31 de maio de 2020

Opinião – “Presságio” de Alejandro Montiel


Sinopse

Nesta prequela de "Perdida" de 2018, a agente Pipa não só tem em mãos o seu primeiro caso policial importante, como também investiga o seu superior, que é suspeito num homicídio.

Opinião por Artur Neves

“Perdida” é um filme dramático argentino deste mesmo realizador, baseado no romance “Cornélia” da jornalista também argentina; Florence Etcheves onde aparece o personagem de “Pipa”, Pelari (Luisana Lopilato), uma agente de polícia que neste filme ocupa a categoria de estagiária, embora se deva a ela a solução do enredo criminoso que dá suporte à história.
No original, este filme designa-se por “Intuition” (Intuição) muito embora a história que nos conta só muito remotamente seja atribuível à perceção instintiva sem razão objetiva, que está na base das deduções por intuição, mas a Netflix é que sabe e na sua distributiva operação pelo maior número de países do mundo, encaixa no seu cartaz este “conjunto de episódios” de séries policiais, costurando-os numa narrativa sequencial que pretende ser um filme e não a manta de retalhos que me pareceu, nesta estreia em 28 de maio.
O filme começa num prólogo, á boa maneira dos filmes de super heróis, em que Francisco Juanez (Joaquín Furriel) o detetive responsável pelo caso do desaparecimento em série de meninas está conduzindo os seus colegas floresta a dentro até ao covil do presumível sequestrador, embora contra as sugestões dos seus mais diretos colaboradores, ao que Juanez responde com a sua indefetível “premonição” de que se encontra no bom caminho da detenção do criminoso e do resgate da ultima vítima em cativeiro.
Ainda o fumo dos efeitos especiais (que simulava o nevoeiro húmido da floresta onde entraram) não se tinha totalmente dissipado e já Juanez está incumbido do próximo caso que envolve o assassinato de uma moça, para o qual ele recebe como ajudante a jovem detetive “Pipa” que não mais deixaremos de ver a partir daqui.
O que Juanez não sabe, (nem intui) é que ela foi incumbida de investigar secretamente a eventual participação de Juanez no acidente rodoviário que vitimou mortalmente um jovem que pertencia a uma família de ciganos comerciantes de acessórios de automóvel que foram responsáveis pela morte da mulher de Juanez.
Ao longo dos 116 minutos de duração do videograma acompanhamos a evolução das investigações, saltando de uma para outra fazendo crescer todas quase em simultâneo com “Pipa”, inicialmente muito desconfiada do seu parceiro e chefe de investigação e aos poucos amolecendo a sua atitude decorrendo dos factos que vão sendo descobertos, até ao ponto de passar uma noite com ele, por motivos exclusivamente profissionais… claro…
Aqui chegados só me apetece citar; “… não havia necessidade…” de juntar tantos clichés e lugares comuns num argumento de pacotilha, que embora reúna algumas cenas de interesse não possui qualquer originalidade nem a garra necessária que permita tornar o personagem de Juanez num investigador credível e a história, num todo coerente.
Juanez e “Pipa” são uma dupla que deveria constituir uma relação de “professor e aluna” mas que devido à investigação subterrânea de “Pipa” mais parece um jogo de gato e rato que para se manter têm de se gerar muitos hiatos de colaboração e de movimentações na ação que se torna algo penoso durante todo aquele tempo em que começamos a perguntar como é que aquilo acabará, sabendo-se antecipadamente que só pode acabar bem para que possa existir uma sequela. Poucochinho!...

Classificação: 4 numa escala de 10

28 de maio de 2020

Opinião – “Give me Liberty” de Kirill Mikhanovsky


Sinopse

Vic, um jovem desafortunado russo-americano, conduz uma carrinha de transporte de pessoas incapacitadas em Milwaukee. Já atrasado, num dia em que começam protestos, e à beira de ser despedido, concorda, relutantemente, em levar o avô e vários idosos russos a um funeral. Quando pára num bairro predominantemente afro-americano para ir buscar Tracy, uma jovem com esclerose lateral amiotrófica, o dia de Vic vai de mau a pior.

