23 de dezembro de 2020

Opinião – “Crash” de David Cronenberg

Sinopse

"CRASH" é um dos maiores êxitos da carreira de David Cronenberg e, também, um dos seus filmes mais controversos e polémicos. Adaptado do romance de J.G. Ballard, “CRASH” é um filme demencial sobre o fascínio do sexo e da morte sobre rodas, uma macabra visão sobre a combinação entre erotismo e mutilação, autodestruição calculada e desejo sexual, morte violenta e acidentes rodoviários.

James Ballard (James Spader), um produtor de filmes publicitários, tem um grave acidente de viação ao colidir com outro automóvel, que resulta na morte do outro condutor e deixa a mulher dele, ferida. No hospital, Ballard perde-se e volta a encontrar Helen Remington (Holly Hunter), a viúva da vítima mortal do acidente. Na sua companhia conhece Vaughan (Elias Koteas), um cientista e fotógrafo fascinado pela beleza erótica dos ferimentos e das mutilações originadas por acidentes de viação. Ballard começa por se sentir curioso em relação a Vaughan e às suas ideias de recriar acidentes célebres, como o que vitimou James Dean. E, lentamente deixa-se contagiar pelo erotismo que emerge da insólita combinação.

Opinião por Artur Neves

Em 1996 este foi o filme choque do ano que levantou grande polémica no Reino Unido tendo sido objeto de análise pelo conselho de Westminster que emitiu um édito solene proibindo a sua exibição nos cinema como proteção para os bons costumes, cujos guardiões se sentiram atingidos nessa época com tanta exibição sexual associada ao erotismo provocado por um acidente automóvel. Basicamente após um acidente com feridos e eventualmente mortos, na opinião do realizador David Cronenberg e segundo a prosa macabra de J.G. Ballard no seu romance “Crash”, original de 1973, com uma história sobre uma parafilia designada por sinforofilia, (fetichismo sexual em acidentes de automóvel) em que os sobreviventes são assaltados por um erotismo avassalador que os convida à prática sexual imediata, até junto aos destroços do carro sinistrado como mostram as últimas imagens deste filme.

Vinte e quatro anos depois surge-nos esta versão “remasterizada” para alta definição (1080p) e 4K (2160p) UHD com HDR (High Dynamic Range) supervisionadas por Cronenberg e pelo diretor de fotografia Peter Suschitzky que nos garante fidelidade ao original e que tem como vantagem clarear muitas das cenas que foram filmadas à noite e que se apresentavam muito escuras. O upscaling deste filme revelou-se uma boa solução acentuando os espaços menos escuros mas sobretudo valorizando os espaços internos, opressivos e apertados dos carros sinistrados onde se passa muita da ação da história, permitindo ao espectador uma visão mais nítida do seu interior.

A história está suficientemente descrita na sinopse pelo que não irei acrescentar mais nada, exceto que a sua sequência não é muito linear privilegiando-se a exibição das cenas que causam impacto no espectador em vez da construção da relação que as suporta. O filme pretendia quebrar os tabus ainda vigentes na época mostrando inconformismo perante comportamentos e crenças normativas que limitavam a liberdade individual mutuamente aceite. Crash foi feito com a nítida intenção de ser polémico, de chocar de frente com a generalizada hipocrisia das crenças sociais e religiosas que conduzem à castração da líbido e à normalização e controlo dos comportamentos humanos.

Cronenberg filma a história sem valorizar muito o ambiente em que ela se desenrola, a cidade é apenas o lugar, um labirinto de cimento e asfalto que se sobrepõe à empatia e ao contacto humano e confere palco ao acidente que potencia o lado primitivo e carnal das personagens que na história levam vidas desinteressantes e paradas, sem interesses para lá da sua fixação obsessiva no desastre donde retiram toda a sua humanidade. O desastre, o choque entre os automóveis funciona tanto como o evento nocivo resultante, como a metáfora que acorda os personagens e os retira do marasmo das suas vidas vazias porque é só para aquilo que eles existem, para o sexo, para a partilha derradeira dos seus corpos, depois de mutilados pelo acidente ou pelo choque deliberadamente provocado donde resulta esta derradeira comunhão.

A narrativa é circular, centrada no sexo quase explícito, embora sem nunca ser pornográfico, o filme repete-se das formas mais esdruxulas de sexualidade humana das quais destaco o personagem de Gabrielle (Rosanna Arquette), uma mulher de porte atraente mas com ambas as pernas suportadas por um aparelho que forma um exosqueleto que lhe permite a locomoção, vestida com um fato de cabedal rígido que serve de suporte ao tórax. Apesar das dores que deve sentir por todo o corpo e de cicatrizes visíveis nas pernas não perde o desejo sexual nem a apetência pelo desastre.

Quando estreou em Cannes e desde logo polémico, embora tendo ganho o Prémio Especial do Júri pela ousadia da sua originalidade, “Crash” ganhou aquela aura do extraordinário e do diferente por abordar as relações humanas de uma forma tão violentamente inquietante que se torna hipnotizante. Não nos seduz mas questiona-nos na nossa humanidade onde não cabe a indiferença. Deve ser visto pelo menos uma vez na vida e estará disponível a partir de 7 de Janeiro nos cinemas.

Classificação: 7 numa escala de 10



 

21 de dezembro de 2020

Opinião – “Tesla” de Michael Almereyda

Sinopse

Nikola Tesla (Ethan Hawke), o enigmático pioneiro da ciência da eletricidade, é um imigrante nascido numa pequena aldeia no que agora é a Croácia. Orgulhoso, genial e socialmente desajustado, Tesla é um funcionário promissor na Thomas Edison’s Machine Works que não consegue interessar Edison (Kyle MacLachlan) no seu revolucionário motor de corrente alternada. O fim da relação de Tesla com Edison inicia uma rivalidade duradoura entre ambos. A procura de fundos de Tesla leva-o a George Westinghouse (Jim Gaffigan), outro poderoso nome na indústria que, com sucesso, financia e promove o sistema elétrico inovador de Tesla. Mas o impaciente inventor já está a planear métodos inéditos de transmitir luz, eletricidade e informação sem fios por todo o mundo. Trabalhando num laboratório a céu aberto no Colorado, Tesla transmite raios da terra para o céu e ousa aplicar as suas descobertas a um sistema sem fios global, um projeto de alto risco apoiado por J. P. Morgan (Donnie Keshawarz). Os seus progressos tecnológicos acabariam por definir e a moldar o mundo moderno.

