30 de julho de 2020

Opinião – “A Nota Perfeita” de Nisha Ganatra


Sinopse

No mundo deslumbrante de Los Angeles, Grace Davis (Tracee Ellis Ross), é uma diva com talento e ego imensuráveis.

Maggie (Dakota Johnson) é a sua assistente pessoal, sobrecarregada de trabalho, mas que não desiste do seu sonho de infância de se tornar produtora musical. Quando o manager de Grace, Jack (Ice Cube), lhe apresenta uma proposta que pode colocar um ponto final na sua carreira, Maggie e Grace elaboram um plano para reinventar as suas vidas...

Opinião por Artur Neves

Há vários filmes sobre os bastidores do mundo do “show bis” sendo o último que mais deu nas vistas por merecer um prémio da academia americana, o remake de “A Star is Born” em 2018 “Assim nasce uma Estrela”, em que Lady Gaga e Bradley Cooper deram corpo a um tórrido romance dentro e fora do ecrã cujos ecos ainda não se apagaram de todo. É um verdadeiro filme de multidões muito menos autêntico do mundo real por detrás do espectáculo que este nos mostra, destacando a voz poderosa de Tracee Ellis Ross (filha de Diana Ross) e recuperando Dakota Johnson, (filha de Don Johnson) cujo talento está muito para lá do que “As Cinquenta Sombras de Gray” e seus derivados, poderiam revelar e isso pode também apreciar-se neste personagem omnipresente de Maggie.

Grace Davis é a grande diva que no auge do seu sucesso sabe que está a atingir o ponto de inflexão da carreira de superstar na medida em que depende dos êxitos antigos que constituíram hits no seu percurso. Grace sabe isso e Jack, o seu manager, também sabe que a seguir virá o declínio igualmente nocivo para ambos pela redução do cash flow correspondente à diminuição dos contratos e à grandeza dos espectáculos futuros pelo que lhe propõe o princípio do fim com a segurança de um contrato fixo num casino de Vegas onde só terá de atuar alguns dias por semana dentro de um programa previamente estabelecido.

O caminho não é fácil, nem existem atalhos para se cumprir o sonho. Maggie trabalha para uma diva egoísta, que ocupa o topo como se este lhe pertencesse por direito. Jake também sente a encruzilhada, entre continuar com a rotina de um trabalho que já conhece ou sair da sua zona de conforto para tentar algo novo.

Neste seu plano Jack esquece-se de Maggie que tem planos pessoais e agenda própria para se tornar num produtor musical e potenciar o talento emergente de David Cliff (Kelvin Harrison Jr.) com quem ela mantém um romance em início e um amor que crescerá na direta medida das suas capacidades de futuro. E é aqui que este filme se distingue consideravelmente de “Assim nasce uma Estrela”. Neste mundo musical anda tudo ligado; carreira, afetos, dinheiro, futuro e só se conseguem conciliar objetivos, com planos cheios de vontade, capacidade de lutar e inspiração. Os outros nem sempre são os melhores parceiros quando a experiência é escassa o os conselhos são para desistir. É a altura de excelência para acreditar.

É aqui que esta história de Flora Greeson, realizada por Nisha Ganatra realizadora canadiana descola do romance fácil e da lamecha e o filme torna-se na história de Maggie, impulsionando o aparecimento dos produtores musicais que faltam ao negócio não escondendo que as relações românticas entre o produtor e o artista que este está produzindo, ao invés de facilitarem o êxito, podem transformar-se em embaraços que conduzem a prejuízos não só financeiros como emocionais. Neste ponto o filme não ilude nem mente.

 “A Nota Perfeita” conta uma história original sobre os bastidores e o funcionamento do negócio da música e tem ainda a vantagem de nos elucidar com pormenores sobre Beach Boys, Stevie Nicks, Bruce Springsteen e outros, com reflexões sobre as carreiras e os percursos artísticos destes nomes famosos enquanto nos delicia ao som dos seus maiores êxitos, tornando-se uma história sobre música, amor e amizade constituindo a fuga perfeita ao mundo real do vírus e dos riscos da pandemia que nos assola. Se o leitor é versado em temas musicais vai ficar algum tempo a lembrar-se destas músicas, para lá da excelente voz de Tracee Ellis Ross que eu nem conhecia, por defeito próprio, obviamente. Recomendo.

Classificação: 7 numa escala de 10

28 de julho de 2020

Opinião – “O Rececionista” de Michael Cristofer


Sinopse

Durante o turno da noite, Bart Bromley (Tye Sheridan) um jovem rececionista, testemunha o assassinato de uma mulher num dos quartos do hotel, mas os seus comportamentos suspeitos acabam por o colocar como principal suspeito. No decorrer da investigação, Bart cria uma relação próxima com uma das hóspedes, Andrea (Ana de Armas), e rapidamente percebe que tem de parar o verdadeiro assassino antes que ela seja a próxima vítima. As imagens das câmaras de vigilância, que Bart mantém em segredo para observar os hóspedes, são a única forma de conseguir provar a sua inocência e salvar Andrea.

Opinião por Artur Neves

Este “Rececionista” corporiza um estilo hitchcockiano, sem o brilho nem a sagacidade do mestre num filme que pretende ser noir sem contudo, conseguir chegar a lugar algum.

