22 de dezembro de 2021

Opinião – “O Acontecimento” de Audrey Diwan

Sinopse

França, 1963. Anne é uma aluna jovem e brilhante com um futuro promissor pela frente. Mas quando engravida, vê desaparecer a oportunidade de terminar os estudos e escapar aos constrangimentos das suas origens sociais. Perante a aproximação dos últimos exames e a barriga a crescer, Anne resolve tomar medidas, ainda que tenha de enfrentar a vergonha, o sofrimento e se arrisque a ir para a prisão. Uma adaptação do romance homónimo de Annie Ernaux, que aborda a sua experiência com o aborto quando este ainda era ilegal em França nos anos 60.

Opinião por Artur Neves

Esta história passou-se em França no início a década de 60 e relata na primeira pessoa os danos físicos e psicológicos com a lei iníqua que vigorava na época, mas o princípio ainda existe inculcado nos espíritos conservadores que mantém vivas filosofias extintas por direito. Como pode ser possível e legítimo negar a uma mulher o direito de decisão sobre o seu corpo e sobre a sua vontade?... pode… e não está muito longe de nós… basta lembrarmo-nos de alguns dos países pertencentes à união europeia, que anteriormente estavam ligados ao extinto bloco soviético, assim como as políticas de conceção ligadas às religiões islâmicas. Este filme é um libelo baseado na memória de quem sofreu isso na pele e publicou o seu testemunho em forma de livro.

A história está muito bem contada através do personagem de Anne Duchesne (Anamaria Vartolomei) que mostra a ansiedade, o terror e a incapacidade de solução para o seu problema à medida que as semanas passam. É chocante observar com toda a crueza o seu desespero crescente e quase insuportável ver a sua cedência a esse desespero através de tentativas perigosas que ela decide experimentar no seu corpo. Em todo o drama da sua história ela esteve sempre sozinha, entregue aos seus medos, à sua vergonha e á culpa imposta por uma sociedade rígida e patriarcal. Os médicos a que tinha acesso não violavam a lei (que vigorou até 17 de Janeiro de 1975) e os mais extremistas mentiam no sentido do tratamento prescrito para provocar dificuldades acrescidas à vontade das suas pacientes.

O filme está bem construído, apoiado numa montagem fluida que nos mostra uma narrativa em forma de corrida conta o tempo e transcreve muito bem toda a pressão sobre Anne à medida que as semanas passam, como um rolo compressor que destruirá tudo á sua passagem, os seus projetos, os seus desejos, o seu futuro, porque se for denunciada será presa e perderá a possibilidade de evoluir socialmente. Nada tem mais importância para Anne do que a realização desse aborto, as aulas já não a motivam, a família fica mais longe e os amigos não têm soluções nem contemplação para o seu segredo, só essa ideia obsessiva a move como uma psicose angustiante que dia a dia a isolará mais do mundo que era o seu.

O cinema já abordou este tema anteriormente como em “Uma Questão de Mulheres” de Claude Chabrol em 1988, ou “4 Meses; 3 Semanas e 2 Dias” de Cristian Mungiu em 2007 em que reporta a ajuda de uma mulher a uma amiga num caso de aborto ilegal na Roménia dos anos 80, mas nunca nos tinha oferecido uma abordagem tão direta da violência que está intimamente ligada a este ato, violência física que implica a enorme resistência de uma mulher que deseja desfazer uma construção do próprio corpo e desfrutar plenamente da sua vontade e da sua liberdade individual para salvar o seu futuro, numa França misógina e conservadora que exclui e condena quem prevarica, tornando-se para Anna uma questão de sobrevivência. Bem estruturado e muito bem interpretado. Venceu o Leão de Ouro do festival de Veneza 2021. Recomendo vivamente.

Tem estreia prevista em sala no dia 6 de Janeiro de 2022

Classificação: 8 numa escala de 10

 

Opinião – “Ressurreições de Matrix” de Lana Wachowski

Sinopse

Da visionária realizadora Lana Wachowski chega-nos o tão aguardado 4º filme da inovadora franquia "A Matriz", que redefiniu o género. O novo filme reúne os protagonistas originais Keanu Reeves e Carrie-Anne Moss nos personagens icónicos dos famosos, Neo e Trinity.

Opinião por Artur Neves

Mais uma vez discordo do “aportuguesamento” do título original de “Matrix” mas as coisas são o que são e não me irei deter neste pormenor, referindo apenas que é o 4º blockbuster que faltava neste ano, devido aos adiamentos provocados pela pandemia.