Opinião por Artur Neves

Desde Outubro de 2019, data de estreia em Portugal do filme; “Guerra das Correntes”, já comentada neste blogue, que eu esperava por um filme sobre Nikola Tesla, para repor a verdade sobre os projetos e o desenvolvimento dos meios de utilização da eletricidade ao serviço da humanidade.

No filme “Guerra das Correntes” aborda-se a questão do advento da eletricidade do ponto de vista da iluminação, das lâmpadas elétricas desenvolvidas por Thomas Alva Edison e da sua fidelização absoluta à corrente contínua produzida através de geradores eletromagnéticos que possuíam um dispositivo comutador entre as bobinas, o coletor e as escovas, que permitiam “transformar” a corrente alternada produzida naturalmente pela máquina, em corrente pulsatória designada por Edison como contínua (DC direct corrent). Tesla, imigrante nos USA, trabalhador da empresa de Edison, (tal como referido na sinopse) mais esclarecido e com espírito mais científico do que Edison, que se assumia como cavalheiro de indústria, frequentando o círculo social mais destacado e endinheirado da época, desprezava a ideia de Tesla e da sua corrente alternada (AC alternate corrent) desqualificando e impedindo o investimento ao seu projeto de motor elétrico, que se viria a desenvolver e implantar em toda a indústria mundial até aos dias de hoje.

Tesla era de facto um homem socialmente apagado. A sua demasiada concentração nos problemas técnicos e nos seus estudos matemáticos do eletromagnetismo, ao qual deu um impulso decisivo para a sua compreensão, afastava-o dos salões das festas e do convívio sociais que poderiam financiar a concretização das suas ideias. Do ponto de vista da inovação tecnológica do início do século XX foi muito mais importante e fundamental do que Edison e este filme pretende ilustrar esse facto.

O filme em si não é particularmente generoso com Tesla, constituindo-se pela apresentação sequencial de um conjunto de cenas que ilustram o comportamento e a vida de Tesla, mas sem contarem uma história nos moldes formais utilizados em biografias. A história é narrada por Anne Morgan (Eve Hewson), filha de J.P. Morgan na qualidade de benfeitora e amiga com conotações românticas, a quem ele expressa os seus projetos de transmissão de eletricidade sem fios para todo o universo beneficiando todos os povos mesmo os das regiões mais remotas. Anne aparece como a pessoa mais próxima de Tesla na sua época, bem como, sentada em frente de um computador a consultar e a comparar as citações sobre Edison e Tesla no Google, o que denota o caráter mais documental e menos romanceado deste filme.

Tesla fala-lhe das suas obsessões teóricas, das suas ponderações matemáticas sobre o universo, enquanto manifesta uma total negligencia pelas questões comerciais da sua atividade permitindo a monumental burla de George Westinghouse (Jim Gaffigan), que lhe compra e comercializa o seu sistema de AC e quando este começa a dar frutos, renegoceia o anterior contrato com ele roubando-lhe uma significativa riqueza que lhe era devida de acordo com o contrato anterior. Por outro lado, J.P. Morgan (Donnie Keshawarz), que numa primeira fase investe nos trabalhos de Tesla, condena-o ao colapso quando lhe corta o financiamento na sequência de falta de resultados no tempo estabelecido por ele.

Na Exposição Colombiana de 1893 em Chicago o mundo fica a conhecer Tesla e Anne Morgan pergunta-nos se o sucesso dele não teria sido maior se ele aceitasse ter ao seu lado alguém mais astuto e esclarecido para os negócios, em vez de a rejeitar como parceira e companheira de vida. Tesla porém não está virado para o amor e o filme mostra-nos a pureza da sua vida teórica e a exclusividade da sua tarefa científica que culmina pelo seu repúdio pelo prazer sexual.

A narração do filme por Anne chama-nos a atenção para a vida social de Edison em contraste com o voto de celibato de Tesla, seguindo as recomendações do seu conselheiro espiritual Swami Vivekananda (Jameal Ali), que o aconselha que; "a castidade é um caminho para a iluminação” e que um cientista só se deva casar com a sua ciência, caraterizando-o como ensimesmado, confinado em si próprio, que Michael Almereyda transpõe para o filme pela forma como realiza esta obra.

Deste modo o filme embarca por caminhos sinuosos e negócios de bastidores, oscilando entre a realidade monótona e a fantasia inspirada de um homem que foi importante para todo o desenvolvimento tecnológico que atualmente usufruímos. Não desilude, mas por vezes torna-se pouco compreensível, todavia reporta-se a uma personagem incontornável do século passado, a quem devemos muito e de quem merece ser conhecida a sua verdade. Interessante.

Tem data prevista de estreia nos cinemas a 7 de Janeiro.

Classificação: 6 numa escala de 10

 

18 de dezembro de 2020

Opinião – “O Amor é uma Aventura” de Dennis Dugan

Sinopse

Pouco depois de ter sido deixada pelo namorado, Jessie English, proprietária de uma florista, é contactada por uma cliente, Liz Rafferty, que lhe pede que organize o seu casamento, que acontecerá dentro de apenas oito dias. Sempre pronta para desafios, Jessie aceita planear o casamento de Liz e do noivo, Robert Barton, contratando para tal Lawrence Phillips (Jeremy Irons), o famoso fornecedor de caterings. Em plenos preparativos do banquete, um dos seus amigos de Lawrence marca-lhe um encontro com uma desconhecida, uma mulher chamada Sara (Diane Keaton) que vem a revelar-se cega.

