12 de novembro de 2014

Opinião - A Chama ao Vento

Título: A Chama ao Vento
Autor: Carla M. Soares
Editora: Coolbooks

Sinopse:
Um corpo anónimo é lançado à água num misterioso voo noturno sobre o Atlântico…
Vivem-se os anos mais negros da Segunda Guerra Mundial, e a vida brilha com a força e a fragilidade de uma chama ao vento. Na Lisboa de espiões e fugitivos dos anos 40, João Lopes apresenta à sua amiga Carmo um estrangeiro mais velho, homem de segredos e intenções obscuras que depressa a seduz, atraindo os dois jovens para uma teia de mistérios e paixões de consequências imprevistas.
Anos volvidos, Francisco, jornalista, homem inquieto, pouco sabe de si próprio e menos ainda de Carmo, a avó silenciosa que o criou, chama apagada de outros tempos. É João Lopes quem promete trazer-lhe a sua história inesperada, história da família e dos passados perdidos nos tempos revoltos da Segunda Grande Guerra e da Revolução de Abril. Para João, é uma história há muito devida. Para Francisco, o derrubar dos muros que ergueu em torno da memória e da própria vida.
Um retrato íntimo de Portugal em três gerações, pela talentosa escritora de Alma Rebelde.

Opinião por Bárbara Moura:
Tal como o passado de Francisco o encontrou, sinto que foi este livro que me encontrou a mim, e não o contrário. Por um lado, é uma obra que reúne muitas das características que prezo nos livros. Por outro, A Chama Ao Vento foi-nos gentilmente cedido pela sua autora, e decidi entregar-me à sua leitura sem ler sequer a sinopse – o que, incidentalmente, é algo que tenho de começar a fazer mais vezes, quando me recomendam bons livros que não conheço, pois a partida ao desconhecido num livro é deliciosa.
Foi precisamente o que senti ao ler as primeiras páginas. A introdução atinge-nos com um baque, sendo no entanto deixada em suspenso, e deixando o leitor imediatamente intrigado. Avançamos então para a viagem que despoleta uma crise na vida de Francisco, o nosso narrador. Descobrimos ao mesmo tempo que ele aquilo que ignorava há demasiado tempo, e subitamente a introdução já não tem assim tanta importância.
Francisco consegue ser por vezes exasperante, especialmente pelas suas acções, mas evoca empatia em quem acompanha o que lhe vai na alma. Foi-me impossível ignorar o aperto atrás do esterno e, por vezes, conter as lágrimas, quando recordava os dramas do seu passado vistos pelas lentes turvadas de inocência da infância. O leitor é levado, quase sem se aperceber, na viagem pelo passado e simultaneamente pelo interior do narrador – que é também apanhado de surpresa.
João Lopes é também uma personagem deveras interessante. Aquele que podia ser apenas um espectador na história principal, personagem secundária e mero veículo de informação, torna-se num dos principais intervenientes do que tem para contar a Francisco – não fossemos todos protagonistas da nossa própria história. João é-nos apresentado como alguém corajoso, sensato (para a sua idade), altruista e, sobretudo, íntegro. A parte mais céptica de mim por vezes questionava esta integridade – o que Francisco vocalizava com bastante mais à vontade que eu – mas se há algo que prezo é que a existência de pessoas verdadeiramente incorruptíveis não é um mito, e que, consequentemente, cada um de nós o pode ambicionar.
Carmo é difícil de perceber, ao início. Tive sentimentos contraditórios quanto a ela. Desde a incompreensão da sua frieza à ternura da sua inocência, temos de ler nas entrelinhas da história de João e de Francisco aquilo por que esta mulher passou, até se tornar a imagem do estoicismo que dá a conhecer. Gosto muito da reflexão que se faz sobre a transformação da Carmo, menina, em Carmo, mãe e avó, uma sombra daquilo que era ou que sonhou ser. Levou-me verdadeiramente a pensar nas histórias e aventuras guardadas nas personagens secundárias da nossa vida, que tanto prezamos, mas a quem por vezes não prestamos a atenção devida.
A acrescentar a um belo leque de personagens, a autora faz uma descrição muito clara da época, dos lugares e costumes, e consegue transmitir-nos alguma da inquietude disfarçada que pairava no ar. Desconhecia que Lisboa tivesse sido refúgio de tantas vítimas da Segunda Guerra Mundial – reconheço que História nunca foi a minha melhor disciplina –, mas consola-me em certa medida saber que possa ter sido um ponto de partida para uma nova vida, mesmo que marcada pelas atrocidades vividas. Todos os relatos desse tempo me fazem lembrar do sofrimento dessas pessoas, tão reais como eu me sinto, o que me impele a tentar fazer do mundo (o que eu alcanço, pelo menos), um lugar melhor.
(Por muito que se Francisco se queixasse, não me importei minimamente com a tendência do Sr. Lopes para fugir da narrativa para a lição de História!)
A componente de mistério é também muito importante na obra, e a autora consegue manter o leitor interessado (apesar de considerar que, para o leitor perspicaz, um dos mistérios é deduzível).
Um factor que me agrada sobejamente, e que não está presente na maior parte das obras que leio, por muito que goste delas, é o facto de as personagens falarem e pensarem como eu falo e penso. Por vezes dou por mim a ler edições portuguesas de livros de autores estrangeiros e a retraduzi-los mentalmente – para citar Manuela Azevedo, A língua inglesa fica sempre bem / E nunca atraiçoa ninguém. Esta obra serviu para me lembrar do prazer de ler na minha língua.
Como aspecto meno positivo, devo dizer que houve uma parte da história que senti ter ficado inacabada. Não o considero um defeito do livro ou da história per se, acredito que a autora tenha deixado a história exactamente onde queria e o final apraz-me; no entanto, gostaria de ter acompanhado Francisco na (re)descoberta de outras personagens específicas da sua história.
Para finalizar, é uma obra muito bonita, uma reflexão sobre a passagem do tempo e de várias gerações por este, e um testemunho sobre o quanto o nosso comportamento é moldado tanto pela nossa chama intrínseca, como pelos ventos que por ela passam e que a podem apagar, ou atiçar.

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