Matrix é um filme especulativo, isto é, ele combina a ficção informática através e uma realidade alternativa digital dos game makers de jogos de computador, com reflexões sobre a vida real nunca nos mostrando claramente em que plataforma nos encontramos porque a passagem entre os dois mundos é fluida e sequencial em função dos acontecimentos. Porém a filosofia expositiva sobre a vida e o amor são os temas mais fortes do filme embora de uma maneira que não nos foi mostrado nos três filmes anteriores da série, recuperando-se neste várias passagens icónicas já vistas anteriormente.

Recordando a história base desta saga (acho útil rever o fulcro da história) a humanidade, as pessoas, teriam sido sequestradas dentro de um ambiente que simulava a realidade para servirem de alimento, de fonte de energia, às máquinas que se tinham desenvolvido ao ponto de serem capazes de controlar o mundo. Porém, um intruso não vinculado ao videogames, Tomas Anderson, Neo, (Keanu Reeves) começa a ter dúvida da realidade que o cerca e inicia a busca de uma verdade em que possa confiar, através da sua introdução no sistema, no programa de simulação da realidade. Durante esta sua investida ele conhece outra hacker, Trinity (Carrie-Anne Moss) com quem estabelece uma relação afetiva que vai pautar a sua atuação e os seus objetivos, e que o leva ao contacto com do chefe da revolução contra as máquinas dominantes Morpheus (Laurence Fishburne, já falecido e substituído neste filme por; Yahya Abdul-Mateen II) que lhe revela a realidade simulada em que vive e lhe dá a escolher a toma do comprimido vermelho ou do comprimido azul, para enfrentar a dura realidade ou continuar ou viver na simulação, respetivamente. É o filme a apelar ao livre arbítrio da humanidade de uma forma simplista, apenas pela decisão voluntária sem atender às condicionantes e consequências de todas as nossas decisões. Neo descobre assim a verdade que procurava e junta-se à luta contra os “Smiths”, os homens de fato e óculos negros que contaminavam todos os habitantes com quem contactavam com um vírus para ficarem ao serviço das máquinas. Todavia Neo consegue chegar ao Deus Ex-Máquina e negociar com ele a paz com os humanos, bem como a eliminação do agente Smith numa luta derradeira em que não há vencedores. Neo também sucumbe ao Smith.

Neste “Matrix” 4 temos então o reaparecimento de Neo, (a ressurreição) através de uma intervenção nos códigos dos atuais jogos de computador com um código antigo e já pouco usado que o revela, na consola de trabalho de Tomas Anderson que já se tinha esquecido da dupla personalidade que possuía. Aliás nesta história ele anda a tratar-se com um psicoterapeuta por causa de uns sonhos recorrentes que o assaltam e lhe causam depressão. A terapia prescrita pelo médico são os comprimidos azuis anteriormente conhecidos que o fazem permanecer no mundo virtual e ao espectador devem alertar para o duplo papel que o psicoterapeuta deve estar a cumprir, porque viver uma fantasia não é saudável.

Tal como nos anteriores, este Matrix tem cenas extraordinárias concebidas nos sonhos de Thomas Anderson que geram uma simulação, mais devida à quantidade de pílulas azuis que toma do que a pílula vermelha que tomou o primeiro filme em busca da verdade e da realidade, sendo assim uma reinicialização com tiradas filosóficas que enquadram um amor recuperado entre Neo e Trinity, no meio de explosões grandiosas em câmara lenta a várias velocidades, com balas que se apanham com a mão e muitos metadados que renova muito pouco o quadro geral anteriormente criado. No seu enredo apoia-se em várias filosofias que foram pensadas e debatidas longo dos tempos mas que a sua conclusão assenta principalmente em que; nem tudo o que parece é. Neo apresenta-se com um poder diferente, mais repartido pelos outros personagens que talvez devido à idade do protagonista tem menos movimento, mais argumentação e uma inspiração de que consegue voar, ou pelo menos sonhar que pode voar.

Para os amantes da saga o filme é bem-vindo e era esperado, para todos os outros sublinha-se na história que o mundo tal como o conhecemos é uma ilusão que recomenda a dúvida sistemática para se atingir a verdade. Por vezes nem podemos confiar nos nossos próprios sentidos e iludirmo-nos com poções mágicas ou comprimidos de cor diferente, é retardarmos a tomada de consciência. Thomas Anderson só chegou a Neo porque duvidou e perseguiu a dúvida, através de efeitos visuais impressionantes, lutas demolidoras e muitos tiros. Os outros elementos são o visionamento em IMAX, com som Dolby Atmos que torna o filme muito mais imersivo e emocionante ao longo dos seus 148 minutos. Gostei, embora incorpore pouca novidade para lá do desenvolvimento tecnológico relativamente ao filme de 1999 em que a Internet dava ainda os seus primeiros passos.