O irmão de Robert, Jimmy Barton, inscreveu-se num concurso de encontros, devendo permanecer fisicamente ligado à sua parceira Svetlana o máximo de tempo possível de forma a ganharem um milhão de dólares. Entretanto, o Capitão Ritchie, comandante de um barco anfíbio, apaixonou-se por uma das clientes mas não sabe quem ela é ou onde encontrá-la. A única coisa que sabe sobre a rapariga é que ela tem um sapatinho de cristal tatuado no pescoço. Quando Gail Lovejoy, pivot do noticiário local, lhe pergunta se pode fazer uma peça sobre ele e o seu barco anfíbio, este decide que pode ser útil usar a exposição pública para encontrar a sua Cinderela.

À medida que todos estes personagens procuram o seu “final de conto de fadas” perfeito, eles vão descobrir que o amor é confuso, perturbador mas bonito.

Opinião por Artur Neves

O nome original deste filme é “Love, Weding & other Disasters” e está mais adequado á história que nos apresentam do que a uma hipotética aventura prometida no título português. Assim a “aventura” é na realidade um sucedâneo de desastres relacionados por Jessie English (Maggie Grace) aspirante a organizadora de eventos e de casamentos que logo nas primeiras imagens fica sem namorado, Eddie Stone (Dennis Dugan, o realizador) por tentar levá-lo a um salto de para quedas que o homem não queria mesmo fazer.

Se não é uma aventura é pelo menos uma festa, considerando a diversidade de pares que se formam durante a organização do primeiro evento de casamento que Jessie English se propõe realizar por recomendação de uma amiga, para o candidato a perfeito de Boston, Robert Barton (Dennis Staroselsky) com a sua noiva Liz (Caroline Portu) que difere com ele em tudo, ele é sóbrio, ela é divertida e moderna, ele fala preferencialmente de coisas sérias, ela só de trivialidades e de moda.

Na preparação de todos os arranjos necessários para a boda, surgem os outros pares que se vão formando pelas mais variadas razões, tais como, um guia turístico com uma passageira com uma tatuagem de um sapato no pescoço a que ele chamou de Cinderela e ficou siderado, um par formado num reality show televisivo, um músico da banda contratada por Jessie com ela própria e um conceituado organizador de eventos Lawrence Philips (Jeremy Irons) com Sara (Diane Keaton) que foram aproximados por um amigo comum num encontro às cegas. Às cegas mesmo, porque Sara é cega.

Na ligação das cenas temos um género de coro grego, interpretado por Elle King que com um violão, apoiada num banco de jardim de Boston, compõe versos aludindo ao romance em formação que acabámos de ver.

A história não é propriamente hilariante, mas é alegre e jovial, e embora se note alguma falta de sequência no enredo que nos faz pensar como é que Dennis Dugan, com uma carreira de cinema iniciada em 1971, ainda mostra alguma fragilidade no fecho das cenas e em algumas tomadas de vista não muito felizes para enquadrar o tema.

A surpresa reside na presença de Jeremy Irons e Diane Keaton em fim de carreira e sem nada para provar, como é que se meteram numa aventura destas (essa é que é uma aventura) corporizando um casal em que ele é tenso e careta e ela desempoeirada e liberal mas que interpretam cenas falhadas, tão batidas em comédia que já perderam a graça, embora seja de registar a cena em que Jeremy quer experienciar o que é ser cego e venda-se, saindo à rua com a ajuda de Keaton. No contexto é para mim a cena alta do filme.

Como disse anteriormente todo o filme é uma sucessão de desastres, uns mais forçados do que outros, mas o motivo, a busca do amor, a ligeireza dos diálogos e o bem estar que nos acompanha ao longo da história nesta quadra deste ano horribilis esbate alguns dos seus defeitos e torna-o agradável.

Classificação: 5 numa escala de 10

17 de dezembro de 2020

Opinião – “Im your Woman” de Julia Hart

Sinopse

Neste drama policial ambientado na década de 1970, uma mulher é forçada a fugir depois que seu marido trai seus parceiros, enviando-a com o seu bebé numa perigosa viagem de fuga sem destino fixo.

Opinião por Artur Neves

Como pode pensar-se pela sinopse o enredo deste filme é simples e direto, mas o seu verdadeiro mérito reside na forma como nos é contado tudo o que envolve esta mulher, Jean (Rachel Brosnahan) que a conhecemos em casa sozinha, até que que surge o marido, Eddie (Bill Heck) com uma criança ao colo e a deposita nos seus braços que a aceitam e abraçam com ar incrédulo e surpreendido. Percebe-se que são casados mas que a relação entre eles aparenta estar em “ponto morto” pelo acolhimento formal com que ela o recebe. Estamos em Pittsburgh, na década de 70, os modos dele são rudes e autoritários ao determinar o que ela tem de fazer a seguir, embora fiquemos a saber que anteriormente se apaixonaram, casaram e compraram aquela casa.

A partir daqui a história revela-se lentamente, contando-nos tudo o que temos de saber em cada situação chave, apresentando em primeiro lugar as consequências de eventos que não conhecemos e só posteriormente as causas que lhe deram origem. Eddie confirma-lhe que aquele é o bebé de ambos, ao que ela chocada, lhe pergunta o nome. Eddie entre o irritado e o ligeiramente ameaçador, responde-lhe sorrindo que essa será a sua tarefa, dar-lhe um nome por ser este o seu bebé. Entretanto somos informados que Jean já teve mais do que um aborto espontâneo e que ambos desistiram do sonho de ter um filho de sangue.

Jean escolhe o nome de Harry (Jameson Charles) para o bebé, apenas porque sim, enquanto se esforça por fazer dois ovos estrelados e uma torrada que se queima imprestavelmente, ao mesmo tempo que Eddie se reúne na sala de porta fechada com dois colegas sombrios. Todo o ambiente está carregado de tensão, o bebé chora copiosamente, ela mostra a sua total falta de jeito para a cozinha, que na moda dos anos 70 era pintada em cores fortes e com cores diferentes em cada parede, conferindo um aspeto quase surreal a toda a cena.