Bart Bromley é um rececionista de hotel de preços módicos e permanências curtas que sofre de síndrome de Asperger que é um distúrbio psicológico do espectro do autismo que se caracteriza por dificuldades no relacionamento interpessoal e na comunicação não verbal, exibindo para compensar essas deficiências, padrões comportamentais repetitivos que causam surpresa a quem não está familiarizado com a doença.

Todavia, Bart tenta corrigir essas deficiências através da observação do comportamento de pessoas normais, de forma a poder “aprender” os modos e as formas de comunicação e assim esbater a sua diferença relativamente aos outros com quem ele tem reserva em se relacionar e não sabe como se aproximar. A sua limitação é tal que sua mãe Ethel Bromley (Helen Hunt) lhe prepara as refeições e coloca-as à porta do quarto, de forma a ele se poder alimentar sem o esforço de partilha da sua presença com ela.

Para conseguir essa “aprendizagem” ele instalou câmaras de vigilância nos quartos do hotel e observa os hóspedes nas suas atitudes íntimas, incorrendo assim no crime de voyeurismo, com as quais ele pretende identificar-se com os seus modelos. O problema começa quando ele assiste a um assassinato num dos quartos e não revela à polícia tudo o que sabe porque não quer expor a violação de privacidade que reiteradamente comete na sua tentativa de tratamento da sua limitação comportamental.

É com esta história que Michael Cristofer, ator e escritor galardoado com o prémio Pulitzer, ensaia o seu segundo trabalho de realização depois do longínquo “Pecado Original” em 2001, podendo comprovar-se que não atingiu grande evolução. Agora, para apimentar a história inclui ainda uma Andrea (Ana de Armas) num papel de femme fatale inserida à pressão num envolvimento misterioso que faz Bart temer pela sua vida e sobressaltar a sua rotina controlada quando ela lhe envia olhares e estímulos que ele não sabe como gerir, mas que recebe com esperança de ter chegado a sua altura de construir uma vida dita normal, para os parâmetros de um deficiente de Asperger.

Ana de Armas continua impressionante como sempre e tem tido a sorte de desenvolver personagens adequados à sua habilidade de atuação que lhe assentam como uma luva e fazem Bart persegui-la em grande parte do filme onde esperamos uma surpresa, um twist, para lá das promessas não cumpridas que vemos ela fazer-lhe.

Á semelhança de outros filmes que combinam suspense e acção com voyeurismo, este também pretende trilhar esse caminho, embora por motivos menos sombrios e com um argumento sinuoso, por vezes mal concebido, só resgatado aqui e ali pelas interpretações dos atores bastante assistíveis mas rapidamente esquecíveis. No final temos uma história muito simples que só vale pela interpretação dos seus personagens.

Classificação: 4,5 numa escala de 10

22 de julho de 2020

Opinião – “Capone” de Josh Trank


Sinopse

Al Capone (Tom Hardy), um cruel empresário e contrabandista de bebidas que governou Chicago com mão de ferro, foi o gangster mais famoso e temido na história dos EUA. Aos 47 anos, após quase uma década na prisão, a demência deteriora a mente de Capone, e o seu passado torna-se presente.

Memórias angustiantes das suas origens violentas e brutais fundem-se com a sua vida real. Enquanto passa o seu último ano rodeado pela família, com o FBI à espreita, o debilitado patriarca luta para se recordar da localização dos milhões de dólares que escondeu na sua propriedade.

Baseado em factos verídicos, CAPONE conta a história nunca antes contada dos últimos dias da vida do mais famoso gangster da história.

Opinião por Artur Neves

Al Capone (Alphonse Gabriel Capone de seu nome, também conhecido por Scarface) é o biopic do seu último ano de vida que nos é apresentado por Josh Trank, um realizador americano nascido na California que foi particularmente feliz com o seu “Quarteto Fantástico” de 2012 e a sua série pata TV “The Kill Point” em 2007 mas que neste filme apresenta algumas inconsistências.

“Capone” é assim interpretado por Tom Hardy, no último ano da sua vida na sua sumptuosa propriedade em Palm Island, Flórida, desgastado pela doença contraída na juventude, a neuro sífilis, que lhe provoca alucinações mentais e memórias sombrias de festas luxuosas e visões loucas que constituem a narrativa principal do filme, já que, com um homem incontinente, fisicamente inválido, vago de cérebro e super protegido pela família mais próxima, quase nada pode acontecer que suporte a história que este filme pretende contar.

Tom Hardy é sempre competente no seu desempenho e de acordo com o argumento constrói um personagem demente e sólido na sua loucura, permanentemente agarrado a um charuto que segura no canto da boca que posteriormente é substituído por um toco de cenoura, por recomendação médica após a ocorrência de um derrame cerebral num dos seus desvarios de loucura violenta. A caraterização faz de Hardy um homem pálido, com o rosto marcado por cicatrizes, com vários quilogramas em excesso, flácido, que mastiga charutos e balbucia palavras sem sentido com uma voz que parece de um sapo alojado na sua garganta.

Até aqui tudo bem, o pior começa no enquadramento desta figura que representa os resquícios de si própria, cada vez mais delirante, manifestando visões aterradoras que o filme recria em flashbacks sucessivos, por vezes algo confusos relativamente aos motivos, períodos de vida e aos personagens envolvidos.

