31 de março de 2020

Opinião – “Mistério a Bordo” de Kyle Newacheck


Sinopse

Para renovar os votos de casamento, um polícia de Nova Iorque e sua esposa embarcam numa viagem para a Europa. Durante o voo, eles conhecem um homem misterioso que os convida para passar o fim de semana no iate do bilionário Malcolm Quince. Contudo, quando o mesmo é encontrado morto, o casal americano torna-se o principal suspeito do crime. Juntos, eles tentarão a todo custo investigar o caso e provar sua inocência.

Opinião por Artur Neves

Numa altura em que o tempo e a vida se esvaem sem utilidade nem préstimo, neste confinamento domiciliário obrigatório embora prudente, seria bom conseguir parar o cérebro e para ajudar a esse objetivo nada melhor do que uma comédia de mistério e romance com um ator (Adan Sandler) que se reinventou nesse extraordinário filme, também já comentado neste blogue; “Diamante Bruto” para a mesma produtora, Netflix, que nos traz a presente proposta.
Trata-se de uma história policial na linha dos contos de Agatha Christie com o seu Poirot de pacotilha na figura de Nick Spitz (Adam Sandler) com todos os ingredientes do género incluindo a sábia exibição da dedução do crime perante todos os suspeitos do costume reunidos em plácida e atenta audição, bem como o responsável da polícia local, Inspetor de la Croix (Dany Boon) incluído na contemplativa assistência.
Só que nenhum dos personagens corresponde ao figurino da mestra, Nick e sua esposa Audrey Spitz (Jennifer Aniston) que até já foram casados na vida real, estão a bordo do iate do magnata Malcolm Quince (Terence Stamp) sempre sério e respeitável como o conhecemos, por razões avulsas e casuais, constituindo a categoria de “penetras” numa reunião familiar com a qual não têm relação alguma e assistem ao assassinato de Quince, em plena cerimónia de anúncio do casamento deste com Suzi Nakamura (Shioli Kutsuna) ex-namorada de Charles Cavendish (Luke Evans) e da comunicação da alteração do testamento, inicialmente distributivo pelos presentes a agora destinado a uma única pessoa.
Nestas condições o casal Spitz torna-se o alvo preferencial de incriminação pelo assassino e já que a polícia é incapaz de deslindar o enredo por de traz do crime, caberá a eles defenderem-se provando a sua inocência através da descoberta do verdadeiro culpado.
É a partir daqui que a paródia se desenrola, com fugas mirabolantes, assassinatos de outros intervenientes, perseguições de carros nas ruas estreitas do Mónaco ao melhor nível de James Bond, com o casal Spitz no centro das operações, ele como candidato chumbado no exame a detetive e literalmente sem pontaria na utilização de armas de fogo e ela, cabeleireira de profissão, mas arguta no raciocínio de investigação e líder da “equipa” assim formada, que tem de descobrir os culpados.
O argumento é simples e o realizador Kyle Newacheck aposta forte na capacidade interpretativa dos seus personagens, criando condições que nos fazem pensar que todos são culpados, e de facto são, se nos deixarmos arrastar pela vertigem dos gags mais ou menos comuns de um grupo bem disposto que só nos quer animar. Aniston e Sandler mostram suficiente amizade depois do divórcio que podemos ainda vislumbrar alguma química entre eles e ela dedicou-se de tal modo ao personagem que o faz brilhar uns “furos” acima do de Sandler, justificando a sua escolha.
Nesta altura, a carreira de Adan Samdler ainda está congelada nas travessuras avulsas que é comum ele mostrar nos filmes que fez até aqui. A tentativa de ser o maior e o mais corajoso, a indumentária escolhida para um jantar de cerimónia, o cartão prenda de US $50 que ele comprou para oferecer a Audrey no aniversário dos seus 10 anos de casamento.
É um filme para ver e esquecer, tal como o tempo que vivemos é igualmente para esquecer, vale enquanto dura e se durante esse tempo nos conseguirmos alhear dos problemas que nos cercam, vale completamente a classificação que lhe atribuo a seguir.

Classificação: 6 numa escala de 10

26 de março de 2020

Opinião – “Transiberiano” de Brad Andersen


Sinopse

Depois de uma missão religiosa na China, Roy (Woody Harrelson) e Jessie (Emily Mortimer) decidem fazer a viagem de regresso no célebre Expresso Transiberiano, passando por Moscovo. Durante o longo percurso de seis dias, travam conhecimento com Carlos e Abby, um estranho casal. Apesar de parecerem dois turistas como quaisquer outros, cedo revelam não ser o que aparentam. Mas quando dois detectives russos entram no comboio, Jessie compreende que algo terrível vai acontecer. Ela e Roy acabam por tornar-se alvos de uma investigação, comandada por um ex-detective do KGB (Ben Kingsley), e que envolve tráfico de drogas.

