Sobre o Autor:
David Soares é autor dos romances “O Evangelho do Enforcado”, que conta a história dos famosos painéis de São Vicente de Fora, “Lisboa Triunfante”, uma história mágica sobre a capital portuguesa, e “A Conspiração dos Antepassados”, sobre o encontro do poeta Fernando Pessoa com o mago inglês Aleister Crowley (Saída de Emergência: 2010, 2008 e 2007).
Publicou três livros de contos, cinco álbuns de banda desenhada e um livro de ensaio literário sobre banda desenhada. Na sua carreira como autor de banda desenhada (publicado em França e em Espanha), foi premiado com dois troféus para Melhor Argumentista Nacional e uma bolsa de criação literária, atribuída pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas e pelo Ministério da Cultura.
Colabora, regularmente, em diversas antologias literárias, relacionadas com o género Fantástico e é considerado pela crítica especializada nesse género como sendo o melhor autor português de literatura fantástica. Em 2009, viu um excerto do seu romance “Lisboa Triunfante” ser publicado na revista literária polaca Lampa, uma edição do Instituto Camões na Polónia, junto de excertos de outros autores portugueses como José Saramago, Gonçalo M. Tavares e Lídia Jorge.
Também trabalha como tradutor, tendo assegurado a tradução de obras de autores como Alan Moore, Jack Dann e Philip K. Dick. Escreve quase todos os dias no weblog:
cadernosdedaath.blogspot.com.
Entrevista:
Começaste a escrever com que idade?
Comecei a escrever e a desenhar muito cedo. Antes de ir para a escola já sabia ler e fazia os meus “livros” de banda desenhada, em folhas soltas, com histórias inspiradas nos modelos da Disney. Aprendi a ler sozinho num almanaque especial do Pato Donald, com a história “Donald e as Formigas”, por isso sempre senti que o meu caminho passava pela escrita e pelo desenho. Nunca tive dificuldade em criar histórias e, felizmente, continuo assim.
Como surgiu o sonho de escrever um livro?
Escrever e publicar nunca foi um sonho, sempre foi um objectivo. Tive a sorte de crescer rodeado de livros e de histórias, num ambiente familiar que valorizava a cultura, e nunca me passou pela cabeça que o meu caminho fosse para ser feito numa área que nada tivesse a ver com esses elementos. Em suma, desde muito cedo que tive a noção claríssima de que aquilo que eu queria fazer quando fosse mais velho passava por uma intervenção no mundo da narrativa.
Foi fácil lançares-te no mundo literário?
Entre 1998 e 1999, antes de iniciar a minha carreira de autor publicado, tinha duas metas a alcançar: publicar prosa e publicar banda desenhada. Nunca encontrei nenhum desequilíbrio entre ambas as áreas, porque, ao contrário daquilo que diz a opinião popular, a banda desenhada não é um nenhum género: é uma linguagem que pertence ao espectro das linguagens narrativas. Enviei cópias de um livro de contos para diversas editoras e ele foi recusado por todas, embora duas me tivessem dito ao telefone que com um trabalho de revisão (hoje chamar-lhe-ia “edição”, no sentido que lhe dá o mercado norte-americano, por exemplo) seriam capazes de editá-lo. Senti-me feliz nesse momento: foi aí que tive a real percepção de que era um autor publicável e isso foi importante para que não desistisse. Quanto à banda desenhada, a dada altura tive de criar a minha própria editora para publicar os meus trabalhos, porque aquilo que eu estava a desenvolver não tinha nenhuns paralelos com o que andava a ser lançado no momento e nenhum editor de BD quis arriscar-se com o meu trabalho: histórias de horror. Ainda bem que o fiz, porque iniciei uma excelente carreira de autor de BD, na qual ganhei dois prémios para Melhor Argumentista, publiquei um álbum em França e ganhei uma bolsa de criação literária atribuída pelo IPLB/Ministério da Cultura. A minha carreira como romancista iniciou-se da forma mais natural possível: sempre andei atento ao mercado e quando percebi que existia uma nova editora que estava a publicar livros de literatura fantástica, enviei-lhe um livro de contos de horror para apreciação. A editora é a Saída de Emergência, o livro de contos é “Os Ossos do Arco-Íris” e o resto, como se diz, é história. Iniciei uma parceria com ela, que já conta com três romances, dois livros de contos e participações em várias antologias fantásticas.
Onde vais buscar a tua inspiração?