Para tentar manter o suspense o argumento serve-se do esquecimento de Capone sobre o local onde terá escondido dez milhões de dólares resultantes da sua atividade criminosa, que ele cita frequentemente como objetivo e o FBI mantém agentes escutando as suas conversas telefónicas e os seus movimentos. Outro caso é o de um filho bastardo que lhe telefona algumas vezes, sem falar, deixando no ar uma promessa de revelação. Só que a história apenas os cita inconsequentemente e rapidamente para logo os abandonar deixando cair os elementos que poderiam ser reveladores de outra realidade atualmente inexistente.

Josh Trank, poderia assim abrir a história para eventos hiperbolicamente concebidos se fecharem na realidade inválida de um homem que sucumbe à sua loucura, mas em vez disso prefere investir no espetáculo que usou nos “Quatro Fantásticos”, apresentando o artifício visionário e a fúria subjetiva de um homem doente em conflito consigo próprio como o agente do vazio de razões em que a história mergulha, concebida por uma mente em colapso, segundo o qual nenhum argumento pode fazer sentido.

O real problema porém, não reside na dependência da fantasia alucinada de Capone mas na conceção estreita e limitada do realizador que ao cingir-se às suas reminiscências confusas e distorcidas sem as conotar com os seus momento anteriores de grandeza e felicidade, afoga a história nas insuficiências de um homem em declínio que só por si não é motivo suficiente para justificar o filme. É pena… Tom Hardy vê-se com gosto.

Classificação: 5 numa escala de 10

21 de julho de 2020

Opinião – “Judy & Punch – Amor e Vingança” de Mirrah Foulkes


Sinopse

Na anárquica cidade de Seaside, os marionetistas Judy e Punch tentam revitalizar o seu espetáculo de marionetes. O espetáculo torna-se um sucesso, graças à elevada mestria de Judy (Mia Wasikowska), enquanto manipuladora de marionetas, mas a desmedida ambição de Punch (Damon Herriman) e a sua propensão para abusar do whisky acabam por provocar uma inevitável tragédia, da qual Judy procurará vingar-se.

Nesta visceral e dinâmica reinterpretação em live-action da famosa peça de marionetas do século XVI, a realizadora e argumentista Mirrah Foulkes dá uma reviravolta na história tradicional de Punch e Judy, juntando-lhe uma forte componente de crítica social e criando uma história de vingança, feroz e sombria mas ao mesmo tempo cómica e épica, com Mia Wasikowska e Damon Herriman nos principais papéis.

Opinião por Artur Neves

Como primeira obra de realização e de escrita do argumento de Mirrah Foulkes, esta atriz que conta entre as suas obras de representação mais emblemáticas, a personagem de Sophie em “Beleza Oculta” de 2012, apresenta-nos aqui uma história de fantasia que recupera os “Punch and Judy” que surgiram na tradição da comédia dell’arte do século XVI em Itália, como forma de contar uma realidade da época que se cingia à supremacia do marido sobre a esposa e ao seu direito feudal sobre ela, constituindo essa prática o motivo central de diversão para gáudio de uma população inculta, com preconceitos atávicos e crenças seguras no poder da bruxaria sob qualquer forma que o feitiço lhe fosse apresentado.

Assim este filme de Mirrah Foulkes, que foi estreado no festival de Sundance traz-nos Punch e Judy os clássicos fantoches brigões que existem pelo menos desde 1600, a exibirem-se na cidade de Seaside, donde é totalmente impossível ver o mar, ou qualquer mar, numa comédia intrigante e sombria em que a alteração da justaposição dos nomes não é acidental mas antes, essa sim, a vingança de Judy sobre Punch, depois de séculos da supremacia de Punch.

É aqui, que Judy e Punch, casados, depois de Judy se ter apaixonado por Punch na sua primeira passagem na cidade, agora com uma filha e morando na casa de Judy que ficou aos cuidados do casal de servos que a criaram, que tentam restabelecer o seu show de marionetas, encenando um teatro medieval, onde uma multidão ululante de espectadores nem sempre deixava sair vivos, os atores ou performers de qualquer outra arte.

A representação não é mais do que o tradicional Punch & Judy, onde na maior parte do tempo o boneco de Punch surra desalmadamente o boneco de Judy e na realidade ele é um bêbado e um falhado querendo arvorar-se no maior marionetista do mundo, enquanto Judy é o cérebro e o talento do espetáculo que antes de fazer a apresentação tem de cuidar das necessidades da filha pequena de ambos e deixar que Punch brilhe em palco e se embebede em casa.

A história do filme oscila entre Shakespeare e Dickens, composta por rufiões, povo crédulo e inculto, vendedores de batata e um polícia incipiente Mr. Frankly (Tom Budge) que representa uma emergente ordem policial que ainda não se sabe impor naquela sociedade desordenada. Todo o filme desenrola-se num mundo próprio que nos proporciona um conto de fadas bizarro e revisionista sobre os bastidores das histórias de marionetas, brutal e elementar.