Opinião por Artur Neves

Esta é mais uma obra apresentada no festival de Sundance Film Festival de 2019, essa montra generosa que privilegia filmes de baixo orçamento e produção independente, fundada em Agosto de 1978 por Robert Redford, na capital do estado do Utah, a cidade de Salt Lake City tendo cumprido até agora os objetivos propostos, apresenta-nos esta história dirigida por Kirill Mikhanovsky, um realizador russo que se inspirou nos seus tempos iniciais como emigrante em Milwaukee, em 1993, onde serviu como motorista de transporte de pessoas com deficiência, e se confrontou com situações caricatas mas de elevado conteúdo humanista que agora, num tom habilidosamente ligeiro transportou para cinema.
Vic (Chris Galust) está num dia complicado pelo atraso que já regista na sua volta programada devido a diversas manifestações públicas contra a ocorrência de um tiroteio policial num bairro negro, que o fazem procurar alternativas ao percurso estabelecido. Não obstante, os imigrantes russos que moram no prédio onde ele visita o seu avô, pedem-lhe para os levar ao cemitério para as exéquias de um falecido que pertencia à comunidade. Vic sabe que o transporte que os devia levar já sofre um significativo atraso pelo que ele assume mais essa tarefa de transportar o grupo.
A habilidade de Mikhanovsky leva-o a pegar em pessoas deficientes reais, membros da comunidade russa imigrante de Milwaukee, frequentadores regulares do Eisenhower Center da cidade, incluídos num grupo de apoio de pessoas com deficiência e transforma-os em atores que exibem com a genuinidade inerente os seus medos, fragilidades e carências que compõem esta comédia, refinadamente caótica e imprevisível.
São pessoas despojadas do glamour do palco que exibem as suas carências naturais de atenção, excesso de solidão e prioridades avulsas, mostrando com o realismo rústico da sua existência as dificuldades levantadas numa viagem, num dia particularmente intenso e frio do inverno do Wisconsin.
Vic tem de seguir, embora remotamente, o plano estabelecido pela empresa de transporte onde trabalha, as coisas já estão a correr suficientemente mal com o seu patrão para que ele, sempre que é contactado por este, refira que se encontra a 10 minutos do destino, quando em boa verdade, devido às alternativas de percurso que tem de encontrar, seja impossível calcular o tempo em falta.
A “cereja no topo do bolo” é Tracy (Lauren “Lolo” Spencer) que num desempenho digno de registo se assume como defensora de pessoas com deficiência tendo obrigações de horário a cumprir para ajudar um amigo, Steve (Steve Wolski), que vai a uma entrevista de emprego. Por outro lado quem mais ajuda Vic e desestabiliza o grupo, é um pugilista russo, desempregado, barulhento e brigão, Dima (Maxim Stoianov) que entra em conflito com Tracy, portadora de ELA e tem de manobrar a sua cadeira de rodas motorizada, no interior de uma carrinha lotada de pessoas que reclamam, protestam e cantam canções folclóricas russa acompanhadas por um acordeão que rouba espaço necessário à cadeira de rodas.
É mais um filme sem heróis, que se desenvolve notavelmente pela sua autenticidade. A deficiência não é usada como lamentação de pessoas incapazes e incompletas ou como compensação moral da ajuda prestada pelas pessoas saudáveis. Mikhanovsky, a maior parte do tempo de câmara na mão, assume o compromisso de mostrar um nicho de sociedade marginalizada, cujas reflexões sobre a vida e o amor recentram a história em padrões comuns que proporcionam lindos momentos de tranquilidade e repouso naquela atribulada viagem.
Disponível na plataforma Netflix desde 12 de maio. Muito interessante.

Classificação: 6 numa escala de 10

22 de maio de 2020

Opinião – “100% Camurça” de Quentin Dupieux


Sinopse

Georges, recentemente divorciado, sente uma enorme dificuldade em adaptar-se à nova vida. A enfrentar uma espécie de crise existencial, esforça-se por ultrapassar a angústia que teima em não passar. Um dia, compra um casaco de camurça numa loja em segunda mão. O que vem a descobrir assim que o veste é que esse casaco concede estranhos poderes ao seu proprietário. Obcecado com a nova peça de vestuário, Georges muda radicalmente a forma de ver e sentir o mundo.