A todo o lado. Aos livros que leio, aos locais que visito, às pessoas que conheço. Ando sempre com um bloco de notas para apontar ideias, o que é essencial, porque infelizmente a minha memória já não é tão boa quanto era. Mas ter ideias é algo que é sobrevalorizado… Eu tenho dezenas de ideias por dia e a maioria não vale um chavo, porque não são ideias capazes de serem transformadas numa história interessante. O que vale é ter uma excelente ideia, ou duas ou três excelentes ideias, e cruzá-las de um modo único. Acho que quanto mais um autor absorve, melhor, porque não se pode cair na inércia. Mas também acho que isso só não chega: é mesmo preciso ter talento. Agora está na moda dizer-se que o talento não interessa nada, que aquilo que conta é o trabalho e que se houver trabalho chega-se onde se quer. Isso é falso. O trabalho é preciso, como é óbvio, porque sem ele as ideias não passam de quimeras, mas sem talento?... Sem talento não se faz nada que valha a pena. Ou se tem ou não se tem; e quem não tem, pode matar-se a trabalhar que nunca será tão bom como aqueles que têm. Só que dizer-se isto não é popular.
Como é o teu processo criativo? Tens algum ritual?
Não tenho rituais nenhuns. Decido que quero escrever sobre um determinado assunto e tento ler tudo o que encontro sobre ele. Em essência, tenho uma ideia, estudo os temas de que fala essa ideia e depois escrevo. Sou incapaz de escrever sobre um assunto sem ter aprendido sobre ele tudo o que me for possível, porque respeito o meu trabalho e levo-o a sério. Um escritor tem a obrigação de ser erudito e de ser melhor a escrever – e a falar, já agora – do quem não é escritor. Se não for assim, não vale a pena, não é verdade? Um escritor trabalha com palavras, com ideias, com o conhecimento… Não há nada mais constrangedor que estar a ouvir um escritor a falar e começarmos a duvidar se foi mesmo ele que escreveu o seu livro, porque manifesta uma pobreza de ideias e vocabulário que é quase embaraçosa.
Quais são as tuas referências literárias?
Com toda a sinceridade, nunca sei o que responder quando me perguntam isso, porque como leio tanta coisa, torna-se complicado escolher seja o que for. Existem autores de que gosto muito e, por regra geral, leio tudo o que eles escrevem. Até agora, o melhor livro que li foi sem dúvida “Darconville’s Cat” de Alexander Theroux. É uma obra-prima absoluta – e tão superior que é quase criminoso não ser mais conhecida. E lida!... A parte do “lida” é, com efeito, muito importante. Penso que ler “Darconville’s Cat” devia ser obrigatório para os candidatos a escritores, porque se eles ainda acharem que tem talento para a escrita depois de lerem esse monumento, então tem que se lhes tirar o chapéu, porque é um romance que põe os escritores a bater os dentes de medo: se passarem essa prova, estão preparados para passar tudo.
Qual o livro que mais te marcou? E porquê?
Neste momento não sou capaz de escolher nenhum livro que me tenha marcado.
Qual a tua citação preferida?
Neste momento, a minha citação preferida é uma frase do Léon Bloy, no livro “Histórias Desagradáveis”, que é a seguinte: «O meu amor por ti tem tenazes de caranguejo». Acho que é a premissa ideal daquilo que a ficção de horror deve ser.
Qual foi o último livro que leste?
Foi o “Tender Morsels” da Margo Lanagan.
O teu percurso neste mundo conta com romances, contos e até banda desenhada. Em que estilo gostas mais de escrever? E porquê?
Gosto de escrever em todas essas linguagens. Quando as histórias nascem na minha cabeça, já o fazem com um ADN específico: já são romances ou contos ou bandas desenhadas. Elas não se transformam. Se tenho uma ideia para um romance, ela não vai transformar-se numa ideia para um conto ou para uma banda desenhada. Como já disse, são todas linguagens narrativas e aquilo que se desenvolve com uma delas acaba sempre por dar referências preciosas para serem aplicadas em outra. Leio os meus trabalhos em voz alta, por exemplo, para perceber a musicalidade e o ritmo do texto, porque isso para mim é importante. Gosto de textos eufónicos, de juntar palavras que dão harmonias inesperadas. Para mim, uma das palavras que melhor soa em português é celofane, que vem do francês “cellophane” e que significa “translúcido”, mas no sentido de “translucidez que aparece” ou, como eu gosto de entendê-la, no sentido de epiderme espectral. Depois, gosto de palavras menos usuais, como epentético, tremebundo, palanfrório, mesofleu… Uma das minhas paixões é a etimologia: a origem e o significado das palavras é fundamental.
O que significa para ti seres considerado o melhor autor português de literatura fantástica?