O próprio sentido humor da história alimenta-se da violência cómica que tradicionalmente está ligada a Punch e Judy, exceto nos heréticos, o povo expulso de Seaside que formou uma comunidade na floresta e que salvou Judy da morte após uma violenta tareia de Punch. A Drª Feelgood (Gillian Jones), líder da comunidade, insiste com Judy que é melhor ela fugir do que tentar combater o patriarcado reinante em Seaside, mas Judy quer vingar a morte da sua menina e como tal não desiste de fazer justiça.

Tem elementos curiosos sobre a tradição do espetáculo de marionetas e um humor sombrio sobre realidades medievais horríveis, mas para Foulkes constitui uma estreia promissora e como tal merece ser vista.

Estreia a 30 de Julho nos cinemas NOS

Classificação: 6 numa escala de 10

16 de julho de 2020

Opinião – “O Paraíso, Provavelmente…” de Elia Suleiman


Sinopse

ES escapa da Palestina em busca de uma pátria alternativa, apenas para descobrir que a Palestina está seguindo atrás dele. A promessa de uma nova vida transforma-se numa comédia de erros: por mais que ele viaje, de Paris a Nova Iorque, algo sempre o lembra de casa. Do premiado diretor palestiniano, Elia Suleiman, aparece-nos uma saga em forma de comédia que explora a identidade, nacionalidade e pertença, na qual Suleiman faz a pergunta fundamental: onde é o lugar que realmente podemos chamar de lar?...

Opinião por Artur Neves

Elia Suleiman é sem dúvida o mais famoso realizador palestiniano cujos trabalhos são reconhecidos na Europa, exibidos e premiados no festival de cinema de Cannes, que em 2019 destacou este filme num intervalo de dez anos do seu anterior, em que Suleiman mais uma vez explora a noção de nacionalidade com identidade e pertença, abordando as caraterísticas dessas expressões com um humor inexpressivo, recriando situações comuns que têm tanto de cómico como de irracional ou absurdo.

Não se pode dizer que é um filme fácil. Suleiman é um realizador e intérprete do seu personagem à maneira de Jacques Tati, mais observador do que comentador e que tal como Tatti compõe habilmente os quadros que nos apresenta para tirar o maior proveito possível de cada mordaça que exibe, através de um personagem mudo, frequentemente estático, de óculos e chapéu de palha cujo arquear de sobrancelhas constitui a sua mais poderosa ferramenta de comédia. Suleiman assume a liderança da história (uma sucessão de casos quotidianos) interpretando um personagem de si mesmo que absorve os absurdos do mundo ao seu redor e responde com o seu olhar e expressão facial que valem mais do que 100 palavras.

Suleiman pertence à comunidade ortodoxa grega Roum e para que o leitor possa formar uma ideia do conteúdo do filme vou revelar-lhe a cena de abertura. Com o ecrã negro ouvem-se vozes de várias pessoas rezando, quando aparece a imagem vemos tratar-se de uma procissão que caminha em direção a uma igreja ortodoxa de portas fechadas. Na procissão, um padre caminha no meio de um grupo de fiéis e emana preces que os fiéis respondem que a salvação está no interior da igreja. Ao chegar à porta da igreja, o padre solenemente bate três vezes e manda a porta abrir. A surpresa é geral quando do interior da igreja um voz anuncia que se recusa a abrir a porta e manda-os embora. O padre embaraçado, repete por mais três vezes a proclamação solene da cerimónia e pelas mesmas vezes a mesma voz se recusa a abrir a porta que os fiéis dizem ser da salvação. Já visivelmente zangado o padre entrega o bordão a um fiel que está próximo, tira a mitra da cabeça e entrega-a a outro, levanta as saias das vestes clericais e caminha em direção à porta lateral da igreja que arromba com um pontapé, entra na igreja e ouve-se no exterior, castigar à pancada os que no interior se recusavam a abrir a porta principal. A cena termina assim.

Depois de outras cenas significativas em Nazaré, sua cidade natal, Suleiman ruma a Paris e posteriormente a Nova Iorque transmitindo-nos a ideia de um exílio permanente, já que em qualquer das duas cidades visitadas ele não se sente mais confortável do que em Nazaré, que não corresponde ao “lar” (ao home) que ele procura, depois da morte dos seus pais, razão última para a sua demanda pelo mundo em busca de uma felicidade indefinível.

Em Paris e Nova Iorque Suleiman mostra-nos com ironia, o absurdo duma perseguição policial em patins a um suspeito só por ser estrangeiro, uma refeição familiar em Nova Iorque num restaurante de fast food em que todos estão armados, até as crianças, ou a paragem em frente de um edifício em Paris, que exibe uma placa indicadora com a frase; “a comédia humana” numa clara universalidade dessa comédia que nos atinge a todos, tornando irrelevante o sítio onde estejamos, pois nas grandes cidades campeiam os mesmos absurdos de que ele procurou fugir na sua cidade Nazaré.

Suleiman oferece-nos ainda a figura do palhaço burlesco, próxima de Buster Keaton, pela forma como se apresenta colocando-se sempre no papel do observador espantado que no fundo é o nosso próprio papel neste mundo insano que nos rodeia. É um filme subtilmente irónico, denunciador do absurdo e das incoerências existentes nas margens da realidade. Gostei e recomendo.