Opinião por Artur Neves

Proponho hoje a revisitação de um filme que foi estreado em Portugal em Julho de 2009 e que pode ser visto amanhã, dia 27 de Março no canal NOS – Studio às 01h:55’ ou à hora que mais lhe convier desde que possa “viajar no tempo” e assistir ao filme em diferido, durante uma semana a contar da data de projeção. Outra opção é encomendar o DVD na Fnac por €5, ou adquirir o Blu-Ray na Amazon por €6. Apesar de se tratar de um filme com 11 anos ainda é agradável e emocionante de assistir.
A história decorre numa viagem do comboio Transiberiano, que liga Pequim a Moscovo através das paisagens geladas da Sibéria acompanhando a viagem de uma casal americano jovem; Roy (Woody Harrelson, quando ainda interpretava personagens de jovem inconsciente) e Jessie que travam conhecimento com outro casal jovem, mas não inconsciente como eles; Carlos (Eduardo Noriega) e Abby (Kate Mara) e se envolvem numa relação de proximidade que posteriormente se revela comprometedora.
Roy e Jessi regressam de uma missão de caridade na China organizada pela sua igreja e utilizam aquele meio de transporte por uma questão de aventura, recusando o voo que lhes estava destinado. Vamos posteriormente descobrindo que a relação entre os dois resultou de um desastre provocado por álcool e droga e que ambos se ampararam entre si na recuperação. São dois seres em expiação de culpas passadas.
Carlos e Abby, pelo contrário são dois mochileiros que viajam por vocação à procura do seu lugar no mundo não rejeitando tarefas ilegais que lhe possam render dinheiro fácil. Todavia, Carlos procura deliberadamente o sucesso a qualquer preço, enquanto Abby apenas pretende conseguir resgatar o seu paraíso idílico, numa postura diferente da do seu companheiro.
A história complica-se quando Roy conhece Grinko (Ben Kingsley), um inspetor Russo do departamento de narcóticos que nunca mais o larga e se esforça por lhe tentar ensinar Russo em todas as situações e se insinua na vida do casal sem uma razão explicita que a suporte. Adicionado a isto, os colegas de de Grinko na investigação não aparentam a condição de polícias, sendo desculpados por este com respostas evasivas. Apenas a insistência de Grinko na envolvência com o casal provoca a subida de tensão nos diálogos e nas cenas.
Aqui chegados, temos o quadro completo do “suspense hitchcockiano", um meio confinado ao comboio em movimento, um número de personagens restrito e já conhecido, embora não completamente definido, e uma história que começa a revelar as suas mutações com todos os personagens a terem alguma coisa para esconder para conseguirem manter as premissas anteriormente assumidas. Em cada quadro do enredo, em cada insistência de Grinko, em todas as aproximações de Grinko ao casal Roy e Jessi pode sentir-se a presença velada do mestre do suspense e da emoção crescente.
O deserto árido e gelado da Sibéria reforça o isolamento dos personagens e constitui o elemento estático da tensão e da insegurança que o realizador Brad Andersen constrói lentamente desde as primeiras cenas, onde ninguém pode sentir-se seguro, porque a sugestão do desastre é iminente, todavia, quando acontece não corresponde ao que se esperava e isso é divertimento puro de cinema. Recomendo.

Classificação: 7 numa escala de 10

23 de março de 2020

Opinião – “Contágio” de Steven Soderbergh


Sinopse

Um vírus letal, altamente contagioso e transmitido pelo contacto com pessoas infetadas ou com objetos que estas tenham tocado, espalha-se rapidamente pelo planeta, enquanto a comunidade científica tenta descobrir uma possível cura.
Contudo, a sociedade mostra-se cada vez mais vulnerável à pandemia.