Com todas aquelas revelações de rompante, começamos a aceitar tudo como normal na esperança das explicações futuras, até à noite em que Eddy desaparece e um dos seus amigos bate à porta, entra em casa, mete $200 000 num saco e a manda sair rapidamente de casa com Cal (Arinzé Kene) que a espera no exterior com um carro para iniciarem a viagem de fuga que durará a maior parte dos 120 minutos de filme.

Julia Hart escreveu o argumento em conjunto com o seu marido Jordan Horowitz e ambos confirmam a sua ascendente carreira como cineastas com esta obra de suspense ligeiro (o suspense decorre das revelações de última hora que nos são prestadas) com diálogos simples mas concisos, numa história sinuosa que nos surpreende pela sua labiríntica construção, centrada no personagem de Jean, interpretado com segurança por Rachel Brosnahan que se apresenta em todo o filme à altura das circunstâncias que a história exige. Sóbria, determinada, bem adequada às exigências do personagem.

Outro tanto posso dizer de Teri (Marsha Stephanie Blake) como esposa de Cal, que entra na história e se torna em certa altura outra personagem central do processo de fuga de Jean, detentora do conhecimento de certas facetas totalmente desconhecidas de Jean que conduzem a múltiplos e definitivos desenvolvimentos na trapalhada criada por Eddy, que embora ausente não seixa de ser a causa última de todo aquele imbróglio. Teri é em última análise o despertar feminista e de tensão racial, em confronto com a passiva Jean, que por ignorância dos factos somente age em última instancia e desespero de causa.

“Im your Woman” (Eu sou a tua Mulher) pode ser visto na plataforma de streaming Amazon Prime Video, constituindo um thriller com laivos de noir dos anos 70, com boa aparência e história linear que nos surpreende até ao fim pela forma como é contada. Gostei e recomendo.

Classificação: 7 numa escala de 10

 

16 de dezembro de 2020

Opinião – “A Mulher que Fugiu” de Hong Sang-Soo

Sinopse

Durante uma viagem de negócios do marido, Gam-hee encontra três amigas. Visita as duas primeiras nas suas casas e a terceira encontra-a por acaso num cinema. Enquanto conversam amigavelmente, como sempre, várias correntes fluem acima e abaixo da superfície do mar.

Opinião por Artur Neves

Este é um filme de mulheres, sem história, apenas quatro mulheres com relações de amizade variáveis entre si que se encontram na sequência de Gam-hee (Min-hee Kim) ficar temporariamente sozinha como desde há cinco anos não se lembrava de ter estado.

Primeiro visita a sua amiga mais chegada, Su-young (Seon-mi Song) onde almoça com ela e com a outra amiga Young-ji (Eun-mi Lee) que faz o almoço e conversam as três sobre trivialidades da comida e da vida. Após a saída de Young-ji convive com Su-young, comenta sobre a sua vida de divorciada, sobre a casa que possui nos subúrbios de Seul, bem arranjada, confortável, num prédio moderno com todas as necessidades de que se pode lembrar. Confidencia-lhe também, que desde que casou com o seu marido nunca se tinham separado até agora, por declarada preferência deste em estar com ela todo o tempo enquanto ele desenvolvia a sua atividade literária de escritor e tradutor em casa.

Ela revela-nos e à amiga, não saber se aquilo é amor, ou o que é realmente, não quer pensar muito no assunto e não lhe tinha tocado se a amiga não lhe tivesse perguntado tão diretamente. Ambas continuam a conversar sobre assuntos quotidianos, sobre o estado em que Su-young se encontra, divorciada, sozinha, a tomar conta do seu jardim e sem outros desejos que não seja manter a sua situação inalterada, embora sinta alguma curiosidade pelo vizinho do 2º andar, também aparentemente sozinho, com quem se cruzou e falou com agrado no café local. Gam-hee passa a noite em casa da amiga que a acolhe agradavelmente.

“A mulher que fugiu” aparece nos diálogos entre as duas como sendo uma mulher da vizinhança que abandonou o filho e o marido sem motivo aparente, apenas porque não suportava mais a sua existência com a família que tinha criado e tinha optado por sair de casa para sítio incerto, desconhecido, que lhe permitisse uma existência anónima.

No dia seguinte Gam-hee despede-se da amiga e vai ao cinema onde encontra Young-soon (Young-hwa Seo) de que ficamos a saber pela conversa entre as duas, não ser propriamente uma amiga, mas antes a mulher que anos antes lhe tirou o namorado e casou com ele. Gam-hee não está zangada com ela e esse evento é já uma memória nebulosa e longínqua, todavia não sabe bem porque foi aquele cinema e ao bar do cinema, onde sabia ser inevitável encontrar-se com ela e possivelmente também com ele. De facto encontra-o nas traseiras fumando um cigarro, falam de trivialidades, não tocam no passado e despedem-se, Gam-hee sai do cinema, anda uns passos pela rua e volta para o cinema para acabar de ver o filme, cujas imagens na tela são as últimas deste filme.

Se alguma coisa nos mostra esta história (sem constituir realmente uma história mas antes o relato de um intervalo de tempo) é sobre a forma como determinadas ações da nossa vida não possuem uma razão explícita para serem executadas e se as fazemos, pode dever-se ao remorso de uma amizade abandonada, ao despeito de uma amor perdido, à curiosidade sobre um futuro que poderia ter sido o nosso, ou simplesmente, ao tédio de uma presença aliviada por uma viagem de negócios. O amor do outro nem sempre preenche o nosso vazio interior e a solidão pode significar uma independência e uma autonomia há muito desejada. Gam-hee deve ter percebido estas duas realidades simultaneamente, não sabemos se lhe dará o melhor dos usos.