Classificação: 7 numa escala de 10

14 de julho de 2020

Opinião – “Clube dos Divorciados” de Michaël Youn


Sinopse

Após 5 anos de casamento, Ben (Arnaud Ducret) continua apaixonado pela mulher. Até o dia em que descobre, em público, que a mulher anda a traí-lo: além de humilhado, é descartado! Totalmente desanimado e evitado pelos amigos, Ben luta para não soçobrar, até que um dia se cruza com um antigo amigo, Patrick (François-Xavier Demaison) que também está divorciado e lhe propõe que vá viver para sua casa. Ao contrário de Ben, Patrick pretende tirar proveito do celibato recuperado e de todos os prazeres a que renunciou durante o casamento. Aos dois amigos depressa se juntam outros divorciados (Audrey Fleurot, Michaël Youn ...) e os foliões quarentões redigem as primeiras regras do "Clube dos Divorciados", sendo que a primeira delas é viver em permanente FESTA.

Opinião por Artur Neves

O cinema francês sempre se socorreu de particularidades identitárias nas abordagens temáticas que se caraterizam pela simplificação, por vezes espetacular, com que aborda temas sérios que destroem a estabilidade emocional das pessoas envolvidas, que neste caso se reporta ao divórcio e às estratégias utilizadas para ultrapassar as sequelas emergentes.

É o caso desta história em que Ben é confrontado em público, com a traição da sua mulher em presença de amigos e desconhecidos que entre graçolas, desculpas piedosas, e censuras, estigmatizam-no com o ónus do deixado, do abandonado, do preterido por incompetência inerente no cumprimento das suas atribuições.

Numa abordagem real, isto pode ser um trauma dificilmente ultrapassável, no “Clube do Divorciados” é apenas o motivo justificativo para a desbunda, para dar a volta, para a recuperação completa do trauma, que assim se ultrapassa, sem drama nem trauma, nem sequelas de baixa auto estima, considerando que a solução encontrada é fazer tudo o que apetece, sempre que apetece, com quem apetece e está para aí virado(a).

A ideia inicial do filme fundamenta-se num caso próximo de Michaël Youn, (que interpreta na história o personagem de Tiiti) um realizador Francês que já conta com duas comédias de êxito no seu CV, que se passou na vida pessoal do produtor Clément Miserez num caso de separação conjugal, que para lá da dor sentimental lhe permitiu viver algumas situações anedóticas sobre o assunto, através dos cruzamentos que a situação teceu. Daí até ao argumento desta comédia, passaram três anos a lamber feridas e a organizar todo o elenco que de preferência deveria ter alguma “experiência” no tema.

O cinema á francesa é isto mesmo, começar com um drama e através da farsa e da comédia recuperar as motivações profundas do amor que se atenuam com do passar do tempo e permitem inserir a amizade e a ideia de perdão, compreensão, companheirismo especialmente quando há filhos partilhados completamente inocentes relativamente ao turbilhão onde caíram. Tornar o filho do casal interesseiro e ardiloso, quase déspota, já faz parte das múltiplas direções que a comédia pode adquirir.

A principal direção é contudo o regozijo em ser celibatário, estar só, não ter ninguém a criticá-lo, poder ficar duas horas na casa de banho a fazer o que quiser, jogar por exemplo, sem qualquer constrangimento de ainda não ter ido comprar o pão para o pequeno almoço. Estabelecer compromissos a qualquer hora e simplesmente divertir-se sem remorso.

E assim o filme flui durante 108 minutos intercalando cenas de verdadeira anedota e outros mais explosivos do ponto de vista comportamental e musical mas que ainda assim se aceitam pela multiplicidade de personagens que se incluem naquela casa de celibatários masculinos e femininos, todos à procura do berço de onde caíram, porque a principal cauda do divórcio é… sempre… o casamento!... essa instituição social cuja principal utilidade consiste em reduzir o número de declarações IRS entregues anualmente.

Uma história engraçada, algo espalhafatosa por vezes, que nos diverte e surpreende, em exibição nos cinemas NOS a partir de 23 de Julho.

Classificação: 6 numa escala de 10

10 de julho de 2020

Opinião – “Arkansas: Reis do Crime” de Clark Duke


Sinopse

Dois pequenos criminosos, Kyle (Liam Hemsworth) e Swin, vivem às ordens de um chefe do crime chamado Frog (Vince Vaughn), que nunca conheceram. Mas quando uma transação corre pessimamente, consequências assustadoras abalam subitamente a vida rotineira da dupla. Vender produtos ilícitos é um negócio arriscado e duvidoso, sem margem para segundas oportunidades.

Não há certo nem errado. Eles têm de ser eliminados.

Opinião por Artur Neves

Adaptado do romance de 2008; “Arkansas” de John Brandon, uma história sombria e cómica sobre um par de traficantes de droga, algures no sudoeste rural dos USA, Clark Duke apresenta-nos uma história bem construída, ao estilo dos irmãos Coen, Scorcese, ou mesmo Tarantino com menos exuberância, sobre Kyle e Swin (o próprio realizador) que estabelecem um negócio de tráfico sem conhecerem o seu fornecedor e patrão, nem a rede em que estão inseridos, que ilustra a paisagem monocromática do sudoeste americano, bem como, a apática mentalidade dos seus personagens, cujo comportamento inclui atitudes amargamente engraçadas num western dos dias de hoje.