Opinião por Artur Neves

Quentin Dupieux é um realizador francês nascido em 1974 do qual, quase conheço uma sua realização de 2010; “Rubber – Pneu”. Se digo que “quase conheço”, é porque contactei com ele num videoclube, aluguei o videograma, comecei a vê-lo e ao constatar que se tratava da história de um pneu filósofo!… sim, um pneu que falava e que tinha vida própria rolando sozinho, acorreram-me imediatamente outras ideias de coisas mais uteis para fazer e interrompi o visionamento cerca de 15 minutos após o seu início. Devolvi o DVD e nunca mais pensei no assunto.
Nesta fase de confinamento em que procuramos ocupações para o tempo em excesso dei de caras na plataforma FILMIN com este “Le Daim” de 2019, no título original, escrito e realizado pelo mesmo senhor Quentin Dupieux e em consideração aos atores; Jean Dujardin e Adèle Haenel, de quem tenho algumas boas referências noutras interpretações, resolvi conferir-lhe o benefício da dúvida prometendo a mim próprio assistir a todos os 77 minutos de duração do filme.
Georges (Jean Dujardin) que só de raspão sabemos que ele é um divorciado recente (pelo desenrolar da história e do seu comportamento assumimos que a senhora terá tido todas as razões para se separar deste maluco) tem uma fixação intelectual num blusão de camurça com franjinhas, umas tiras fininhas também de camurça que pendem da parte de cima do peito, das costas e das mangas, com quem ele fala, tece considerações filosóficas sobre a sua aparência vestido com ele frente ao espelho e se propõe torná-lo o único blusão “vivo” através da liminar destruição de todos os blusões com que ele se cruze ao chegar aquela pequena cidade do interior americano, de carro, vindo não se sabe de onde nem porquê.
Ao chegar aqui lembrei-me logo do pneu a rolar isolado pela estrada e a comentar a sua existência, mas continuei a ver o filme, pois afinal tinha formulado um compromisso para 77 minutos o que até nem é muito…
Georges, porém, tem ainda outra fixação, assume-se como realizador de cinema para o que empunha constantemente uma máquina de filmar, uma Handycam da Sony de uso doméstico (pelo que me pareceu) e com ela motiva Denise (Adèle Haenel) a formar uma equipa de filmagem, depois de esta, na receção do hotel em que se alojou, lhe ter confessado que também gostava muito de cinema e tinha propensão para editora de filmes e que a atividade de edição preenchia completamente a sua veia artística.
Posso vislumbrar nesta obsessão pela filmagem uma crítica alusiva à multiplicidade de pessoas que de telemóvel em punho filma e fotografa tudo o que lhe aparece pela frente para posterior publicação nas redes sociais, mas daí até fazer como ele, de filmar e matar a tiro todas as pessoas que vestiam blusões, para lhos tirar e enterrar, para que só restasse o seu, o único blusão de camurça, vai um abismo de razoabilidade e de sentido.
Não quero revelar o final da história, mas a bem da lei e da ordem, um individuo que mata tão impunemente outras pessoas por um motivo tão fútil, só pode ter um fim semelhante às mãos de um sobrevivente que desempenhou um personagem ainda mais indefinido do que os participantes principais no enredo do filme… assim, tout court, sem mais nem menos... tiro e queda!...
Igualmente, sem me querer arvorar em detentor da verdade absoluta, informo que no IMDb (International Movie Data base) este filme tem a classificação de 6,8 num total de 4009 utilizadores, dos quais 34,5% atribuíram a classificação de 7, o que significa que outras pessoas tiveram opinião diferente da minha, todavia, declaro também que a minha classificação se destina totalmente aos atores e nada ao argumento, que reputo de fútil, desconchavado e idiota.

Classificação: 2 numa escala de 10

NOTA: Para quem quiser esclarecer as dúvidas que a minha crónica possa ter levantado, informo ainda que este filme está disponível na plataforma FILMIN, de origem espanhola e internacionalizada desde Novembro de 2016 no México e em Portugal, por €3,95, durante 72 horas, sem fidelização ou contrato, bastando apenas a inscrição no site.

21 de maio de 2020

Opinião – “All Day and a Night” de Joe Robert Cole


Sinopse

Enquanto Jahkor (Ashton Sanders, de “Moonlight”), de fala mansa e gestos contidos, luta para manter seu sonho de se manter vivo no meio de uma guerra de gangues em Oakland, sua vida infeliz e as responsabilidades do mundo real levam-no cada vez mais além da linha do certo e do errado com trágicas consequências.
Depois de ser preso e de encontrar seu pai na prisão, JD (Jeffrey Wright, de “Westworld”), com quem ele nunca se quis comparar, Jahkor embarca numa improvável jornada de autodescoberta, explorando os eventos que os unem, na esperança de ajudar seu filho recém-nascido a quebrar um ciclo que parece inevitável.