Tem data de estreia prevista em sala para dia 22 de dezembro

Classificação: 7 numa escala de 10

 

18 de dezembro de 2021

Opinião – “The King's Man: O Início” de Matthew Vaughn

Sinopse

Enquanto um conjunto dos piores tiranos e mentores da história do crime se reúnem para planear uma guerra para exterminar milhões, um homem deve correr contra o tempo para os deter. Descubra as origens da primeira agência de inteligência independente em "The King's Man: O Início".

Opinião por Artur Neves

O cinema reúne e possui a infinita capacidade de exercer a sua visão da história recente ou passada da maneira que mais lhe convém, mas decorrente dessa liberdade também deve assumir a obrigação de não se afastar dos factos tão completamente ao ponto de os substituir por uma macacada que só remotamente, em nomes de intervenientes e datas se reportem a essa história que pretende abordar por um ponto de vista diferente, ou como motivo para uma ficção atual fundamentada no passado. Nestes termos o cinema nega uma das suas mais nobres missões que é ser; um veículo lúdico de cultura.

Se cito isto é por respeito ao público alvo, maioritariamente jovem e com interesses bem diferentes das longínquas razões que fundamentaram a 1ª guerra mundial, que pelo desconhecimento dos factos reais e de nem sequer lhe sentirem os ecos políticos ou qualquer informação sobre o cheiro fétido das trincheiras e dos gaseados que por lá morreram, poderem na sua inocência, pensar, que o que lá se passou tem alguma relação com a macacada de que este filme se serve para se alimentar. Para todos esses, eu recomendo verem urgentemente “1917” de 2019, realizado por Sam Mendes e já comentado neste blogue.

Posto isto, podemos então referir que Matthew Vaughn, realizador e argumentista desta prequela, possivelmente entusiasmado pelo relativo êxito de “Kingsman: O Serviço Secreto” de 2014 onde Colin Firth armado em agente secreto muito British, elegante e bem vestido, mata secamente um extremista de forma pouco convincente, e de “Kingsman: O Círculo Dourado” de 2017 mais agitado, barulhento e estúpido que o primeiro, assume esta realização retrocedendo na linha do tempo, começando na África do Sul e na guerra com os Bóeres, (antigos colonizadores britânicos que queriam dominar o território e foram os responsáveis pela política de apartheid que durante muitos anos dominou o povo e o país) e termina no conflito europeu da 1ª guerra mundial. Honra lhe seja feita pelo menos, ao referir o triunvirato absolutamente louco que dominava a Europa na época, entre o rei George da Grã-Bretanha, o Kaiser Wilhelm da Áustria e o czar Nicolau II da Rússia, todos primos entre si pela existência de casamentos consanguíneos nas famílias imperiais que queriam manter o seu poder à custa de cruzamentos restritos, sempre combinados, entre os membros dessas famílias. É essa loucura tresloucada que faz o Duque de Oxford, Orlando (Ralph Fiennes) pretender constituir uma equipa, que operando em segredo e no mais rigoroso sigilo de meios, possa construir a paz e o progresso num mundo dominado por psicopatas e burocratas, embora nobres e aristocratas super ricos.

Do lado da Rússia, quem dominava a família imperial e a submetia à sua vontade era um monge religioso Grigori Rasputin (Rhys Ifans) místico, déspota e infame em todos os aspetos que mantém até hoje alguma dúvida sobre os seus reais poderes mediúnicos, não se parece nem de longe, com a caricatura carnavalesca de olhos esbugalhados que contracena com o Duque de Oxford quando este o pretende matar e trava com ele uma luta em forma de balet dançante que se aprecia com gosto, mas que não retrata de modo algum o poder e a discricionariedade do místico déspota. Todavia do ponto de vista do filme, encarado somente como uma inconsequente brincadeira para nos ocupar durante 131 minutos o personagem construído por Rhys Ifans está fabuloso, com uma cena de lambidela que vai ficar nos anais do cómico escabroso. Não tem é qualquer relação com o personagem que lhe deu origem e para quem não conhece o terror que foi Rasputin pode até branqueá-lo.