Significa que o trabalho que tenho vindo a desenvolver foi bem feito e isso é recompensador. Tenho sempre o objectivo de escrever livros que não me envergonhem e que me dêem gozo revisitar. Isto conjuga-se com aquilo que disse sobre levar o meu trabalho a sério. Nunca entregarei um livro “mais ou menos” ao meu editor: entregar-lhe-ei sempre o melhor que puder fazer.
O teu romance “Lisboa Triunfante” conta-nos uma história mágica sobre a capital portuguesa, que chega mesmo a ser tratada como uma personagem do próprio livro. Sendo que já não é a primeira vez que Lisboa serve de mote a um livro teu. Donde vem esta paixão por Lisboa?
Em primeiro lugar, vem da vontade de conhecer bem a cidade onde vivo. Acho que quando se vive num determinado sítio, que ainda por cima possui uma história riquíssima, deve-se conhecê-lo bem. Com efeito, “Lisboa Triunfante” é uma história mágica sobre Lisboa, desde as suas origens pré-históricas até ao presente, mas relaciona-se com mitos e histórias que pertencem à cultura ocidental e até global. É um livro ecuménico, apesar da tónica ser colocada, como o título indica, em Lisboa. Existem muitas noções erradas sobre a cidade e nem sequer me refiro, em exclusivo, à sua história, mas até à orografia e toponímia lisbonenses. Quantos habitantes de Lisboa saberão que a Serra de Monsanto é um antiquíssimo vulcão extinto? Ou que o ponto mais alto da malha urbana da cidade é o último andar de um prédio no bairro de Campolide e não o Castelo de São Jorge? Que no sítio por onde hoje podemos passear na Rua Augusta existia um rio a céu aberto, nos tempos da ocupação romana, que corria até à actual Praça da Figueira, bifurcando-se na direcção das Portas de Santo Antão e da actual Estação de caminhos-de-ferro do Rossio? Que em certas caves dos edifícios adjacentes ao Campo das Cebolas se pode ver, ainda, os aros de ferro onde eram amarradas as embarcações que aportavam no Tejo, na altura em que o rio se encostava às muralhas? Quanto mais se estuda uma cidade, mais se torna impossível olhá-la da mesma maneira que um transeunte comum. Aliás, quando passeio a pé por Lisboa gosto de olhar para os sítios e construir na minha cabeça o aspecto que eles deveriam ter em determinado momento da nossa história.
Nesta sequência de ideias, não resisto a perguntar-te: qual é para ti o local mais mágico de Lisboa?
Eu vejo a cidade como um todo, por isso não é fácil responder a essa pergunta… Há gente que mora em Lisboa desde que nasceu e poucas vezes saiu do bairro onde vive, o que é uma tristeza. Também conheço quem acha que Santos, Alcântara e Belém não são partes de Lisboa... Eu acho que Lisboa é toda mágica. Mesmo as áreas mais recentes, porque, lá está, o terreno onde se constrói o novo é antigo e tem muitas coisas para nos contar. A ter que escolher uma área, em particular, escolho o bairro de Alcântara, por razões emocionais. E “mágicas”, também: é um bairro para o qual eu sou constantemente atirado, em muitas etapas da minha vida. Posso ausentar-me durante uns tempos, pelas mais variadas razões, mas acabo sempre por voltar para ele. De há uns anos para cá é, também, o bairro onde moro e é um privilégio poder sair de casa e estar a dez minutos a pé do Mosteiro dos Jerónimos, por exemplo. Basta-me olhar para esse edifício para que um dia mau se transforme logo num dia melhor. Estar perto da história é muito importante para mim. Tanto a que vem nos livros, como aquela que se pode tocar. Também gosto muito do bairro de Campolide, porque é a zona mais alta da cidade, excepto Monsanto, claro. Uma vez, fiz um mapa de Lisboa segundo o modelo da Árvore da Vida cabalística e Campolide equivalia a Kether, a Coroa, a sefira mais alta desse modelo mágico do universo e da qual emanam todas as outras dez sefiras (dimensões), contando com Daath, que é invisível. E é no bairro mais alto da cidade, precisamente, que se pode encontrar um enorme zero: está esculpido em baixo-relevo num dos pilares do Arco do Carvalhão, no ponto em que a Rua do Arco do Carvalhão se separa do Alto do Carvalhão. Um dos significados do zero é o de ser um ponto de partida, um ponto do qual emanam todos os outros pontos seguintes.
Como foi veres um excerto do teu romance “Lisboa Triunfante” ser publicado na revista literária polaca Lampa? É para ti um sonho veres as tuas obras publicadas além-fronteiras?
Mais uma vez, não é um sonho: é um objectivo. Estou a trabalhar para que isso aconteça.