Opinião por Artur Neves

Este trabalho de Joe Robert Cole, realizador americano negro que tem no seu curricula “Black Panther” de 2018 e a popular e muito aclamada série para a televisão; “American Crime Story” apresenta-nos agora o ator de “Moonlight”, filme premiado na cerimónia dos Óscares de 2016, em Jahkor, um personagem que conta uma dramática história de vida de um garoto abandonado, com pai desaparecido, educado por um padrasto violento, a cumprir uma pena de prisão perpétua, mas com uma determinação de não deixar replicar que os seus erros de ontem se transformem amanhã em tragédias do seu filho.
A história começa pelo brutal crime a sangue frio que impõe a narrativa e o levará a julgamento e posteriormente à cadeia onde se encontra, numa cela isolada, que lhe permite reviver todo o seu caminho até ali reconhecendo a brutalidade dos seus atos como reflexo da infância e juventude que viveu, numa história de amadurecimento envolvido numa meditação sombria e desconfiada sobre a identidade, intenções e masculinidade do americano negro.
Embora sempre acompanhado na infância pela sua mãe Delanda, (Kelly Jenrette) e sua tia Tommetta, (Regina Taylor) duas fontes de força e amor duro, sempre a instigá-lo para seguir um caminho contrário aos exemplos diários com que se confrontava na escola e com os amigos frequentes, tais como, o astuto TQ (Isaiah John) desde sempre inclinado para uma vida de crime e arrastando-o com ele e o otimista Lamark (Christopher Meyer) sempre pronto a congeminar a melhor maneira de cometer o crime e escapar dele.
Em todo o filme ele mantém um monólogo íntimo e recorrente em que descreve uma narrativa de luta de gangs, de tráfico de droga, de racismo diário nos mais vulgares eventos quotidianos que motivam a citação em forma de murmúrio; “A escravatura ensinou os negros a sobreviver, mas não a viver” que ele repete em todos os momentos em que procura o isolamento para compor música hip-hop para a qual se sente particularmente vocacionado, embora sem oportunidade para a desenvolver naquele meio.
No desenvolvimento da história, entre o presente estado de reclusão e a descrição das razões que o levaram aquele medonho crime, o filme recorre-se de múltiplos flashbacks, sempre suportados pela sua voz em off, desde as lutas no recreio da escola em que experimenta a primeira satisfação de ter vencido um dos colegas mais acintoso e de ter cumprido a recomendação do seu pai adotivo de responder à violência com violência. Esta conclusão tornar-se-á uma emoção permanente na vida à qual se habituou.
“Todo o dia e uma Noite” na versão portuguesa, é uma história de fatalismo constante que elimina a possibilidade de redenção do que nos vai sendo apresentado. Sabemos desde o primeiro momento o crime que cometeu e que vai ser preso, portanto as suas tentativas de compor hip-hop, a sua recusa ao consumo de droga, o encontro com Shantaye (Shakira Ja'nai Paye) a quem faz um filho, são percalços de uma vida que sabemos não terá futuro e que deixa ao espectador a única hipótese de se concentrar no modo como tudo aconteceu.
Mesmo que em algum momento, como no tempo do seu relacionamento com Shantaye, você sinta alguma comiseração e esperança que ele atine com a vida, o filme a seguir mostra-lhe claramente que isso não vai acontecer, pelo que uma alteração da montagem poderia contribuir para a manutenção da esperança que a história se encarrega de eliminar.
Para lá das explosões de violência este filme contém uma meditação sobre a vida e sobre os maiores riscos de ser destruída e isso justifica o seu visionamento. Está disponível desde 1 de maio na plataforma Netflix.

Classificação: 6 numa escala de 10

13 de maio de 2020

Opinião – “Clara e Claire” de Safy Nebbou


Sinopse

Para espiar o amante Ludo, Claire, uma mulher de 50 anos, cria um falso perfil nas redes sociais. Transforma-se em Clara, uma belíssima jovem de 24 anos. Alex, amigo de Ludo, sente-se imediatamente atraído. Claire, prisioneira do seu Avatar, apaixona-se loucamente. Mesmo que tudo aconteça virtualmente, os sentimentos são reais.
Uma história vertiginosa em que a realidade e a mentira se confundem.

