2 de abril de 2014

Opinião - Quantas Madrugas Tem a Noite

Título: Quantas Madrugas Tem a Noite
Autor: Ondjaki
Editora: Caminho

Opinião por Helena Isabel Bracieira:
"Sabes o que é não sentir o coração e sentir o coração, tud’uma batida só, sangue leve no peito e lágrimas limpas a escorrer? Faz conta foste na pesca, rede e tudo, e em vez do peixe grande meteste a rede na água e te veio uma nuvem? Se é impossível? Eu sei lá, avilo, eu sei lá… Desde cadengue que ando então a ver as nuvens dançar nas peles do mar, e me pergunto: assim calminho, liso tipo carapinha com desfrise, o mar não tem nuvens dele também? De onde eu venho é muito longe, por isso, juro mesmo, nasci de novo. Vou te confessar: espanto é só aquilo que ainda nunca tínhamos vivido com nossa pele!" – página 9

Assim começa este romance, produto da prodigiosa imaginação de Ondjaki, escritor angolano. Quando decidi ler este livro já sabia o autor tinha recebido vários prémios pela sua obra (Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2007, Prémio Jabuti na categoria juvenil e prémio Grinzane por melhor escritor africano de 2008), para além de ser considerado um dos melhores escritores da sua geração em África. Além disso já tinha lido e ficado agradada com O Assobiador (romance, 2002) e Há prendisajens com o xão (poesia, 2002), ambos presentes num livro que saiu na Colecção Frente e Verso da revista Visão. Deste modo, tinha motivos mais do que suficientes para esperar uma boa história, e não fiquei desapontada, antes pelo contrário, fiquei maravilhada.

A troca de cervejas, numa tarde e pela madrugada fora, alguém de muito, muito longe, de tão longe que parece que nasceu de novo, compromete-se a contar uma história. Num monólogo imenso, toda a narrativa se passa em Angola, mais precisamente na Luanda contemporânea. Inclui um conjunto de personagens fora do comum que se cruzam e entrecruzam em situações, no mínimo, surreais, remetendo-nos para o realismo mágico de que García Márquez é mestre: chuvadas apocalípticas; um cadáver que é roubado e que circula do tribunal para a polícia e da polícia para o tribunal num táxi devidamente convertido em carro da polícia pela colocação de um cartaz e de uma sirene; alguém que comanda e convive com abelhas como se delas fosse rainha; um cão assustadoramente aterrador, julgando-se até que poderá ser a encarnação do diabo; um cego que vê tão bem que até se esquiva de uma bala são alguns dos exemplos.

AdolfoDido é o morto. Os seus amigos preparam-lhe o funeral. Mas não é fácil... Disputado por duas mulheres, o seu corpo é apreendido várias vezes pela polícia, e não pára de circular de um lado para o outro. Ainda casado no papel com DonaDivina, vive com KiBebucha. A primeira só o desejou por interesse: pensado que AdolfoDido era influente por ter um primo do éme (Movimento Popular de Libertação de Angola), casa-se com ele esperando uma vida farta. Rapidamente se desilude. À segunda não lhe pode escapar, pois por detrás das suas seduções corporais, desconfiava-se que lhe arreava bem... Ficamos também a saber que, através de uma falcatrua, se disse antigo combatente (num país onde nunca houve guerra!), quando na verdade é demasiado novo para isso - ninguém se dá ao trabalho de o constatar. Por isso lutam as viúvas pelo seu corpo e, claro, pela pensão devida. Sempre se disse que o coração tem razões que a razão desconhece, não é?

BurkinaFaçam, o anão, sente muito a perda do seu grande amigo AdolfoDido, aquele que um dia lhe salvou a vida. Apoia a criação fictícia de um sindicato para as prostitutas para, por um lado, poder gozar de todas as regalias que as suas festas orgíacas podiam proporcionar e, por outro, para fazer felizes as suas amigas Eva e Madalena, também elas prostitutas. Tem um táxi, fundamental para o desenrolar da história, já que quase todas as personagens passam pelo seu interior, e servem-se dele para as suas movimentações. Jaí, o albino, professor e comunista, está grato a Burkina por o ter salvo de uma população sedenta da sua cabeça para a cura da sida - ai, as superstições! Conhece um grande amor no decorrer da história... Ambos são amigos de Adolfo e tentam por tudo poupar o que dele resta às inclemências das viúvas, da justiça, da população, das intempéries.

