29 de abril de 2011

Opinião - Caim

Título: Caim
Autor: José Saramago
Editora: Caminho

Sinopse:
Quem diabo é este Deus que, para enaltecer Abel, despreza Caim?
Se em O Evangelho Segundo Cristo José Saramago nos deu a sua visão do Novo Testamento, em Caim regressa aos primeiros livros da Bíblia. Num itinerário heterodoxo, percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha pela mão dos principais protagonistas do Antigo Testamento, imprimindo ao texto o humor refinado que caracteriza a sua obra.
Caim revela o que há de moderno e surpreendente na prosa de Saramago: a capacidade de fazer nova uma história que se conhece do princípio ao fim. Um relato irónico e mordaz no qual o leitor assiste a uma guerra secular, e de certa forma, involuntária, entre o criador e a sua criatura.

Opinião por Joana Pereira:
Em mais um brilhante texto, Saramago conta-nos a história da vida de Caim, personagem bíblica amplamente conhecida por ter matado o seu irmão, Abel. Apesar de ser já uma história conhecida, senão por todos, pelo menos por alguns, Saramago consegue recontá-la, inventando diálogos, penetrando nos pensamentos das personagens e ironizando as situações mais dramáticas, daquela forma fantástica que lhe é peculiar e que torna a sua escrita ímpar.
O autor começa por nos apresentar os seus pais, Adão e Eva, e a sua vida no Jardim do Éden, onde estes desfrutam de uma vida simples e fácil, com abundância de água e de alimentos, apesar de não existirem grandes trabalhos a realizar nem grandes distracções, a não ser as esporádicas visitas do Senhor, que aparece normalmente vestido como um rei e ora fazendo-se anunciar com um grande estrondo de trovões ora aparecendo de mansinho.

Uma das poucas ordens que este lhes deu foi que não comessem os frutos da árvore do conhecimento, para que não soubessem o que era o bem e o mal. Contudo, Eva, por sugestão de uma serpente, acaba por colher um dos frutos e prová-lo, convencendo Adão a fazer o mesmo. Quando o Senhor descobriu ficou furioso e expulsou ambos do Jardim, ameaçando-os de que iriam certamente morrer á fome, à sede e ao frio, pois lá fora toda a terra era árida e a água e os abrigos escasseavam.

Uma vez no exterior, Eva e Adão confirmaram que as palavras do Senhor eram verdadeiras, pois embora tivessem encontrado uma caverna onde se abrigaram e um riacho quase seco, não vislumbraram uma única árvore de frutos, nem sequer um animal que pudessem matar e comer ou um terreno que pudessem tentar cultivar. Quando já estavam quase conformados de que iam morrer Eva tem a ideia de voltar ao Jardim e pedir ao querubim que o Senhor tinha colocado na entrada com ordem para os matar se eles tentassem entrar lá outra vez que os ajudasse, permitindo-lhes regressar ou dando-lhes alguns alimentos. Face á recusa pronta de Adão, Eva acabou por ir sozinha e, com muita insistência, conseguiu que o querubim lhes desse alguns alimentos. Compadecendo-se deles ou por outro motivo, mandou que, á noite, acendessem uma fogueira, que seria vista por caravanas que costumavam passar por ali e, certamente, iriam ajudá-los, dando-lhes trabalho e abrigo.

Graças a este querubim, que, como o escritor afirma, foi mais cristão que o seu Deus, puderam recomeçar a sua vida, estabelecendo-se numa aldeia e trabalhando como agricultores. Tiveram três filhos, entre eles Abel e Caim.

Apesar de os irmãos a princípio serem amigos inseparáveis, ao longo da sua juventude, a sua relação deteriorou-se. Quando queimavam animais para os oferecer ao Senhor, o fumo da fogueira de Abel subia direitinho em direcção ao Céu, prova de que Deus aceitava o seu sacrifício, enquanto o fumo da fogueira de Caim se dispersava a poucos metros do solo. Ao invés de consolar o irmão, Abel troçava dele, humilhando-o vezes sem conta, o que levou a que um dia Caim o atraísse para fora da aldeia e aí o matasse. Acto contínuo, o Senhor apareceu e censurou Caim, ameaçando-o de o condenar à morte. Caim acusou o Senhor de também ser culpado da morte de Abel, provocando a sua ira ao não aceitar as suas oferendas e tendo aparecido apenas depois de Abel estar morte, podendo impedir que este morresse se tivesse aparecido um pouco antes. Então, o Senhor condenou Caim a vaguear pelo mundo durante toda a sua vida, mandando-o abandonar a aldeia imediatamente.

Nesta permanente viagem, Caim atravessa não só locais, mas também vários tempos diferentes, peregrinando, de uma forma que escapa à nossa compreensão e à de ele próprio, através do passado e do futuro, ou, já que isto é tecnicamente impossível, através de vários presentes, passados em alturas diferentes. Vive um romance tórrido, quase chega a ser rei de uma pequena mas rica cidade e, sobretudo, espanta-se com as atitudes do senhor Deus, que muitos veneram, mas que Caim sabe ser capaz de uma crueldade quase gratuita, como ter ordenado a um pai que matasse o seu filho ou ter dizimado populações inteiras.

Esta foi uma obra que eu gostei de ler por vários motivos. Antes de mais, permitiu-me conhecer alguns aspectos do Velho Testamento que eu ouvia falar mas que desconhecia quase por completo. Além disso, é sempre um prazer ler Saramago e este livro não foge á regra. A sua linguagem irónica e divertida fez com que o lesse quase todo com um sorriso nos lábios. Por outro lado, a história, propriamente dita, de Caim é muito interessante e tem um final surpreendente, que eu adorei.

Numa perspectiva mais alargada, penso que este livro poderá ser uma alegoria do combate entre os fanáticos religiosos e os que contra as suas injustiças lutam, em que sempre há vítimas de ambas as partes e em que todos acabam por cometer erros que comprometem a vida de inocentes.

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