emergir dos nacionalismos, dominados pelo subjectivismo, o lirismo sonhador, o exagero, a demanda pelo desconhecido e as obsessões pela liberdade, pelo amor e pela morte próprias dessa revolução de mentalidades.

A acção, nesta longa-metragem, inicia-se nessa época, em Berlim, no lar da família Vogel e no transcurso de um serão festivo; o cravo, com a sua sonoridade característica, escolta as canções melancólicas e rotineiras que colhem os aplausos mecânicos e esperados dos convidados. Neste contexto, surge-nos, então, a personagem histórica Heinrich Von Kleist, poeta, romancista, dramaturgo e contista alemão, que busca pela mulher ideal para o seguir na transcendência da carne e do osso através da morte.

Depois de muito procurar e de muitas desilusões, ao ser rejeitado por aquela que conquista o seu coração, a sua prima Marie (Sandra Hüller), Heinrich (Christian Friedel) encontra em Henriette Vogel (Mite Birte Schnöink) – uma dona de casa típica da alta-sociedade que se deixou encantar pelos seus poemas – a pessoa que preenche os seus inusitados e mórbidos requisitos.

Henriette é, de facto, o modelo de mulher das classes possidentes germânicas, sem espaço para a sua individualidade e consagrada à filha e ao marido, Friedrich Louis Vogel (Stephan Grossman): homem obcecado em executar um novo imposto que afectará todas as classes sociais.

Heinrich, por sua vez, é o protótipo do poeta romântico, sedutor, egocêntrico, desejando a aclamação metafísica do seu Eu lúgubre mediante um falecimento acompanhado por alguém que eleve a dignidade desse acto. Confrontado, a início, com as recusas da prima e de Henriette, aproveita-se do diagnosticar de um tumor incurável a esta última, bem como da fragilidade psicológica daí decorrente, para a manipular e convencer a participar no seu suicídio glorioso.

Crítica:
Se, neste recinto opinativo, comentei a preocupação contínua de alguns realizadores com o enquadramento, posso afirmar que, neste filme, Jessica Hausner ultrapassa-os largamente. No âmbito imagético, todos os pormenores, inspirados em quadros de Johannes Vermeer, são um hino aos ângulos e às linhas rectas, materializados em planos metódicos  que contêm, normalmente, um ponto de focagem que permite criar uma noção de profundidade, correctamente emoldurada pelos acessos,  janelas, portas e paredes, em cenários estranhamente cativantes.

Jessica Hausner constrói, assim, uma estética geométrica que, não descurando um ou outro aplanamento e uma soberba composição de cores, traduz, com uma beleza sinistra, a atmosfera fria, conservadora e automatizada da vivência quotidiana da Prússia de 1811.

Entrementes, vai-nos brindando com a reprodução precisa dos hábitos da nobreza e burguesia prussianas,  as discussões sociais e filosóficas da época, o colóquio de transição entre o Antigo Regime e o novo, não esquecendo, nunca, as contradições entre um racionalismo em decadência, um sentimentalismo a desabrochar e as crendices de quem se considera detentor do conhecimento irrefutável.

Amour Fou não autoriza desempenhos imponentes por parte dos seus actores, que, com tenuidade, diálogos literários e interpretações teatrais espelham a sua ambiguidade intrínseca, fazendo-nos entender que aquela sociedade é uma genuína prisão; alías, o único momento de naturalidade, na verdade, é-nos demonstrado pela filha de Henriette a brincar ao ar livre com patos, quando as grilhetas das regras comunitárias são ignoradas.


Indubitavelmente, esta fita é um encontro com o espectador que se desenrola de forma astuta; cheia de duplicidades e mal-entendidos que a enriquecem, oferta-nos a sensação de que, mais do que uma tragédia, esta é uma comédia de costumes.

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