Opinião por Artur Neves

Não posso deixar de referir a proximidade em que se situam ambas as histórias contadas neste filme e no anteriormente publicado “Rainha de Copas”. São ambas, resultados de casos de assédio de mulheres de 50 anos, por um adulto jovem no caso deste filme e de um adolescente no caso do “Rainha de Copas”, as suas trajectórias, comportamentos e contextos é que são substancialmente diferentes, embora a sua raiz de solidão seja comum.
Com o enredo sumariamente descrito na sinopse, encontramos Claire (Juliette Binoche) no consultório da sua psicóloga Dra. Bormans (Nicole Garcia) tentando recompor-se do trauma de ter sido abandonada pelo seu marido (que a trocou por uma jovem que só posteriormente saberemos quem é) e pelo seu amante de ocasião, Ludo (Guillaume Gouix) que ela pretende perseguir através de interposta pessoa, para o que constrói um perfil falso numa rede social, com o qual pretende seguir os passos de Ludo através de Alex (François Civil), seu companheiro de quarto.
A relação estabelece-se no universo virtual e Alex e Clara (o perfil falso de Claire) estabelecem uma relação escaldante que do lado de Clara a transporta para a concretização dos seus desejos mais íntimos e para um amor a que ela não pensou inicialmente que sucumbisse, considerando os objetivos iniciais do seu projeto de seguimento de Ludo.
O drama romântico de Clara é nos apresentado por Claire em sucessivas sessões com laivos de suspense dignos de um thriller, incluindo ainda alguns dotes de comédia onde ela descreve e desafia a Dra, Bormans a comentar, a sua versão do amor vivido com Alex procurando conciliar os sentimentos de culpa e frustração, bem como, alimentar a sua carência de companhia e de amor que ela procurou através de uma mentira consumada nas redes sociais.
O silêncio circunspecto da psicóloga reflecte o olhar do espectador que se tenta defender da personagem apresentada por Claire, por pressentir que está sendo manipulado com uma história dentro da história que nos permite ajuizar a seriedade dos atos praticados por Clara ou por Claire, tal é o jogo de espelhos entre a realidade e o desejo do personagem ou do seu avatar.
Clara enreda-se assim nas suas próprias contradições assumindo como punição não permitir qualquer felicidade para si mesma, conduzindo Claire a uma instituição de doenças mentais para tentar reconstruir as partes em que se fragmentou, em que a intervenção da Dra Bormans é fundamental.
Esta troca de personagens on line é um fenómeno definido por catfish que Safy Nebbou, um realizador francês com origens argelinas, utiliza para nos avisar de um fenómeno real construído por pessoas que habitam este espaço virtual em busca de compensação física e emocional através da obtenção de likes que lhe criem a ilusão de viver relações reais, num meio virtual, onde cada um pode reinventar-se à sua maneira.
Nesta sua sexta longa metragem, Safy Nebbou adapta o romance de Camille Laurens "Celle que vous croyez", (“Aquela que vocês crêem que seja”, em tradução livre) utilizando a emblemática atriz de; “O meu belo Sol Interior”, Juliette Binoche, em mais uma magnífica interpretação do personagem dentro da personagem, sem receio de se mostrar como está, evidenciando toda a frescura remanescente dos seus 50 anos reais, a iluminação do seu rosto e do seu olhar que preenchem a tela. Embora sem o mesmo brilho próprio, este facto constitui outro ponto de contacto com a personagem de “Rainha de Copas” quando ela se aprecia frente a um espelho. A diferença fundamental entre as duas reside na tentativa de dissociação em que Claire se enreda, contra a acção que Anne projecta e deliberadamente pratica, todavia, ambas sofrem da mesma ausência que lhes traz solidão. Muito bom, recomendo.
Este filme está disponível na plataforma digital FILMIN por €3,95 ficando disponível para visionamento durante 72 horas.

Classificação: 7 numa escala de 10

10 de maio de 2020

Opinião – “Rainha de Copas” de May el-Toukhy


Sinopse

Anne, uma bem-sucedida advogada, vive numa belíssima casa modernista com as suas duas filhas e o marido Peter. Quando Gustav, o filho problemático de Peter, fruto de uma relação anterior vai viver com eles, Anne cria uma relação íntima com o jovem que põe em risco a sua vida perfeita. E aquilo que parecia inicialmente um acto de libertação, transforma-se numa história de poder, traição e responsabilidade, cujas consequências são devastadoras.