Hong Sang-Soo, realizador coreano de 60 anos dirige o filme fluentemente, com diálogos simples mas claros, enquadramentos diretos aos personagens lineares que vivenciam as suas frustrações sem contaminação emocional. Todo o ambiente é sóbrio, sem exageros mas com a qualidade que qualificamos como inerente a uma vida normal. Não encanta, não arrebata, não nos envolve (até porque a língua não nos é familiar) mas é agradável de ser ver.

Classificação: 6 numa escala de 10

 

11 de dezembro de 2020

Opinião – “Primeiro Amor” de Takashi Miike

Sinopse

Durante uma noite em Tóquio, seguimos Leo, um jovem pugilista cuja sorte acabou, e que conhece o seu "primeiro amor", Mónica, uma acompanhante toxicodependente, mas ainda assim inocente. Mal sabe Leo, mas Mónica foi involuntariamente apanhada num esquema de tráfico de droga, e os dois vêm-se perseguidos por um polícia corrupto, um Yakuza, o seu Némesis, e uma assassina enviada pelas tríades chinesas. Os destinos de todos acabam por se interligar no estilo espetacular e anárquico de Miike.

Opinião por Artur Neves

Cada povo faz cinema de acordo com a sua cultura, escolhe os modos que julga mais apropriados para contar uma história, refletindo sempre nela as suas crenças, os seus hábitos generalizados de viver e de estar em sociedade, sejam histórias de amor ou de guerra. Veja-se por exemplo o oscarizado “Parasita” de 2019, passado numa família classe média alta, inclui todo o grotesco e surpreendente conteúdo de velhacaria e pobreza de espírito da classe baixa que se imiscui na casa da família, com permissão e anuência desta.

Do mesmo modo Takashi Miike, um respeitável realizador japonês de 60 anos feitos em Agosto passado, com uma experiência de carreira iniciada em 1991, apresenta-nos uma história de amor, de genuíno e inocente amor, contaminado por um ambiente insano, violento, esdrúxulo, onde nesta história, para abertura de conversa temos uma decapitação absurda após dois minutos de filme, que nos introduz no contexto de violência anárquica e sangrenta que se seguirá por toda a história que a sinopse se encarregou de resumir.

É mais um filme sem heróis em que os melhores se confundem com os piores, onde apenas se salvam os dois apaixonados acidentais que cimentam a sua relação em tempo de guerra, no meio de uma batalha entre as tríades da droga clandestina e a polícia corrupta, sempre pronta a suportar a ilegalidade quando isso lhe pode trazer benefícios monetários.

É uma história que reporta relações sem comprometimento, negócios sem ética, desprezo pelo próximo e muita, muita violência em todas as cenas, onde sobressai uma flor de estrumeira representada pelo amor de Leo (Masataka Kubota) pugilista revoltado pelo abandono dos pais que não conhece, com morte programada, acidentalmente apaixonado por Mónica (Sakurako Konishi) uma jovem viciada, com a cabeça transtornada pelas traumáticas visões do seu pai que a violava em casa e a entregou aos credores para trabalho sexual como pagamento das suas dívidas de jogo.

Como se pode inferir é tudo feio, desprezível e sangrento, salva-se a tenacidade de Leo que quer singrar de forma limpa através do pugilismo e do amor que despertou entre ele e Mónica, da forma mais estranha e perigosa, durante uma fuga que os leva a um armazém apinhado de produtos chineses que servirá de palco para o ponto alto do filme com elevado rácio de decapitações, cortes de membros e mortes sangrentas, decorrente da luta pela droga entre os membros da Yakuza e os seus rivais chineses.

O casal Leo e Mónica, embora estranho, mantém a emoção e a esperança suficientes para fazerem a história funcionar, exibindo uma entreajuda e uma doçura genuínas no meio do caos que nos é mostrado todo o tempo, querendo talvez dizer-nos que a violência de Miike é inventada e não impede que a vida normal flua ao som das cordas do violão de Kôji Endô e dos solos de saxofone que sublinham o humor dos personagens.

A espaços encontramo-nos com a placidez do amor, a vontade de viver e a brutalidade da morte e podemos imaginar que Takashi Miike está se divertindo enquanto nos faz contorcer com lutas escabrosas, introduz comédia que nos faz sorrir e lentamente vai puxando as cordas do coração numa melodia de amor a que nos agarramos para que tudo aquilo faça sentido.

É estranho… por isso mesmo merece ser visto, estreia em 17 de Dezembro

Classificação: 6 numa escala de 10

 

10 de dezembro de 2020

Opinião – “TENET” de Christopher Nolan

Sinopse

John David Washington (filho de Dezel Washington) é o novo protagonista no filme de ação e sci-fi de Christopher Nolan. Armado apenas com uma palavra – Tenet – e lutando pela sobrevivência do planeta, o protagonista viaja pelo mundo nebuloso da espionagem internacional numa missão que irá desvendar algo além do tempo real. Não se trata de uma viagem no tempo. Mas sim, uma inversão do tempo.

Opinião por Artur Neves

Muito se tem falado sobre a ininteligibilidade deste filme que reúne os mais fervorosos adeptos dos efeitos especiais e os mais acérrimos detratores sobre uma história de ficção científica (segundo a classificação oficial) que exige para a sua compreensão o conhecimento mais ou menos seguro de uma grandeza física, a Entropia, que apesar de ser um conceito usado no léxico comum não é integralmente conhecido por quem o usa e por quem o ouve. Na Internet também pululam muitas interpretações deste filme, algumas das quais tentando explicar cena a cena mas que falham nos seus objetivos, considerando que apenas descrevem o que se vê na tela, mas não transmitem o conhecimento de base para entender essa descrição. É essa tarefa que eu me proponho tentar nesta crónica, antes de falar sobre o filme em si mesmo.

Em jeito de postulado e como definição, digo que; Entropia é uma grandeza termodinâmica que mede o grau de liberdade molecular dum sistema. Antes de avançar quero também deixar claro que neste contexto; sistema é todo o corpo completo e inteiro que por si só constitua uma identidade molecular formada por moléculas e estas por átomos, como aliás acontece com toda a matéria sólida, líquida ou gasosa do planeta, independentemente de ser um elemento puro ou um composto.