Deste modo o filme de Vaughn apresenta-nos, sobre uma capa de seriedade, um humor sem sentido, com algumas piadas no limite do aceitável, com alguns momentos pretensamente sérios, especialmente com o personagem de Ralph Fiennes, que podemos dizer que “carrega o filme às costas” de tão extensa que se torna a sua presença e faz o melhor que pode e sabe para imprimir alguma dignidade ao processo. Como entretenimento puro o filme até funciona razoavelmente com cenas de ação emotivas, excessivamente construídas é certo, mas ainda assim compatíveis com a diversão pura que pretende, quase recriando o ambiente dos super heróis que de todo, não são para aqui chamados. O que trama a história é a sua premissa ridícula, incorreta, deturpadora da realidade mas que a faz parecer satisfeita consigo mesmo, o que de todo não merece.

Tem estreia prevista em sala em 22 de dezembro

Classificação: 4 numa escala de 10

 

15 de dezembro de 2021

Opinião – “Licorice Pizza” de Paul Thomas Anderson

Sinopse

Licorice Pizza é a história de Alana Kane e Gary Valentine crescendo, correndo e se apaixonando no Vale de San Fernando, 1973. Escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson, o filme acompanha a navegação traiçoeira do primeiro amor.

Opinião por Artur Neves

Paul Thomas Anderson é um realizador muito prolixo tendo iniciado a sua carreira em 1988 com uma curta-metragem e evoluindo rapidamente para voos mais altos dos quais destaco em 2007 “Haverá Sangue”, um western durante o início da prospeção do petróleo nos USA e “Vício Intrínseco” de 2014 que iria permitir uma grande interpretação a Joaquin Phoenix na pele de um advogado viciado em drogas mas ainda assim competente no seu trabalho. Porém, por muitas boas obras é composto o seu trabalho até agora.

Desta vez ele oferece-nos uma história de amor nostálgica entre Gary Valentine (Cooper Hoffman) um adolescente de 15 anos por Alana Kane (Alana Haim) de 27 que coordena a execução das fotografias para o livro de curso daquele ano escolar que Gary frequenta. O encontro entre os dois, fulgurantemente assumido por Gary enquanto aguardava na fila a sua vez de ser fotografado, e para Alana foi displicente por não ser propriamente um garoto que ela pretendia encontrar naquela idade. Todavia a história escrita por Paul Thomas Anderson é envolvente, descontraída e conta-nos o despertar do amor juvenil por dois personagens que lutam pela vida, iniciam a conquista do seu lugar na sociedade através do trabalho, da iniciativa individual no ano de 1973, nos Estados Unidos republicano com Nixon em presidente, que para aqueles que viveram esses anos podem estabelecer o paralelo com a sociedade portuguesa na mesma época, em vésperas do 25 de Abril de 1974.

Lá como cá ambos os países estavam em guerra fora das suas fronteiras naturais, mas o desenvolvimento e a postura dos jovens era significativamente diferente quanto à consciência de si e aos projetos de futuro que enchiam os seus sonhos, bem como as atividades escolares e ambiente nas escolas, nomeadamente o pendor artístico onde se aprecia a colaboração de estrelas da época, como Lucille Ball que participou ativamente em festas escolares. A história criada por Paul Thomas Anderson foi inspirada pelo seu jovem amigo Gary Goetzman que desenvolveu um negócio de venda de colchões de água, que Paul recria e atribui ao herói deste filme.

Gary Valentine é um jovem cheio de iniciativa empresarial que sucumbe aos encantos de Alana Kane desde o momento em que a vê na fila das fotografias e insiste com ela para um encontro num restaurante que ele não sabe bem como pagar, porém isso não lhe interessa porque o chamamento pessoal domina-o e ele confidencia a irmão mais novo de 9 anos que encontrou a mulher da sua vida convidando-o simultaneamente para padrinho desde aquele momento. Pelo lado dela, considera-o um garoto apesar de a mistura de convencimento e charme que ele evidencia tenha sido razão suficiente para aceitar, com relutância, o convite. Gary naquela altura é um faz tudo com vários compromissos profissionais e ainda ator de televisão bem sucedido, na sua opinião, atraindo-a para o seu mundo surreal, muito embora ela não procure um relacionamento romântico nem um namorado tão novo. Gary, por seu lado exibe um comportamento mais velho do que o normal para a sua idade, uma capacidade de argumentação e um sorriso sempre presente, apesar de uma tristeza profunda no olhar. É bom citar aqui que o ator Cooper Hoffman (Gary) é filho do falecido Philip Seymour Hoffman, amigo e colaborador frequente de Paul Andersen, que justifica a personalidade de Gary como um vendedor e pequeno vigarista, gerador de ideias criativas mas sempre honesto e verdadeiro nos seus atos como homenagem à carreira do seu pai. É a vida dentro da história que reporta para a história da vida.