Opinião por Artur Neves

Pela mão de May el-Toukhy, uma realizadora dinamarquesa de origem egípcia, que igualmente participou em conjunto com Maren Louise Käehne na construção final do argumento, temos este excelente filme, vencedor do Prémio do Público no Festival de Sundance em 2019 e indicado pela Dinamarca para os óscares na categoria de Melhor Filme Estrangeiro que a Academia Americana se apressou a eliminar liminarmente, nem sequer o citando como candidato, considerando que a história aborda o assédio sexual de uma mulher a um rapaz de 17 anos seu enteado, o que iria frontalmente contra os ventos da época, engajados nos movimentos Time’s Up e #MeToo acérrimos promotores das denúncias de assédio sexual e moral a senhoras impolutas.
Sem prejuízo da aplicação da justiça ao mais famoso indiciado nessas práticas; o magnata Harvey Weinstein, fundador com o seu irmão da produtora Miramax, o filme ilustra como o assédio é um assunto transversal a ambos os sexos não havendo justificação objetiva à demonização do sexo masculino com a consequente vitimização do sexo feminino.
Anne (Trine Dyrholm, uma das mais conceituadas atrizes dinamarquesas) advogada da área familiar sobre casos de abuso e violência doméstica, vive com o seu marido Peter (Magnus Krepper) um médico de Estocolmo, viciado em trabalho, de trato rude e frequentemente ausente da maravilhosa casa onde o casal habita, situada em meio rural, circundada por árvores esguias de troncos nus e pouco frondosas mas que servem de filtro esparso à luminosidade do verão nórdico em fim de tarde e propiciam o tapete de folhas no solo que convida a passeios nostálgicos e mergulhos ocasionais na lagoa próxima.
Gustav (Gustav Lindh) é um jovem de rosto duro, revoltado com sua situação, fruto do primeiro relacionamento de Peter e que provisoriamente veio habitar com eles por desavenças com sua mãe, mas que estabelece excelente relação com as gémeas filhas de Anne, Fanny e Frida que podem ser representadas pelos personagens fictícios do romance de Lewis Carroll “Alice do Outro lado do Espelho” considerando a sua proximidade constante, sempre vestidas de igual, recebendo presentes iguais e ambas praticando equitação, com uma apetência cultivada pela mãe. Aliás, Anne também possui uma irmã, que neste contexto pode ser comparada à rainha má do mesmo conto e com quem não possui uma relação amistosa, decorrente das várias diferenças de sucesso alcançado profissionalmente por cada uma.
Os povos nórdicos têm esta tendência de submeter às suas tradições o seu modelo de vida atual, como forma de validação das suas premissas.
Anne, de rosto calmo com rugas de expressão, habita um palácio de cristal (a casa está repleta de amplas superfícies vidradas) num ambiente paradisíaco, de natureza, silencio e comodidade onde se sente demasiadamente só. O seu casamento já terá atingido a fase do apaziguamento da paixão embora ela incentive o seu marido a outros voos que são delicadamente suspensos pelas ocupações diárias e pelo cansaço. Eles reúnem frequentemente amigos em casa para passar a ideia de perfeição e felicidade, como é apanágio frequentemente reconhecido na sociedade dinamarquesa, quando o que realmente perdura é a monotonia e a solidão. Eles estão reféns da salvaguarda dos seus papéis sociais e absorvidos pelas aparências. Refletindo sobre si, ela desnuda-se em frente do espelho e exibe todas as suas rugas e estrias de um corpo de meia idade e sem ser uma femme fatale, longe disso, reúne espiritualmente todas as condições para amar e ser amada e da capacidade erótica de cativar o outro num amplexo amoroso.
O clique com Gustav dá se num banho na lagoa em que ambos se molham furiosamente, espargindo água num despique de inconsequente aproximação. Ela está reconhecida a Gustav pela companhia que faz às filhas e pergunta-se secretamente se lhe poderá também fazer companhia a ela e daí, como consequência do seu desejo de fuga à solidão acende-se o seu desejo sexual por Gustav, consumado numa noite de insónia em que deliberadamente o procura no seu quarto.
O filme é bastante completo na complexidade da temática que aborda e a realizadora não nos apresenta personagens unilaterais, pelo contrário, todos os personagens podem ser analisados nas suas múltiplas facetas e se as cenas entre Anne e Gustav representam a libertação das convenções e o amor, a relação entre Anne e Peter está eivada da dificuldade que ela sente na cama em se submeter ao marido assumindo uma atitude agressiva, representando a perda que o poder do homem, no conjunto do casal, se tem vindo a verificar através dos tempos devido á progressiva autonomização da mulher.
Todavia, nesta história não há culpados, há apenas seres que sofrem e se enredam na ilusão do amor total cometendo erros, e seres em formação, inconscientes do poder dos seus sentimentos que desmentem o chavão de que o envolvimento entre mulheres adultas e adolescentes jovens é mais romântico do que a relação que se estabelece entre mulheres adolescentes e homens adultos. A finalizar não quero deixar de referir a excelente banda sonora de Jon Ekstrand que prolonga e intensifica a ansiedade produzida pela história, ora frenética, ora colérica. Muito bom, completo, sem falhas.
O filme está disponível nos video clubes das televisões nacionais; MEO, NOS e Vodafone e pode ainda ser visto na plataforma eletrónica FILMIN Portugal pelo preço de €3,95, estando disponível para visionamento durante 72 horas.