Opinião por Artur Neves

Não, não é por razões mórbidas que retorno a um filme estreado em Portugal em Outubro de 2011 sobre o contágio generalizado de uma população por um vírus letal, mas sim pela semelhança com os tempos que estamos vivendo agora, podendo em algumas situações aquela história tornar-se premonitória, de tão bem informada sobre os procedimentos a tomar, consequências diretas, e indiretas nas redes sociais que começavam a despontar em que Alan (Jude Law) é o seu principal dinamizador, e ações a desenvolver. Atualmente este videograma está disponível na plataforma de streaming; Amazon Prime Video.
O filme começa no segundo dia do contágio e revela, numa atitude algo moralista, que a causa foi o contacto numa relação extra matrimonial de Beth Emhoff (Gwyneth Paltrow) em Hong Kong, com o seu antigo namorado que já se encontrava contagiado, e onde ela se deslocou em trabalho. Todavia, para a história o que interessa sublinhar é que ela foi o paciente zero a contrair por contágio a nefasta doença que se propagará pelo mundo.
Por razões não explicadas na história, Mitch Emhoff (Matt Damon) marido de Beth é imune ao vírus e fica a tomar conta do filho de ambos Clark (Griffin Kane) quando Beth, pouco depois de ter chegado a casa, em completa falência física, tem necessidade de ser internada no hospital e falece da doença sem cura. Esta é principal diferença do vírus para atualidade, pois como sabemos a Covid-19 embora mate, mata lentamente e com moderação.
Steven Soderbergh, realizador americano cuja atividade de realização foi abandonada, tendo-se dedicado à produção de filmes e séries documentais, constituiu no seu tempo uma referência em Hollywood decorrente do pormenor e veracidade que impunha às suas realizações, sempre complementadas por uma noção de arte segundo um formalismo abstrato que tornava a história dos filmes direta e escorreita.
Assim, este é um filme metódico, sem câmara na mão em que o Dr. Ellis Cheever (Laurence Fishburne) epidemiologista, dirige os seus mais diretos colaboradores; Drª. Erin Mears (Kate Winslet) para o Minnesota para acompanhar a evolução da infeção e Drª. Leonora Orantes (Marion Cotillard) responsável na sede da OMS pelo departamento de virologia, voa para Hong Kong para investigar as causas da infeção, enquanto o Dr. Ian Sussman (Elliott Gould) acompanha a evolução da doença e a investigação de uma vacina em S. Francisco.
As cenas desenvolvem-se em vários “tabuleiros”, tudo muito metódico e acético como convém fazendo-nos sentir o progresso da pandemia, com diálogos rápidos, desempenhos individuais setorizados, á medida que a infeção se desenvolve sem possibilidade de retorno.
Toda a história segue uma cronologia segura da crise em desenvolvimento, Soderbergh dá-nos pistas e permite que tenhamos as nossas suspeitas. É um filme de desastre, com pânico e caos, e no final, torna-se simplista e ingénuo, apresentando o primeiro dia do contágio e a origem do vírus, como que a dizer-nos que a globalização como solução económica pode trazer-nos reveses que não previmos. Teve o seu tempo, é certo, mas ainda continua visível, nomeadamente no tempo estranho que atravessamos.

Classificação: 6 numa escala de 10

19 de março de 2020

Opinião – “Lost Girls” de Liz Garbus


Sinopse

Quando Shannan Gilbert, de 24 anos, desaparece misteriosamente certa noite, a sua mãe Mari (Amy Ryan) inicia um percurso obscuro onde tem de encarar difíceis verdades sobre a sua filha, sobre si própria e ainda a indiferença da polícia.
Determinada a encontrar a sua filha, Mari Gilbert revisita os últimos passos conhecidos de Shannan, levando a cabo a sua própria investigação que a conduz a uma comunidade fechada nos arredores de Long Island. As suas descobertas obrigam as autoridades e os meios de comunicação a revelar mais de uma dezena de homicídios de profissionais do sexo por resolver - vidas de jovens que Mari não deixará que caiam no esquecimento.
Inspirado no livro "Lost Girls: An Unsolved American Mystery", de Robert Kolker.