Se estivesses de escolher uma banda sonora para acompanhar a leitura de “Lisboa Triufante” qual seria?
A peça “4’33” de John Cage, em loop, até que a leitura terminasse.
Na tua obra “A Conspiração dos Antepassados”, uma das personagens principais é o poeta Fernando Pessoa. O que te levou a escrever sobre este poeta?
A vontade de escrever sobre um Pessoa mais homem do que personagem éterea. E também, tal como ele, de me encontrar com o verdadeiro Aleister Crowley, que era uma figura muito mais luminosa do que aquilo que se possa pensar. De me deslumbrar, em definitivo, com a obra magna de Francisco D’Ollanda, a nossa mente renascentista mais brilhante e que, infelizmente, é quase um desconhecido entre nós. Se “A Conspiração dos Antepassados” fez com que um único leitor fosse à procura de quem foi Francisco D’Ollanda, essa é uma grande vitória.
De todos os teus livros, com qual te identificas mais?
O preferido é sempre o mais recente, mas identifico-me com todos, até porque tenho vindo a escrevê-los de forma a que as histórias façam todas parte do mesmo universo ficcional. Quem ler “Lisboa Triunfante” vai descobrir referências a “A Conspiração dos Antepassados”, assim como “O Evangelho do Enforcado” contém um significativo desenvolvimento sobre um assunto que faz parte de “A Conspiração dos Antepassados” e um final que faz a ponte para “Lisboa Triunfante”. Também coloco referências aos meus contos. Desde “Os Ossos do Arco-Íris” que as minhas histórias, sejam contos ou romances, se passam no mesmo mundo.
Se te tivesses de definir enquanto escritor, como o farias?
Sou um escritor de literatura fantástica, cujos romances meticulosos e complexos misturam horror, história e hermetismo. Desde as publicações dos meus fanzines de banda desenhada até à publicação de “O Evangelho do Enforcado” que nunca deixei de ser um autor de ficção de horror: a minha percepção sobre o que o horror deve ser é que é mais completa e erudita do que aquilo que a maioria dos produtos de entretenimento que surgem na nossa praça quase todos os dias deixa adivinhar. Gosto de pensar que quando os leitores vêem o meu nome na capa de um livro já sabem que esse título os vai levar numa viagem negra e inesquecível. Sou um escritor em diálogo aberto com a imaginação: nunca tive dificuldade nenhuma em criar mundos e é isso que vou continuar a fazer.
Ouvimos dizer que te encontras presentemente com mais um projecto em mãos. Queres nos desvendar um pouco sobre a história?
Tenho vários projectos, um deles é um novo romance, mas ainda é cedo para falar sobre ele. Mas em Novembro, no próximo Fórum Fantástico, vai ser apresentado o meu novo livro de contos, que se intitula “A Luz Miserável”. Tenho, também em desenvolvimento, dois novos álbuns de banda desenhada, escritos por mim e desenhados por diferentes artistas, que serão editados no próximo ano.
Quais são os teus planos e objectivos para o futuro?
Ser lido pelo maior número possível de leitores e continuar a escrever sempre literatura fantástica de qualidade.
O que dirias a alguém que sonha em estrear-se neste mundo?
A maioria das pessoas é infeliz porque não tem consciência das suas limitações e insiste em querer medrar em terrenos para os quais não tem capacidades. E não saber escrever não é o fim do mundo… Há muitas outras coisas que se pode fazer. Aliás, de maus escritores já está o mercado saturado, não são precisos mais!... Por isso, quem acha que quer fazer carreira nas letras tem que ter mesmo a certeza de que possui algo para oferecer, porque se for para escrever fan fictions dos seus livros de estimação, então não vale a pena. Os escritores, ao contrário dos desenhadores, não precisam de aprender a “soltar a mão”: precisam de aprender a “soltar a cabeça” e isso ou se consegue ou não se consegue, não há meio-termo. É preciso acabar com a ideia de que o escritor é uma pessoa normal. Nenhum artista, se o for a sério, é uma pessoa normal, porque se não visse o mundo de maneira anormal não poderia criar nada de interessante, de genuíno. O normal veste fato de treino e vai ver os jogos de futebol ao fim de semana. O normal tem fobia daquilo que é heterogéneo. Enquanto criador, eu não estou de maneira nenhuma interessado no normal.
1 comentário:
Gostei muito de ler a entrevista, que foca vários pontos interessantes sobre a obra e escrita do autor.
Mas não concordo muito com o que diz na última questão, pois embora concorde que os escritores não pensam da mesma maneira nem vem o mundo da mesma maneira, não acredito que não possam ser "normais" dentro de uma certa anormalidade que lhe sé sempre característica.
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