Para ilustrar esta definição sugiro que se considerarmos um cubo de gelo, onde as moléculas da água que o constituem estão “presas” numa determinada forma física, elas vão ganhando “liberdade” à medida que o gelo se derrete, se estiver à temperatura ambiente. A grandeza física que mede o acréscimo de liberdade dessas moléculas com o degelo é a Entropia. Observando que o evento que provocou a transformação em água líquida do cubo de gelo, foi a subida de temperatura do ambiente, relativamente à temperatura inicial do cubo de gelo podemos inferir que esta grandeza mede-se em unidades de energia (calor) e de temperatura. Na realidade a Entropia mede-se em [J/ºK] [Joules (energia)/grau Kelvin]. Se continuarmos a aquecer a água que resultou do degelo ela transforma-se em vapor, logo conferindo uma liberdade ainda maior às moléculas “aprisionadas” no cubo de gelo e contendo um valor ainda maior de Entropia do que a que possuía quando se encontrava no estado de água líquida.

Esta noção de Entropia na forma restrita, pode agora ser generalizada para um conceito mais lato de desorganização total, de caos. Repare-se que as moléculas de água “aprisionadas” no cubo de gelo, quando transformadas em vapor, misturam-se na atmosfera e sem uma ação externa definida, nunca mais poderão voltar à forma original do cubo de gelo inicialmente considerado, É a utilização do conceito generalizado de Entropia que está na base deste filme e que pode ser complementado com o exemplo a seguir apresentado.

Consideremos agora a porta principal de um centro comercial, durante a quadra natalícia (sem o risco da pandemia) em que milhares de pessoas se dirigem para o seu interior no dia da Black Friday. Na entrada foram depositados no chão, três pequenos montículos de areia com cores diferentes; azul, vermelho e amarelo, um em cada vértice de um pequeno triângulo equilátero, que constitui o nosso sistema. Como estão no solo, são pequenos e estão longe das preocupações da generalidade das pessoas que atravessam a entrada do centro comercial é fácil aceitar que não os vejam e que dentro de poucos minutos as areias coloridas ficam misturadas entre si. A contínua passagem de pessoas pela entrada só vai contribuindo para a progressiva destruição dos montículos, mistura de cores e dispersão das próprias areias que se espalharão por todo o passeio da entrada, introduzindo assim a desagregação do nosso sistema inicial e conduzindo-o à total desorganização que culmina no caos. Embora sem calor nem temperatura é apetecível aceitar que a Entropia também avalia a degradação deste sistema e nos indica o estado de caos em que ele se encontra. Generalizando ainda mais esta noção podemos observar que tudo no nosso universo possui este comportamento embora com caraterísticas próprias do assunto ou material com que estamos a lidar. Tudo o que existe no universo tem tendência para a desorganização, pelo que podemos postular; O Universo é um sistema de Entropia crescente.

Como vimos a degradação dos nossos sistemas, qualquer deles, o cubo de gelo ou os montículos de areia colorida foi conduzida segundo uma direção do tempo, de mais cedo para mais tarde, segundo a direção do tempo que nos é familiar, de antes para depois, do presente para o futuro, que se torna presente no tempo em que o observamos e fica a ser passado quando esperamos um novo futuro. É neste intervalo específico que se insere o substrato teórico que justifica e torna compreensível; TENET.

Aceitando pelo segundo exemplo, que o contínuo crescimento da Entropia se verifica no sentido da evolução do tempo é fácil concluir que o decréscimo da Entropia só é possível na inversão do sentido do tempo, como aliás está referido na sinopse, só que, sem qualquer explicação associada.

Voltando agora ao filme começo por dizer que TENET é um palíndromo, uma palavra que se lê da esquerda para a direita e inversamente, da mesma maneira, que pertence a uma estrutura composta por mais quatro palavras que são: SATOR, AREPO, OPERA e ROTAS. Compondo estas cinco palavras numa estrutura quadrada denominada por “Quadrado Sator” temos um “quadrado mágico” que é visível em múltiplos achados arqueológicos encontrados em diversas partes da Europa em diferentes épocas e que até agora não foi possível estabelecer um significado concreto que justificasse a sua origem ou a sua razão de ser. (para os mais curiosos outras informações estão disponíveis na Wikipédia)

Porém, a sua utilização neste filme pretende conferir-lhe uma conotação cabalística, considerando que SATOR é o nome do arquivilão da história, o primeiro movimento do filme decorre num assalto à OPERA de Kiev por um grupo de terroristas, AREPO é o nome do falsificador do Goya oferecido à ex-mulher de Sator, Kat (a belíssima Elizabeth Debicki) ROTAS Security é, no filme, a empresa de segurança do aeroporto de Oslo e TENET corporiza uma organização secreta empenhada em defender a humanidade da 3ª guerra mundial.

Esta organização secreta, depois de colocar o protagonista à prova, (sem nome atribuído ao personagem interpretado por David Washington) deposita nele a responsabilidade de impedir o holocausto através da investigação e detenção do oligarca Russo Andrei Sator (Kenneth Branagh) que detém o poder de inverter a entropia (e por correlação, o tempo), de determinados objetos como balas, pessoas e outros artefactos de guerra e implantá-los no passado para alterarem o futuro. Neste ponto deveremos atender ao conceito anterior de Entropia em que, se uma pessoa ou objeto com “tempo invertido” for colocada no passado, com o decorrer normal do tempo, para ele, o tempo anda ao contrário. Tudo isto para fazer gorar as tentativas de destruição do algoritmo que Sator está a construir para provocar o colapso do universo através dum mecanismo de homem morto, (dead man device) quando o cancro no pâncreas de que sofre o vitimar.