Classificação: 9 numa escala de 10

NOTA: O filme está referenciado negativamente por uma cena de sexo explícito durante 4 segundos, mas na minha interpretação trata-se de uma simulação praticada com um vibrador ou com um brinquedo sexual semelhante. A história tem suficientes motivos de interesse por si mesma, para necessitar desses subterfúgios que não acrescentariam qualquer valor ao filme.

5 de maio de 2020

Opinião – “Furie” de Olivier Abbou


Sinopse

Inspirado em factos reais. Durante as férias de verão, Chloé (Stéphane Caillard) e Paul Diallo (Adama Niane) emprestam sua casa à babá de seu filho. Ao voltar da viagem, a família Diallo encontrou a porta fechada: as fechaduras haviam sido trocadas e os ocupantes declararam que estavam em casa. Para Paul, é o começo de uma luta que fará vacilar o seu casamento, os seus valores sociais e a sua humanidade.

Opinião por Artur Neves

Este “Furie”, de origem francesa, foi renomeado para Portugal como o nome; “Ultrage”, para não ser confundido com outro filme com o mesmo nome original e ano de publicação, mas de origem Vietnamita e com um argumento radicalmente diferente, causou-nos verdadeira surpresa pelo seu conteúdo contar uma história desconfortável para os padrões sociais europeus, sobretudo por anunciar que se baseia em factos reais, embora omita completamente a origem da sua fonte inspiradora.
Olivier Abbou é um realizador francês de 47 anos, nascido em Colmar no Alto Reno mas de origens familiares argelinas, o que penso, justificará em parte a devastadora violência gratuita incluída no filme sobre um ato que começa por se apresentar como justicialista mas que o filme deixa descambar para violência puramente gratuita. Já em 2011 ele realizou “Territoires” um filme que aborda os direitos humanos através de grande violência.
A história centra-se em torno do regresso de férias de um casal que terá emprestado a sua casa durante esse período à família da cuidadora do seu filho em idade escolar e que agora se recusa a devolver-lhe o domicílio, tendo mudado as fechaduras e assumindo os contratos de água e eletricidade que ela tinha e ao abrigo da lei francesa essa tomada de posse é suficiente para os direitos de possessão. Não tenho suficientes conhecimentos da lei francesa para ajuizar da veracidade deste ato, mas é por este caminho que a história nos conduz e com outro desenvolvimento do argumento o filme não perderia qualidade mesmo tratando-se de uma ficção.
Pela leitura da sinopse e do visionamento do trailer, o filme prometia uma história sombria, de contornos insidiosos que provocariam o eventual recurso à violência pontual em face de uma tão rotunda injustiça e perplexidade, considerando que a cedência teria sido a título gracioso e por simpatia e generosidade com os serviços anteriormente prestados.
A solução começa por ser a comunicação à polícia, a contratação de uma advogada e o seguimento dos trâmites legais para a denúncia daquela ocupação selvagem. Só que Olivier Abbou utiliza o caso para questionar a masculinidade de Paul Diallo (e a masculinidade em termos gerais no século XXI) incentivando-o ao ataque pessoal para afirmar os seus direitos, através de um contacto com Mickey (Paul Hamy) o porteiro do parque de campismo a que ele recorreu para estacionar a caravana que lhe serviu de habitação durante as férias e iria continuar a servir, decorrente da presente situação.
Mickey, um antigo colega de escola secundária da sua esposa Chloe, é um homem truculento, brigão por natureza, incluído num grupo de capangas semelhantes e detentores da mesma índole que imediatamente tentam absorver Paul (professor de História como profissão) para o seu meio e para as suas atividades muito próximas do ilegal. Paul deixa-se manipular pelo grupo e assume um papel de criança sofrida, umas vezes amuada outras zangada, deixando-se embarcar numa ação com pouco de viril e muito de idiota. Em toda a cena Chloe desempenha um personagem mais responsável e corajoso a enfrentar os problemas emergentes da situação, não só no presente como na evocação do passado com Mickey.
Quando o grupo passa ao ataque começa a descalabro do filme com violência gratuita que se aproxima do insuportável através da exibição da mais absoluta falta de humanidade à semelhança do que já tinha sido apresentado em “Territoires”. Parece que o argumento e o caso em apreço foram filmados para serem usados como pretexto para justificarem um final violento que exibisse a crueza humana sem pingo de humanidade, bestialidade pura.
Tudo se passa como se os valores humanos não existissem, nem polícia, nem justiça, nem estado, tendo sido deixados sós e abandonados aos elementos da selvajaria humana e que termina num final que se fica por isso mesmo, sem quaisquer consequências nem epílogo conciliador com o estatuto social existente.
Estreou no dia 1 de Maio na Netflix e podia ser melhor com o ambiente opressivo, angustiante e de injustiça que o argumento cria, mas fica-se somente pela violência.