Alana não sabe bem porquê mas continua saindo com ele, sente-se sem o admitir, atraída por ele, intrigada com a sua personalidade inventiva, sem medo, destemida e acompanha-o como amiga mais velha. Ela é que tem carta de condução para distribuição dos colchões, a sensatez para argumentar contra as suas ideias mais loucas e não se coíbe de iniciar outros relacionamentos, porém, é sempre para Gary que ela regressa na mesma condição de amiga, de companheira, de ajudante nas suas iniciativas que cedo nos leva a concluir que ambos estão talhados um para o outro e que o filme acabará quando eles assumirem isso.

De caminho Paul Andersen faz-nos uma fotografia dos anos 70 na américa, mostrando-nos o sexismo, o racismo e a homofobia, apresentando-nos a intolerância como uma ocorrência natural dos dias que passam sempre em torno do eixo condutor Gary Alana. Ela porém é um misto de opções inseguras e duvidosas, sofre os condicionamentos da sua condição e o peso das normas da sua religião que tornam as escolhas dela mais restritivas e mais ponderadas do que as dele. Licorice Pizza é um filme de autor que nos mostra um espaço e um tempo segundo a sua visão e a sua nostalgia desses tempos. Eu gostei, vê-se e diverte enquanto dura e se os mais velhos recordam, os mais novos aprendem.

Tem estreia prevista em sala em 30 de Dezembro

Classificação: 7 numa escala de 10

 

9 de dezembro de 2021

Opinião – “Não Olhem para Cima” de Adam McKay

Sinopse

Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), uma estudante de astronomia, e o seu professor, o Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) descobrem um cometa em rota de colisão direta com a Terra. E, para piorar a situação, ninguém mais se parece importar, porque não é fácil informar a humanidade acerca de algo do tamanho do Evereste que está prestes a destruir a Terra. Com a ajuda do Dr. Oglethorpe, Kate e Randall partem numa digressão mediática para falar com a indiferente Presidente Orlean (Meryl Streep) e o bajulador filho e chefe de gabinete desta, Jason (Jonah Hill), e participar num animado programa das manhãs apresentado por Brie (Cate Blanchett) e Jack. Faltam seis meses para o impacto, mas gerir o ciclo mediático de 24 horas e conseguir a atenção de um público obcecado com as redes sociais prova ser chocantemente cómico. O que será preciso para fazer com que as pessoas olhem para cima?!

Opinião por Artur Neves

Como devem estar lembrados, em 23 de Novembro deste ano (2021) a NASA lançou uma nave espacial para colidir com a “lua” do asteroide Didymos, como ensaio da possibilidade de desvio da órbita do sistema planetário constituído pelo asteroide e pela sua lua, para o hipotético caso deste sistema poder entrar em rota de colisão com a Terra, que na altura do lançamento se encontrava a 11 milhões de Km de distância. Cito este facto para ilustrar o quão importante é esta hipótese, que constitui uma preocupação central para várias entidades oficiais, a avaliação da possibilidade de sermos atingidos por um asteroide errante na imensidão do espaço galáctico.

É este mesmo assunto descrito na sinopse, que constitui o tema central deste filme que Adam Mckay dirigiu, aproveitando-o para construir uma magistral caricatura da sociedade atual, contemplando todas as vertentes condicionantes dos nossos atos, desde a política, ao consumismo e ao apelo social do marketing para que consumamos mais, às redes sociais e ao seu impacto de abrangência global, aos mídia e à sua forma de comunicação como meio de influenciar a nossa opinião, (em 2004, Adam Mckay realizou o filme “O Repórter: A Lenda de Ron Burgundy”, uma crítica sobre o jornalismo em direto na época, que pode servir de reflexão para a forma como o mesmo jornalismo evoluiu durante estes 17 anos) o valor relativo que as diversas instâncias do poder conferem à ciência e aos cientistas, o rigor e o formalismo da hierarquia militar que nem sempre, aliás, nunca é como ingenuamente pensamos pelo que nos fazem crer no rigor das paradas militares e finalmente, o real e inultrapassável poder do dinheiro, que com o sexo são os vetores do verdadeiro poder e as verdadeiras molas reais da sociedade. Reconheço ainda que embora sendo tudo conceitos gastos e conhecidos, a forma como Adam Mckay os faz interagir neste filme é verdadeiramente competente e realista, desenhando uma caricatura onde revemos todos os nossos defeitos como modelo social.