Opinião por Artur Neves

Nestes dias estranhos o streaming da Netflix é uma opção para a ocupação do tempo que nos resta e no caso do presente filme trata-se de mais uma teatralização da vida real com base numa história verídica, que infelizmente não é nova, ao ponto de já pertencer a um livro que não permite que estes casos caiam no esquecimento.
A história que este filme nos conta é real e sombria e relata o mistério do desaparecimento de uma profissional do sexo de 24 anos que sendo perseguida na noite do dia 1 de Maio de 2010 e apesar de conseguir realizar uma chamada para a linha de emergência e de pedir socorro, não foi atendida e a polícia demorou dias antes de organizar uma investigação, depois da comunicação de desaparecimento feita pela sua mãe e após transcorrido o prazo legal para que a sua ausência seja considerada desaparecimento, a partir da data da denúncia.
No telefonema ela ainda conseguiu gritar “eles estão tentando matar-me” mas a hora avançada e o local da chamada, indiciavam uma atividade censurável muito comum da zona que implica um estigma social. Só uma mãe lamenta a sua filha desaparecida, seja ela trabalhadora do sexo ou não, e sabe que ela nunca será considerada como; “amiga, filha, irmã” de alguém, mas sempre e só, com o estigma da sua atividade.
Embora a história reporte um caso de polícia o argumento faz da mãe de Shannan Gilbert a protagonista, com o sabor amargo de ser também corresponsável pela atividade profissional da fila decorrente do abandono a que a votou, na sequência do seu divorcio, crise de bebida e droga e abandono pessoal.
Hoje Mari já está recuperada, procura a redenção através da sua luta diária em manter a estabilidade social e suprir as necessidades das suas duas filhas mais novas, através do trabalho que desenvolve em dois empregos modestos em Ellenville, Nova York. Todavia isso não lhe alivia o remorso das muitas coisas que ela não sabia, ou que recusava saber, sempre que pedia dinheiro a Shannan Gilbert para satisfazer os seus vícios.
É também a história de uma mulher com raiva de si, que não pode aceitar sozinha o remorso da sua culpa, tentando incluir a sociedade que igualmente não lhe foi favorável. Ela acusa a polícia de inação e desinteresse, afirma que fez tudo pela filha, sem acreditar no que diz e movida pela vergonha, organiza uma manifestação de protesto com as mães das outras raparigas, cujos cadáveres foram encontrados pela polícia na mesma área, quando finalmente se decidiram iniciar uma investigação. Mari (Amy Ryan) constrói aqui um personagem credível de meia idade, com um rosto duro e sem brilho, emoldurado por uma cabeleira loura que contrasta com a sua expressão de raiva e remorso.
É pois uma história multifacetada que apresenta uma atitude defensiva e reacionária da polícia, que se opõe à angústia de mães enlutadas, em luta contra a proteção das autoridades aos ricos e poderosos que embora suspeitos, não passam dessa condição. Aliás, Richard Dormer (Gabriel Byrne) encarregado da investigação é um homem cansado, vencido pela vida e à beira da reforma que ele não pretende complicar. Interessante e emotivo, vale a pena ver.

Classificação: 6 numa escala de 10

10 de março de 2020

Opinião – “A Verdade” de Hirokazu Koreeda


Sinopse

Fabienne (Catherine Deneuve), um ícone do cinema, é a mãe de Lumir (Juliette Binoche), que escreve argumentos em Nova Iorque.
A publicação das memórias daquela grande atriz leva Lumir a regressar à casa da sua infância, com a família.
Mas o reencontro depressa virará confrontação: verdades abafadas, rancores inconfessados e amores impossíveis revelam-se sob os olhares espantados dos homens. Fabienne está a fazer um filme de ficção-científica onde tem o papel da filha envelhecida de uma mãe perpetuamente jovem. Realidade e ficção confundem-se, obrigando mãe e filha a reencontrar-se…
Realizado pelo japonês Hirokazu Koreeda, “A Verdade” é o primeiro filme do realizador após a nomeação de ‘Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões’ ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Opinião por Artur Neves