É na casa da Kota das Abelhas que se reúnem e onde ocorrem alguns dos momentos mais decisivos. Após ter «assassinado» a abelha-rainha e transformado a sua própria casa numa colmeia gigante na qual assumiu o papel de rainha passaram-na a chamar deste modo. Subsiste do mel que elas fabricam e utiliza-o em tudo: cremes regeneradores que mantêm a juventude e conservam os cadáveres (inclusive o de AdolfoDido), bolos, bebidas, etc. Vive com o Cão [cuja figura está presente na capa desta edição]: dono e senhor da sala, é um cão assustador que causa um terror imenso em quem se atreve a olhá-lo.

Retrato da coloquialidade angolana, a linguagem pode apresentar-se como um desafio a superar. Felizmente no final do livro há um glossário com o significado de quase todas as expressões utilizadas e, como elas são constantemente repetidas, no decorrer da leitura é fácil apreender o seu significado, ao ponto de se deixar de o consultar. Por exemplo, cumbú é dinheiro, ngaia é garrafa, entre outras. Nem por isso nos deixa de parecer poética e sedutora, onde cada palavra surge no local exacto. De qualquer forma, um pequeno truque que utilizei foi o de imaginar que me falavam com um forte sotaque angolano (qualquer pessoa já o ouviu, nem que fosse na televisão!), meloso pelas cervejas que se sucediam e pelo prazer de uma boa conversa.

Admiravelmente o narrador conhece todos os pormenores e nunca perde o fio à meada, ainda que os apartes sejam recorrentes. Apartes esses que não deixam de ser importantes e que, muitas vezes, contêm reflexões aparentemente tão simples, mas tão, tão bonitas:

"Há muitos teatros – pensas que é só com bilhete e cadeira sentada com mosquitos que vais no teatro? E a vida?, esqueceste esse palco puramente verdadeiro a acontecer todos dias, a se entornar nos teus olhos de lágrimas que nem vês?" – página 31

"Foram então procurar a KiBebucha, na casa dela da Ilha, onde ela gostava de não ficar dentro de casa, mas lá no quintal-rua, início do passeio da casa dela, onde espreitava o mar – vício dos olhos dela desde pequena. Num te falei?, isto é só grandes coisas, efeitos da natureza nas pessoas mesmo: céu, mar, lua, sol, coisas assim enormes não escapam nas vias do coração, meu. Qual é a tua inclinação? Nada, nada mesmo? Pra ti pôr do sol e pôr de merda nenhuma é a mesma coisa? E a lua de noite? Nada mesmo? Porra, meu, dás pena, quer dizer, estás neste mundo só pra o que der e vier, não queres meter o corpo e o coração nele?" – página 54

De um modo geral, alguns dos temas abordados são a corrupção e o poder das influências num país ainda marcado pela memória de guerras recentes, sejam elas contra o invasor branco ou de luta pelo poder; a superstição e a credulidade dominantes num povo simples; um sistema burocrático que nem sempre supre as falcatruas que vão surgindo, mas que nem por isso deixa de zelar por quem escuta e julga; a falsidade e o egoísmo; e, acima de tudo, a amizade pela qual ainda tudo é possível.

Porque, afinal de contas, nada do que foi contado são devaneios de um bêbado... Tudo pertence a uma África desconhecida, palpitante de vida. Desconhecida pois erradamente é-nos incutido que África não passa de um continente perdido, com uma população reduzida à miséria e à doença. Palpitante de vida, já que o seu povo, ultrapassando todo esse sofrimento, nunca deixou de sorrir.

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