Aliás este tema da destruição da terra por um asteroide já foi utilizado em 1998, no filme “Armagedom” com um Bruce Willis embalado pela aura de herói obtida com saga “Die Hard” e o domínio relativo da nação americana nos diferentes conflitos bélicos em que se envolveu e na ordem mundial que subliminarmente foi instituída com o seu poder, bem como o elogio e o culto dos heróis, pelo que recomendo a atenção do espectador para o “herói” que desta vez foi escolhido neste filme para um primeiro ataque ao asteroide invasor. É fantástico observar a mutação dos valores ao longo de tempos, como o que atravessamos e em que a tecnologia se vai sobrepondo como obreira de magias anteriormente inimagináveis. Neste campo temos também uma excelente caricatura da Apple, do seu Iphone e do seu criador, que no filme é escalado para outros níveis de poder e influência.

Toda a história está muito bem concebida e desenvolvida com personagens que nos lembram “pessoas conhecidas”, através de episódios que não me repugna aceitar estarem associados ao ritmo normal da presidência dos USA, bem como à normalidade das campanhas eleitorais e dos seus objetivos de poder. Aliás, o nome do filme, que respeita integralmente o título original “Don’t Look Up”, refere-se ao slogan da campanha eleitoral intercalar para a presidência numa altura em que já não é mais possível negar a existência de um asteroide em rota de colisão com a Terra (basta olhar para o céu) e que ainda assim o candidato principal pede aos eleitores apoiantes que não olhem para cima e olhem em frente, para o progresso, para o futuro que eles sabem não ter possibilidade de continuar a existir. É fantástico apreciar como se tenta ocultar com propaganda uma evidência insofismável através de promessas bacocas para uma amanhã que já não existirá.

Todo o filme é fabuloso e no final, quando começarem a surgir os créditos finais, não devem abandonar logo a sala, porque existe um curto epílogo passado 22700 anos depois do cataclismo que exterminou a nossa civilização. É uma caricatura muito bem conseguida, inteligente, astuta, divertida, certeira nos pormenores que sublinha e que me surpreendeu significativamente considerando a classificação que pela primeira vez achei justo atribuir. Recomendo sem a mínima reserva.

Em exibição nas salas portuguesas desde ontem, 08 de Dezembro.

Classificação: 10 numa escala de 10

 

8 de dezembro de 2021

Opinião – “O Poder do Cão” de Jane Campion

Sinopse

Severo, de olhos claros, bonito, Phil Burbank é brutalmente sedutor. Todo o romance, poder e fragilidade de Phil estão presos no passado e na terra: ele pode castrar um bezerro com dois golpes rápidos da sua faca; ele nada nu no rio, encharcando seu corpo com lama. Ele é um cowboy tão cru quanto as peles obtidas nas suas caçadas. Corre o ano de 1925. Os irmãos Burbank são fazendeiros ricos em Montana. No restaurante Red Mill, a caminho do mercado, os irmãos encontram Rose, a proprietária viúva e seu filho gentil, Peter.

Phil se comporta tão cruelmente que leva os dois às lágrimas, deleitando-se com sua dor e levando seus companheiros vaqueiros ao deleite dos brutos – todos exceto seu irmão George, que conforta Rose e depois volta para lhe propor casamento. Enquanto Phil oscila entre a fúria e a astúcia, sua provocação a Rose assume uma forma estranha – ele paira no limite de sua visão, assobiando uma música que ela não consegue tocar no piano que George lhe ofereceu. Humilha o filho dela de forma aberta, amplificada pelos aplausos dos vaqueiros ao serviço de Phil. Posteriormente, Phil assume voluntariamente a educação do menino sob sua responsabilidade. Este último gesto é a suavização de uma relação que deixa Phil exposto ou uma trama que se transforma em ameaça?