Classificação: 4 numa escala de 10

2 de maio de 2020

Opinião – “Bad Education” de Cory Finley


Sinopse

Inspirada em fatos reais, “Bad Education” segue Frank Tassone (Hugh Jackman) e Pam Gluckin (Allison Janney), que reinam num popular distrito escolar de Long Island, à beira do primeiro lugar do país, estimulando o recorde de admissões nas faculdades e os altos valores imobiliários. Mas quando surge um esquema de peculato que ameaça destruir tudo o que eles construíram, Frank é forçado a manter a ordem e o sigilo, por qualquer meio necessário.

Opinião por Artur Neves

Baseado numa história verídica publicada num artigo na revista New York sob o título; "The Bad Superintendent" o filme ilustra o maior crime de peculato levado a cabo na escola pública dos USA pelo diretor, Frank Tassone que em termos de desempenho do lugar ocupado conseguiu granjear os elogios e a consideração dos pais dos alunos, que pensavam ser ele o homem providencial para cumprir os objetivos de elevação social que eles tinham traçado para os seus filhos.
Quando o descalabro das contas começa a ser notado, ele ainda consegue imputar responsabilidades à diretora adjunta Pam Gluckin que é considerada culpada por desvio de US $ 250.000 do orçamento, (posteriormente vem a revelar-se que o real montante foi de US $ 4,3 milhões) corroborado por uma certa exibição de vida sem preocupações que ela ostentava nas múltiplas festas que dava na sua casa de férias na Florida, bem como na proteção financeira descarada que ela exercia sobre a sua sobrinha, Jenny Aquila (Annaleigh Ashford) que também foi acusada de um roubo no montante de US $ 780.000. Essas suspeitas conduzem-na à demissão do seu lugar e á reforma compulsiva, como primeira tentativa de Frank tentar ocultar o real volume do desvio.
O problema acentua-se quando, no desenvolvimento de um trabalho escolar inerente ao curso de jornalismo que frequentava, Rachel Bhargava (Geraldine Viswanathan) do 2º ano, investiga pormenorizadamente as contas do agrupamento de escolas daquele distrito, bem como, os destinos dos gastos escolares, tanto no aspeto dos valores despendidos como dos destinatários dessas encomendas e despesas que se revelam sumptuosas.
Frank Tassone (Hugh Jackman que nós conhecemos como herói da Marvel na saga “X-Man” e “Logan”) está perfeito neste desempenho como o responsável do agrupamento escolar de Roslyn High School, localizada em North Shore, em Long Island, durante 12 anos, por um comportamento simpático e afável, pró-ativo e eficaz no levantamento dos problemas e no acompanhamento das necessidades dos alunos, tendo obtido o reconhecimento público do Wall Street Journal que classificou Roslyn como a sexta melhor escola pública da América, um mês antes do fatídico Maio de 2004 em que estas revelações foram expostas. Frank Tassone foi condenado por um desfalque no valor de US $ 2,2 milhões.
O filme conduzido pela mão de Cory Finley, que embora não muito experiente, consegue iluminar o argumento (pesado) de Mike Makowsky equilibrando harmoniosamente um tema censurável em todos os aspetos, num tom de comédia ágil, sem contudo branquear os aspetos negros desta história que se desenvolve fluida e surpreendente, revelando os acontecimentos ocorridos nesta escola do ensino médio, bem como, a personalidade dos seus autores.
Os principais personagens desta história não são mais do que caricaturas de ganancia, envolvidas num esquema de contabilidade criativa que não souberam, onde nem como parar e corrigir os seus desmandos. Eles são apenas humanos com defeitos graves, que quando apresentados desta forma ligeira, embora grave, contribuem como uma advertência para o mundo que nos rodeia, enquanto desfrutamos de um período de entretenimento que considero útil. Gostei.
O filme está disponível na plataforma digital HBO.

Classificação: 7 numa escala de 10