Originalmente programado para estrear no festival SXSW de 2020, este filme sofreu um sério revés na sua programação devido ao surto pandémico que ainda vivemos, tendo ido diretamente para as plataformas de streaming que lhe deram um tratamento indiferenciado, que não teria acontecido noutras circunstâncias.

Este filme é pois um thriller satírico que junta habilmente a atividade clandestina do tráfico de drogas com a tragicomédia da vida de dois traficantes, “parceiros de trabalho” mas nunca verdadeiros amigos ou sequer simpáticos entre si no trato recíproco, que se encontram acidentalmente por encontro marcado por outrem e têm de cumprir escrupulosamente o programa de distribuição estabelecido por alguém que desconhecem de todo e coletar os proventos da venda para o entregarem em data, modo e lugar determinados.

Kyle, todavia é mais presente, e nos seus silêncios, frequentes e duradouros em que junta os dados das observações que recolhe aqui e ali, forma com eles um possível esquema da organização que contudo não é partilhada por Swin que apenas quer usufruir da sua percentagem e viver sem preocupações o tempo que lhe sobra.

Para complicar a história, Swin enreda-se num caso amoroso com uma habitante local, que constitui uma principal violação ao contrato estabelecido por Frog (Vince Vaughn), o patrão desconhecido, que entende aquela atitude como um atentado á sua soberania e uma ameaça ao seu império de distribuição de droga que ele imediatamente se preocupa em eliminar, ou pelo menos em neutralizar. Eles não o conhecem, mas Frog vigia-os e segue-lhes todos os movimentos. Aqui o filme introduz outros personagens e desvenda ligações e intrigas do passado que relançam a história noutros contornos bem arrojados para este realizador que pela primeira vez leva a cabo uma história que não vive do histrionismo dos seus personagens, como nas suas realizações anteriores.

Todos os personagens interagem estre si nesta história como é óbvio, mas cada um tem o seu mundo particular desligado de todos os outros em que, embora assumindo esse “desligamento” criam um conjunto heterogéneo de comportamentos e atitudes que preenchem o ambiente do local, caraterístico do mundo rural dos USA que é memorável e recorda-nos o tipo dos eleitores que escolheram Trump.

À maneira de Tarantino “Arkansas” é dividido em cinco atos onde se manipulam e exibem as particularidades dos seus personagens e dos tempos a que se referem, conjugando os eventos da história sobre, enganos, identidades equivocadas e assassinato que nos prendem e motivam atenção durante os seus 117 minutos de duração. Tem ainda a capacidade de sugerir ao espectador um caminho óbvio de sequência, mas nada mais falso, as sucessivas reviravoltas sinistras depressa nos aconselham a apenas ver e fruir. Interessante.

Classificação: 6,5 numa escala de 10

8 de julho de 2020

Opinião – “A Cor da Ambição” de Giuseppe Capotondi


Sinopse

James Figueras (Claes Bang), um crítico de arte charmoso e ambicioso, caiu em desgraça. Passa os seus dias em Milão a dar palestras sobre história de arte para turistas ignorantes. A sua única réstia de esperança é o seu novo interesse amoroso, a enigmática americana Berenice (Elizabeth Debicki). Dá-se uma oportunidade quando é contactado por um abastado negociante de arte, Joseph Cassidy (Mick Jagger), que convida James para a sua vivenda no Lago Como, e lhe pede para roubar um quadro ao lendário artista solitário Jerome Debney (Donald Sutherland). Mas logo a ganância e a ambição de James levam a melhor sobre si e deixam-no preso numa teia feita por si mesmo.

Opinião por Artur Neves

A cor da ambição é o vermelho alaranjado matizado por zonas mais vermelhas e outras mais alaranjadas, profundamente confundidas na posse do desejo único de ser possuidor da coisa ímpar que completa a falta e potencia o lado mais irrefletido do desejo.

Neste excelente thriller de Giuseppe Capotondi, realizador italiano de 52 anos, que fez carreira no universo dos telediscos, onde em pouco tempo tem de se mostrar o mais possível, traz-nos a adaptação dum romance policial de Charles Willeford publicado em 1971, contando a história de um homem falhado que perdeu os objetivos de outros tempos e agarra-se ao que aparece em busca da recuperação de si e da redenção para os atos que o levaram à atual situação.

Figueras não é intrinsecamente um mentiroso, é um homem que usa os seus conhecimentos e a sua experiencia da melhor forma que os possa adaptar à situação do momento e fá lo com profissionalismo ao guiar turistas sem conhecimentos de arte, nos meandros da pintura de forma a motivá-los na contemplação dessa forma de arte e aqui, os 10 minutos iniciais do filme são extraordinários da demonstração da sua capacidade verbal para transformar o “nada” em “tudo”, desmontando de seguida tudo o que foi dito.