Opinião por Artur Neves

Jane Campion tornou-se notada quando em 1993 foi vencedora do Óscar da Academia Americana com o filme “O Piano” em que uma pianista muda, a sua filha e um piano de marca, são enviadas para Nova Zelândia, para ela casar com um fazendeiro abastado. Os problemas começam quando um trabalhador local se apaixona por ela. A pianista muda era Holly Hunter que tem aqui a sua ascensão ao estrelato através da direção de Jane Campion que faz dela um personagem ainda hoje inesquecível quando é nomeada pelas suas novas realizações, como neste filme em que o pormenor, a descrição lenta e porfiada da caraterização dos personagens os tornam reais, próximos de nós e convincentes nas atitudes que os vemos tomar na interpretação da história que os suporta.

A sinopse é suficientemente descritiva sobre o enredo da história pelo que vou voltar-me para o desenvolvimento dos personagens que é o que Jane Campion faz melhor, ao seu ritmo lento, pormenorizado, detalhando as diferenças significativas de uma história passada em Montana em 1925, em plena conquista do oeste americano, mostrando-nos que nem só de tiros, índios e cowboys se faz um western. O argumento foi baseado no romance com o mesmo nome, escrito em 1967 por Thomas Savage e o filme teve a sua estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Veneza em setembro de 2021 que lhe conferiu o Leão de Prata de Melhor Realização. O trabalho foi realizado na Nova Zelândia, numa zona montanhosa do país mas que não se parece com o estado de Montana, todavia as tomadas de vista panorâmicas, em jeito do que faria Terrence Malick, são impressionantes e atestam bem a maestria da autora.

As quatro personagens mencionados na sinopse são-nos meticulosamente apresentadas, começando por Phil (Benedict Cumberbatch), que se apresenta como um fazendeiro machista, duro, naturalmente agressivo, que esconde uma homossexualidade latente, menosprezando tudo e todos, bem como todas as atividades que não revelem a virilidade inerente à sua necessidade de a mostrar, para ocultar a sua fraqueza profunda e o seu segredo escondido entre ramos e folhas de árvores da floresta, onde periodicamente se recolhe para solitariamente apreciar em revistas fotográficas da época, corpos musculados de homens. Nesses momentos ele perde-se em fantasias homoeróticas e lembranças do seu mentor Bronco Henry falecido há cerca de 20 anos, de quem ele guardou um lenço que usa para se masturbar. Na realidade ele é apenas um ser sofrido pela sua condição, não é intrinsecamente mau, apenas sente necessidade de compensar a sua fraqueza com demonstrações violentas. 

O seu irmão George Burbank (Jesse Plemons) tem o comportamento oposto dele. É calmo, ponderado a falar com frases curtas e por vezes insuficientes para concretizar uma ideia, e para a necessidade de exuberância do seu irmão Phil, pelo que se torna o alvo das suas provocações, tratando-o sistemáticamente por “gordo”, escarnecendo das suas premissas e da sua falta de apetência para a lidação com o gado. George tem estudos e outra visão da vida de que não abdica, como a constituição de uma família com a viúva Rose Gordon (Kirsten Dunst) dona do restaurante da cidade, que o gere com a ajuda do seu filho Peter (Kodi Smit-McPhee), de aparência esguia, delicado, aspirante a médico, metido consigo e com os seus livros e com as suas habilidades manuais de fazer arranjos de flores em papel colorido que se destinam à decoração das mesas.

É com estes quatro elementos que Jane Campion desenvolve uma história de competição e confronto de personalidades. Quando George e Rose depois de casados coabitam com Phil a casa de família no rancho, Phil envolve-se em provocações psicológicas a Rose que integra muita emoção no papel do seu personagem, mas a força está com Phil. Peter por seu lado, observa, regista, mastiga as humilhações e com base na religiosidade da sua formação folheia o Livro de Oração, lê os Salmos 22:20 “Livra a minha alma da espada minha querida, e do poder do cão”, reflete, e sorrindo suavemente engendra um processo para castigar o pecador. Diabolicamente lindo, muito bem interpretado é merecedor de ser visto com tempo para o desfrutar ao longo dos seus 126 minutos. Recomendo…

Em exibição na plataforma de streaming Netflix e sem data para apresentação em sala

Classificação: 7 numa escala de 10

 

2 de dezembro de 2021

Opinião – “Resident Evil – Raccoon City” de Johannes Roberts


 

Sinopse

Voltando às origens da popular história “Resident Evil”, o fã e cineasta Johannes Roberts dá vida aos jogos para toda uma nova geração de fãs. Em “Resident Evil: Raccoon City”, que já foi a casa em expansão da gigante farmacêutica Umbrella Corporation, Raccoon City é agora uma cidade agonizante do médio oeste. O êxodo da empresa deixou a cidade num deserto... com um grande mal fermentando debaixo da superfície. Quando esse mal é desencadeado, um grupo de sobreviventes devem trabalhar juntos para descobrir a verdade por trás da Umbrella e sobreviver durante a noite.