Resumido assim, o filme apresenta-se como o absurdo que realmente é, porque a inversão da Entropia é ainda uma impossibilidade física e Christopher Nolan inebriado com o sucesso das suas anteriores realizações, tais como; “Memento” de 2000 que o catapultou para a notoriedade e a sequência do agonizante Batman encomendado pela Warner em 2005, 2008 e 2012, com esse excelente filme “O Cavaleiro das Trevas” (onde o saudoso Heath Ledger criou um inesquecível Joker) atingiu um enorme sucesso de bilheteira que lhe deu fôlego para os subsequentes voos em “Interstellar” de 2014, “Dunquerque” em 2017 e agora este TENET, mas numa trajetória claramente descendente no aspeto da rebuscada temática que suporta a história.

Todavia, o filme está seguramente ao nível dos melhores “James Bond 007” (008 ou 006) tal são as contínuas cenas de ação e de efeitos especiais donde sobressai uma perseguição automóvel em que um dos carros está num tempo invertido e o outro no tempo real, encontrando-se ambos num intervalo desses tempos cruzados numa visão complexa do conjunto espaço e tempo.

É mais um filme pensado para ser visto num ecrã de grandes dimensões como o IMAX, com som Dolby Atmos de 16 canais para nos deixarmos envolver por um produto que para lá da sua vertente científica escatológica tem o objetivo de nos encantar e divertir com uma impensável história de espionagem internacional, que se bem entendo Nolan, não vai ficar por aqui, seguindo-se as inevitáveis sequelas, porque a inversão do tempo não se esgota em si mesma. Goste-se ou não, é uma superprodução que no futuro vai caracterizar uma época e como tal merece ser visto.

Classificação: 6 numa escala de 10

 

3 de dezembro de 2020

Opinião – “Upsss! 2 – A Aventura Continua” de Toby Genkel, Sean McCormack

Sinopse

A Arca de Noé está navegando no alto mar há semanas e os géneros alimentares estão lentamente acabando. O jovem Nestrian Finny e sua melhor amiga Leah, uma Grymp, acidentalmente caem da arca e são arrastados para o mar. Finny encontra uma colónia inteira de Nestrians debaixo de água, Leah chega a uma bela ilha povoada por seres estranhos mas igualmente estranhamente familiares que vivem em harmonia, embora sob a ameaça de um vulcão ameaçador. Depois de se reencontrarem, os nossos corajosos jovens mais uma vez passam por muitas aventuras emocionantes para tentar salvar todos os animais da arca.

Opinião por Artur Neves

Este filme é a continuação de “Upsss! Lá Se Foi a Arca de 2015 que constituiu a produção Alemã de maior sucesso comercial em 2016 com uma receita de bilheteira à escala global de cerca de €25 milhões. A continuação da aventura em curso pretende atingir valores semelhantes embora o ambiente pandémico que nos rodeia, com todos os constrangimentos infligidos aos espetáculos e muito particularmente ao cinema, constitua um sério entrave a estes desígnios.

Tal como descrito na sinopse, os conflitos dentro da arca começam a surgir devido à escassez de alimentos que faz ressurgir a rivalidade entre carnívoros e herbívoros, aumentando as tensões a bordo e fazendo surgir diversos conflitos que se vão resolvendo com a magia dos meios computacionais de animação que conseguem cativar completamente o público infantil a quem se dirigem.

O argumento mistura diferentes histórias clássicas que se mais novos não as conhecerem no original vão assumi-las como inéditas, o que não é um mal em si mesmo, porque para o público alvo constituirá motivo de encantamento e de recordação que serão acertadas no futuro. Para já, o importante é a diversão e o envolvimento com uma história sempre apresentada pelo lado positivo, com uma animação suave e mais atraente do que o seu antecessor.

Se for possível vê-la em 3D então o espetáculo será mais imersivo e a diversão mais completa. É o perfeito filme de Natal que permitirá uma sã distensão ao stress escolar deste primeiro período. O público infantil agradecerá.

Classificação: 6 numa escala de 10

 

Opinião – “Superinteligência” de Ben Falcone

Sinopse

Para sua surpresa e enorme descontentamento, Carol Peters, até aí uma pessoa perfeitamente comum, é escolhida para cobaia de uma superinteligência artificial que irá decidir o que fazer com a Terra. Indecisa sobre subjugar, preservar ou destruir a Humanidade, essa entidade tecnológica quer estudar todos os aspetos da vida de Carol, para perceber se realmente os seres humanos são dignos de salvação. Ciente da enorme responsabilidade que lhe coube em sorte, Carol vai ter de provar o que vale.

Opinião por Artur Neves

A história compõe-se como uma comédia romântica em que Carol Peters (Melissa McCarthy) é escolhida por uma superinteligência, não se sabe se origem terrena ou alienígena, que pretende conhecer o modo de funcionamento da sociedade dos humanos para melhor os salvar do colapso iminente a que os próprios humanos estão inexoravelmente a ser conduzidos pelas suas atitudes e pelos seus excessos de consumo desenfreado de recursos do planeta terra.

Carol foi escolhida porque no entender da tal superinteligência correspondia ao modelo de pessoa comum que poderia constituir uma base de referência para toda a humanidade. Estão a ver, Melissa McCarthy é uma atriz americana bonitinha de cara, frequentemente convidada para desempenhar papéis de comédia devido aos muitos quilogramas a mais que possui e que lhe confere uma imagem rotunda em toda a sua aparência. Logo por aqui se pode avaliar o nível de superinteligência com que estamos a lidar que a elegeu como modelo do que se entende como o comum dos mortais.

O que se segue é o reatar de um romance interrompido de Carol com um anterior namorado George (Bobby Cannavale) que está de partida para a Irlanda na busca de melhores dias dos que tem passado nos USA. Carol porém é recatada e com os avanços e recuos do relacionamento com George não presta suficientes informações à tal superinteligência que quer aprender mais sobre a afetividade entre os humanos e a empurra para sucessivas tentativas de o cativar.

A curiosidade da história, que a diferencia de outras comédias românticas, centra-se na apresentação da comunicação global através da simulação de uma rede 5G com que a superinteligência comunica constantemente com Carol, apanhando-a nas mais variadas situações, seja através das câmaras de vigilância de rua, do automóvel sem condutor que põe à sua disposição, como da televisão em casa, ou do rádio relógio despertador, ou até da torradeira que ela se apressa a destruir à vassourada.