Berenice, pelo seu lado é uma mulher misteriosa, professora na sua cidade natal no Minnesota, em viagem de repouso pela Europa na sequência de uma operação ao útero que lhe motivou maior atenção para si própria e para o que quer da vida. Vive com a sua mãe e esta viagem serve também para repensar a sua situação e reinventar-se. Entra distraidamente na sala onde se realiza a palestra de Figueras, que também serve como apresentação do seu livro sobre arte, e mostrando a irreverencia da sua personalidade e da sua idade, bem como, a disponibilidade do seu espírito aberto, aceita o repto de Figueras, lançado a todos os assistentes da palestra.

Esse encontra é apenas o começo de uma relação com o homem a quem ela confirma o bom começo depois de uma noite de sexo e pergunta como irá acabar no futuro, pois embora exista “química” entre os dois, Figueras é suficientemente reservado nos seus motivos.

Joseph Cassidy é o colecionador de arte que pretende obter uma obra do pintor Jerome Debney (Donald Sutherland com 84 anos, mas sempre surpreendente nas suas interpretações) para a sua coleção e desafia Figueras a obtê-la em troca da sua reabilitação e reconhecimento público perdidos.

Até aqui a história resume-se ao estabelecimento das relações entre este elenco forte o suficiente para que as múltiplas reuniões e conversas sobre o simbolismo da arte, as suas caraterísticas particulares e as suas motivações dos quadros que são citados nos envolvam neste mundo de acesso restrito. Joseph Cassidy sabe o quer, está habituado a obter tudo o que pretende e possui a vantagem ameaçadoramente discreta para levar Figueras a sucumbir irrefletidamente ao laranja avermelhado da ambição que o cega.

Daqui para a frente o filme ganha a dinâmica do thriller e do suspense e vemos Figueras a tentar por todos os meios tirar vantagem de Jerome Debney, o pintor recluso numa casa cedida por Cassidy, que lançou fogo a todo o seu espólio anterior e que hoje pinta na sua imaginação o azul do céu que não possui.

As histórias só acabam bem nos romances de cordel e nas telenovelas e esta não tem nada destas duas categorias, compondo-se num filme que recomendo vivamente. Em exibição nos cinemas NOS.

Classificação: 7,5 numa escala de 10

7 de julho de 2020

Opinião – “Rede de Espiões” de Olivier Assayas


Sinopse

O piloto cubano René González (Edgar Ramírez) deixa a mulher e a filha na ilha comunista, desertando para os Estados Unidos e iniciando uma nova vida em liberdade no início dos anos 1990. Mas René não é o ambicioso empreendedor que aparenta ser. Unindo forças a um grupo de exilados cubanos no sul da Florida, conhecido como Wasp Network (Rede Vespa) liderado pelo agente secreto conhecido como Gerardo Hernandez (Gael García Bernal) torna-se membro de um grupo de espiões pró-castristas incumbido de vigiar e de se infiltrar em grupos terroristas cubano-americanos que tencionam atacar a república socialista. Inspirado na história verídica dos “Cinco Cubanos”, agentes dos serviços secretos, “Wasp Network – Rede de Espiões” é um empolgante e sofisticado thriller político que inclui uma vasta galeria de cubanos e exilados cubano-americanos envolvidos numa complexa batalha entre ideologias rivais e lealdades instáveis.

Opinião por Artur Neves

Potencialmente esta história, que reporta o caso real de agentes infiltrados cubanos, fiéis aos ideais da revolução de Fidel de Castro, tem todos os ingredientes para poder oferecer ao espectador 125 minutos de um bom filme de ação e espionagem… mas nem tanto, o que é uma pena, embora se veja com agrado e contenha momentos de pura emoção.

O realizador Oliver Assayas adaptou o romance de Fernando Morais; “Os Últimos Soldados da Guerra Fria” que relata a história de um grupo de espiões que nos anos 90, após a extinção da União Soviética e o consequente fim da ajuda financeira a Cuba, se infiltrou em vários grupos cubanos sediados na Florida, pretensamente com o objetivo de ajudarem todos os que quisessem sair da ilha e pedir asilo nos USA, usando para isso diferentes meios de pressão como o terrorismo para reduzir o turismo na ilha, ou o tráfico de droga com vista à obtenção de fundos de apoios à contra revolução.

Talvez pela complexidade da história, onde ninguém está inocente, o por Assayas se cingir fielmente ao guião dos acontecimentos, tal como aliás já tinha feito em 2010 com “Carlos”, a história do revolucionário Venezuelano Ramírez Sánchez, o filme perde alguma dinâmica apesar do bom desempenho dos atores utilizados com particular destaque para René Gonzáles e sua mulher Olga; (Penélope Cruz) e filha Irma (Osdeymi Pastrana) em torno dos quais se desenvolve o drama da separação por motivos patrióticos e o pendor emocional que o filme merece.

Eles são pilotos de aviões, fogem e são utilizados pela resistência anti Castro para raids de salvação de refugiados à deriva no mar das Caraíbas, lançar panfletos de propaganda anti Castro sobre Havana e para o transporte de droga desde a Bolívia ou Nicarágua até à Florida. Nesta atividade é claro que outros interesses começam a emergir e outros pilotos, tal como Juan Pablo Roque (Wagner Moura), que já vem com outros contactos e outras motivações, estabelece um tórrido romance com Ana Magarita Martinez (Ana de Armas) como cobertura da sua atividade e consuma a atitude mais velhaca entre duas pessoas num relacionamento e não só.