Opinião por Artur Neves

A saga “Resident Evil” começou em 2002 como sendo a luta de Alice (Milla Jovovich), uma ex-especialista em segurança recrutada pelo governo para lutar contra a farmacêutica Umbrella Corporation que desenvolvia armas biológicas que provocavam um apocalipse zumbi. Com este formato e passando por sucessivas sequelas a saga durou entre 2002 e 2016, sendo o último dos seis filmes produzidos nomeado como; “O Capítulo Final”, mas como é sabido, em cinema o final nem sempre é o fim, e cá temos o reinício em 2021 com este “Raccoon City”, que adapta as histórias dos dois primeiros jogos de computador desenvolvidos pela Capcom Co. Ltd que comprou os direitos da história original, para a apresentar em forma de jogo de vídeo. Inicialmente para a plataforma Nintendo Game Cube em 2002 e o segundo jogo em 2019 para a Play Station e XBox, com relevantes melhoramentos da qualidade da imagem e da fluidez da ação apresentada no jogo. Esta adaptação aos jogos de computador começou logo em 2017, após a apresentação de “O Capítulo Final” e agora é o cinema que se serve do argumento do jogo para nos servir este filme… mais palavras para quê?...

Um aspeto que não pode ser esquecido porém, é que todo este material arrecadou mais de mil e duzentos milhões de dólares durante este tempo, tendo sido classificado como o vencedor dos filmes de terror e de zombies em termos de lucros e o record de mais adaptações para filme de um jogo de computador. É obra… todavia como cinema é mais um exemplar recordado pelo seu lucro e não pela sua qualidade, não esquecendo que tem os seus fãs e o seu público dedicado que com certeza vai cumprir o ritual de assistência e deliciar-se com os efeitos especiais e os monstros criados ao longo da história, pois os personagens serão incrivelmente familiares e bem conhecidos dos jogadores de “Resident Evil” e toda a ambiência da história, bem como o seu argumento linear, de fuga e perseguição, com uma narrativa de ação constante e prolongada não dececionará o seu público fiel, embora não provoque a adrenalina que os jogadores frequentes procuram numa sessão de jogo.

Johannes Roberts não é um novato nestas coisas e procura caraterizar a atmosfera do argumento com uma cidade praticamente deserta, chovendo copiosamente na noite em que Claire Redfield (Kaya Scodelario) resolve voltar á cidade onde já viveu na infância em busca do seu irmão Chris Redfield (Robbie Amell) que ficou na casa de acolhimento quando ela fugiu. Ela volta de boleia num camião cisterna, cujo motorista atinge mortalmente uma garota que aparece subitamente na estrada. O motorista quer abandonar o local mas Claire discute com ele forçando-o a parar para dar assistência à sinistrada que se encontra deitada no chão. Enquanto eles discutem a rapariga levanta-se e foge para a floresta iniciando o sentimento de que algo está muito errado em Raccoon City, depois do abandono da cidade pela corrupta Umbrella Corporation que deixou a cidade a morrer com as suas experiências impróprias. O cão do motorista lambe o sangue que encontra no chão e em poucos minutos fica um zombie furioso que morde o dono transmitindo-lhe o mesmo efeito e provocando nos espectadores fiéis a situação de conforto ao recordarem os cães zombie como sendo as “coisas” mais aterrorizantes utilizadas nos jogos. Estou a ouvi-los pensar nas suas cadeiras: “…aí estão os cães!…”

A familiaridade que os personagens inspiram nos jogadores e nos fãs dos filmes hão de contrastar com um Chief Irons (Donal Logue) chefe da esquadra de Raccoon, que masca desesperadamente um pastilha e se apresenta como um chefe de paródia de polícias descontraídos e sem farda, desinteressados da reunião, ou uma Claire muito mais parada do que nos lembramos de Alice (Milla Jovovich) para quem era tudo ação e competição. Tudo se passa entre os heróis contra os zombies para um final previsível desde muito cedo sendo possível adivinhar o caminho do argumento e com quem será travada a sequência final daquela fuga em perseguição dos zombies. Todavia, não acaba aqui, pois após os créditos principais do filme ainda temos um epílogo que nos informa que o filão ainda não secou e teremos continuação no futuro.

Tem estreia prevista em sala para 09 de dezembro.

Classificação: 4 numa escala de 10