Em boa verdade as redes 5G ainda não existem comercialmente, estando neste momento em testes de instalação, nem tão pouco existe atualmente equipamentos que possam utilizar tão profusamente essa banda de frequências como o filme pretende ilustrar. Todavia é um futuro próximo que mesmo em apresentação simulada, dá-nos uma ideia das potencialidades dessa tecnologia com que temos de lidar nos anos que se aproximam.

Agora, utilizar este desenvolvimento tecnológico como motivo e razão para reatar um romance interrompido é no mínimo peregrino, mas enfim é o que temos. A vertente ecológica de contenção de consumo que também veicula, justifica a classificação atribuída.

Classificação: 5 numa escala de 10

 

1 de dezembro de 2020

Opinião – “Uncle Frank” de Alan Ball

Sinopse

Em 1973, quando Beth (Sophia Lillis), de 18 anos, e seu tio Frank (Paul Bettany) fizeram uma viagem de Manhattan a Creekville, Carolina do Sul para o funeral do patriarca da família, Daddy Mac (Stephen Root), eles inesperadamente se juntaram ao amante de Frank, Walid (Peter Macdissi). Uma história sobre família, perdão e sobre o nosso inerente poder de escolher quem queremos ser.

Opinião por Artur Neves

A primeira palavra que após o visionamento me surgiu para definir este filme foi: Completo!... e digo isto por se tratar de uma história que trata a opção sexual individual de uma forma sóbria, discreta, tocando em todas as faces do poliedro que pode servir de modelo abstrato do fenómeno da homossexualidade humana. No caso presente reporta-se à homossexualidade masculina que em termos conceptuais não deve diferir da homossexualidade feminina, com todos os atributos de sofrimento, solidão, sensação de ser diferente, deslocado da maioria, auto interrogação e auto comiseração, que induzem o subsequente rol de traumatismos emocionais condicionantes do comportamento social destas pessoas num meio que não os reconheça como iguais.

Sem qualquer brejeirice, vulgarmente incluída no género, a história aborda o vínculo castrador das duas religiões universalmente mais divulgadas; a cristã e a muçulmana, nas suas regras convencionais de pecado e exclusão, analisa os princípios dos sintomas da diferença e a forma como eles se desenvolvem e concretizam e confere aos seus intérpretes o direito à escolha de acordo com as suas pulsões, ilustra sem reservas a sublimação do sofrimento íntimo recalcando as mágoas e emergindo silenciosamente dos destroços, mostra o atento e incondicional amor de mãe por um filho diferente, apresenta as cumplicidades sinceras dos elementos da família que aceitam em segredo essa diferença e constituem por vezes os esteios de uma vida incompleta. Adicionalmente são também incluídos os comportamentos dos menos avisados que se surpreendem pela novidade e a encaixam por preceito de família, bem como, a liminar proibição e negação abjeta do pai, que deixa transparecer algo sobre uma homossexualidade latente constantemente reprimida durante toda a vida.

Por todo este conjunto de apreciações numa mesma obra, considero este filme; completo, atrevendo-me até a compará-lo a um ensaio sobre a homossexualidade, mas apresentado em forma cinematográfica. Escrito e realizado por Alan Ball, realizador americano que já nos ofereceu esse excelente filme premiado com o Óscar de 1999 “Beleza Americana” e a igualmente excelente série “Sete Palmos de Terra” nos anos entre 2001 e 2005, entre outras boas realizações. Começa com Beth, uma adolescente de 14 anos a projetar o seu futuro no seio de uma família que não a compreende, exceto o seu “Tio Frank” de quem ela se sente próxima e que em conversas no terraço por altura de uma visita deste, lhe fala de oportunidades e de vivências na cidade de Nova Iorque onde ele é docente universitário, que ela nunca ousara antes pensar. Aqui é curioso observar o personagem interpretado por Sophia Lillis, de uma rapariga pouco atrativa, magra, baixa, embora possuidora de um rosto bonito que nos confunde com a sua identidade de género, embora explicitamente ela tenha declarado ao tio não ser gay. É ela que narra a história da sua emancipação, do seu encontro com o tio na universidade em Nova Iorque 4 anos depois e da viagem de volta à casa da família para o funeral de Daddy Mac, origem e berço do trauma definidor da vida do seu tio Frank como veremos a partir daqui.

Alan Ball reuniu um naipe de atores fabulosos e só se pode queixar de si próprio em não os envolver mais completamente na história, todavia tem uma desculpa porque Paul Bettany e Peter Macdissi, Frank e Wally respetivamente, são tão cativantes e autênticos que polarizam todo o filme numa história compartilhada de segredos e cumplicidades que ofusca o resto do enredo e dos personagens ímpares que contem, tal como, a compreensiva cunhada Kitty (Judy Greer) ou mesmo a matriarca sulista Mammaw (Margo Martindale) que não têm oportunidade ou tempo suficiente para demonstrarem todo o potencial dos seus personagens. Mesmo Beth, que nos serviu de guia e suporte para a descoberta da verdade sobre o seu tio, é praticamente abandonada quando o espírito conturbado de Frank é assaltado pela angústia turbulenta, reprimida todo aquele tempo pela frustração insanável do seu primeiro amor, passa a dominar a ação.

Atrevo-me a vaticinar que será um dos filmes nomeados em 2021, considerando que nos consegue transmitir uma imagem do que era a vida nos estados do sul dos EU na década de 70, em face de uma questão que envolve um significativo melindre moral e social, contada de forma linear e neutra, causando impacto no espectador mas sem o provocar com cenas ousadas de pornografia barata, tão ao gosto da cinematografia queer.

O filme estreou no Sundance Film Festival em Janeiro de 2020 e está disponível através da plataforma de streaming Amazon prime vídeo. Muito bom, recomendo vivamente.

Classificação: 9 numa escala de 10