A sequência do argumento contém desenvolvimentos surpreendentes mostrando diversas atividades que povoam o universo da espionagem e da contra espionagem, porque para o governo de Bill Clinton não é totalmente líquido o apoio aos anti castristas, bem como a permissão de atividades de contra espionagem no seio da organização “Brothers to the Rescue” de apoio aos novos desertores.

É pois toda esta dinâmica intrincada que Assayas nos oferece, que domina as pessoas que a carregam nem sempre com os mesmos objetivos e em que Assayas não se quer imiscuir demasiado retirando algo da perspetiva histórica, das paixões ideológicas e da política, concentrando-se nos múltiplos eventos e relações complicadas no seio do grupo que sucessivamente vem crescendo em número de elementos e de funções. Assayas não foge de todo aos motivos de revolta da alma de um país, mas devido à densidade da narrativa o espírito revolucionário fica adormecido nas atitudes dos seus protagonistas.

Tem valor suficiente para proporcionar um bom espetáculo e está disponível nos cinemas da NOS.

Classificação: 6 numa escala de 10

2 de julho de 2020

Opinião – “Senhores do Crime” de Guy Ritchie


Sinopse

A história do expatriado americano Mickey Pearson um homem que construiu um império de marijuana altamente lucrativo em Londres. Quando se torna pública a notícia de que ele está a tentar lucrar com os negócios para se puder reformar, desencadeiam-se conspirações, esquemas, suborno e chantagem, com a única tentativa de sabotarem o seu domínio de luxo. Realizado por Guy Ritche (Snatch – Porcos e Diamantes; Um Mal Nunca Vem Só) e com Hugh Grant, Michelle Dockery e Charlie Hunnam.

Opinião por Artur Neves

Aí está a reabertura do cinema ao vivo, isto é, em sala… não se trata de uma televisão melhor ou pior, mas da sala escura, onde podemos viver emoções através do visionamento de uma história. Claro que para defesa das distribuidoras e também pela escassez de produção durante os tempos duros que atravessamos (porque a crise ainda não passou) as salas abrem com reposições e no presente caso; “The Gentlemen – Senhores do Crime” é uma reposição feliz por se tratar de um filme contado de uma forma particular por Fletcher (Hugh Grant) um investigador privado, contratado para investigar os negócios de Michael Pearson (Matthew McConaughey) que pretende vender o seu negócio de patrão da droga para se poder reformar e gozar o resto da vida com sua mulher Rosalind (Michelle Dockery) como que de um trabalhador regular se tratasse.

O problema não reside nos desejos de Michael Pearson (tratado carinhosamente por Mickey) mas antes nos potenciais compradores que rivalizam entre si a aquisição do império de Mickey que inclui o multimilionário americano Matthew Berger (Jeremy Strong) e o mafioso chinês Dry Eye (Henry Golding) que não olha a meios para conseguir o que ele já considera seu antes de o possuir.

Fletcher, amigo de longa data de Mickey, aparece em casa dele para uma longa conversa sobre o negócio em que dirime argumentos a favor e contra os potenciais adquirentes, transformando a história numa versão vintage no universo dos filmes de Guy Ritchie.

Este realizador britânico que teve um auspicioso início com filmes negros, ambientados em universos de crime e diálogos espirituosos que evidenciavam o sotaque da Inglaterra profunda e das docas, mudou-se a certa altura para os sucessos de bilheteira de Sherlock Holmes, 2009 e, pior ainda, Aladdin, 2019, para o qual escreveu o argumento, tenta agora redimir-se com esta nova comédia trágica no mundo da droga em Inglaterra, para a qual convida atores de nomeada e com larga experiência, para desenvolverem um trabalho tão árduo como inovador.

Os factos narrados por Fletcher, são visionados na tela como ilustração dos seus argumentos, mas nem sempre correm como previsto, porque Mickey já os antecipara e em certas situações até neutralizara os seus efeitos, mas os dados estão lançados e a narrativa prende o espectador a uma ação que é descrita por Fletcher de uma certa maneira e ocorrem com algumas nuances que estragam as melhores previsões. Deste modo, alguma ação é repetida em duas versões, enquanto Fletcher e Mickey manipulam a realidade sombria nas ficções de Fletcher o que torna o filme credor de alguma complacência do espectador durante os 113 minutos de duração.

No meu entender é por uma boa causa, pois assim transforma-se um nefasto submundo numa sofisticada comédia, polvilhada de piadas racistas sobre chineses cujo autor é o próprio Dry Eye. Mickey por seu lado revela-nos um Matthew McConaughey diferente daquele que conhecemos nos anos 90 e que lhe trouxe o Oscar em “O Clube de Dallas” de 2013, ou “Interstellar” de 2014. Mickey aqui é um sóbrio mafioso, pachorrento nas palavras, muito sentado e quieto, estranha-se, mas o personagem não pede mais.

Por outro lado, de Colin Farrell, aparece como um treinador de box num personagem absolutamente secundário mas animado de um frenesim e uma agitação que o argumento deveria incluir mais no enredo da história. No global é um filme que se vê com agrado, tem suspense e indefinição até ao final, constituindo uma boa opção para uma rentrée tão esperada.

Classificação: 6,5 numa escala de 10