A primeira coisa que me surge para dizer sobre este filme é que é um filme estranho, se não vejamos: Realizado pelo japonês Hirokazu Koreeda detentor da Palme d’Or em Cannes 2018 com o filme “Shoplifters: Uma família de Pequenos Ladrões” a dirigir um filme de ficção científica em França, com Fabienne Dangeville (Catherine Deneuve), que com 73 anos é mais velha do que a mãe, Amy (Ludivine Sagnier) que não envelhece por estar a viver num outro planeta longe da Terra e deslocou-se para ver a filha.
Por seu lado Fabienne, recebeu a visita da filha, Lumir (Juliette Binoche) argumentista, que vive em Nova Yorque com seu marido Hank (Ethan Hawke – um ator que nunca valorizei mas que está francamente a melhorar) e a filha do casal, Charlotte (Clémentine Grenier) numa história de família falada em Francês e Inglês, incluindo a pequena Charlotte, um cão, mas que nem ladra e um cágado… obviamente mudo.
Confuso?... eu também fiquei, mas as coisas vão-se compondo com uma história irónica, uma Fabienne coquete que se assume como mentirosa, alegando que por ser atriz tem todo o direito para tal e uma Lumir que viaja até à Europa para assistir ao lançamento do romance autobiográfico da mãe, depois de lhe corrigir a versão final do texto, reconhecendo-lhe as inverdades que ela recorda de atenções e cuidados pela filha, mas de que ela não se lembra e os contesta.
Fabienne não liga muito ao assunto nem às correções apontadas pela filha e admite alegremente as falhas referidas por Lumir justificando-se com o facto de a verdade ser mais chata do que a versão que ela arranjou para o livro, ter querido ser melhor atriz do que realmente é, ser egoísta, frívola, sem instintos maternais e oportunista em usar os outros a seu belo prazer, fazendo-se amar apenas pelos que não a conhecem ou privam de perto com ela. Despachou o marido, pai de Lumir, e vive já com o terceiro substituto cuja principal caraterística é servir-lhe sempre o chá à temperatura que ela gosta, apesar de ser um desastre na cama.
Uma temática destas não é comum em filmes franceses, particularmente com atores tão significativos da cultura francesa, portanto só pode ser classificado como um filme estranho. Por outro lado parece ser uma imagem invertida de “Shoplifters”, onde se conta uma história de estranhos que parecem ser parentes. Aqui, conta-se a história de parentes que parecem ser estranhos e constitui o grande trunfo de Koreeda que nos “pinta” um quadro de família comovente e caloroso, com ironia e malícia suficiente que nos prende em diálogos surpreendentes.
Considerando obras anteriores deste autor, tais como; “Andando” de 2008 ou “Tal Pai Tal Filho” de 2013, pode concluir-se ser mais uma manifestação da tendência de escalpelização das relações familiares de Koreeda, que nos oferece a sua visão perspicaz e inteligente sobre a natureza dos relacionamentos entre pais e filhos e a sua evolução numa família moderna onde as coisas não acontecem como tradicionalmente deveriam acontecer, ou esperamos que aconteçam.
Por oposição, decorrem as relações entre Fabienne e Amy no filme de ficção científica que ambas estão a filmar e que tanto desagrada a Fabienne, que tem de ser forçada a voltar ao estúdio para que não seja acusada de rutura de contrato.
Trata-se portanto de uma história ousada que identifica a família como uma coisa viva, animada, onde é perigoso confiar totalmente na justeza da memória do passado, retirando-lhe a oportunidade de se renovar e de se compor com novas realidades. Algo complexo mas interessante, recomendo.

Classificação: 7 numa escala de 10

7 de março de 2020

Opinião – “All the Bright Places” de Brett Haley


Sinopse

Baseado no romance best-seller internacional de Jennifer Niven, “All The Bright Places” conta a história de Violet Markey (Elle Fanning) e Theodore Finch (Justice Smith), que se encontram e mudam a vida, um do outro para sempre.
Enquanto lutam com as cicatrizes emocionais e físicas de seu passado, os dois adolescentes lidam com problemas pessoais e criam uma forte ligação, enquanto embarcam numa viagem para documentar os locais mais deslumbrantes do estado de Indiana.

Opinião por Artur Neves

Este é mais um filme da plataforma Netflix que está a introduzir alguma revolução no modo de ver cinema e de encarar o próprio espetáculo em si mesmo. Se até agora o cinema de estreia só estava acessível em sala dedicada, escura e com o ambiente adequado como norma, com esta plataforma pode assistir-se aos mesmos conteúdos num pequeno ecrã de 83” e 16x9, num pequeno tablet ou smartphone apoiado no colo, ou mesmo na velhinha televisão de tubo de raios catódicos se complementada por uma TVBox equipada com saída AV.
Obviamente que em cada uma das situações não temos a mesma experiência mas é o que o futuro nos trouxe e significa uma evolução tecnológica que cabe a cada um decidir se adere, em melhores ou piores condições, com incidência direta na sua carteira.
No caso presente a Netflix renomeia este filme para Portugal como; “Fala-me de um Dia Perfeito” e trata-se de uma história de amor romântico entre dois jovens perturbados psicologicamente por eventos anteriores que vamos conhecendo ao longo da história. Eles andam na mesma escola e só falam diretamente um com o outro quando Finch encontra Violet sobre o parapeito de uma ponte com intenções de se suicidar. A razão de Finch se encontrar naquele local, aquela hora, também não é a melhor mas o facto de ter convencido Violet a voltar para um lugar seguro, dá a ambos uma perspetiva renovada dos seus próprios problemas.
Finch é um aluno problemático, frequentemente envolvido em lutas e disputas físicas com raiva violenta que o tornam sinalizado para ser acompanhado num apoio psicológico especializado que ele aceita com desinteresse e um largo sorriso de desafio. Violet que já tinha sido uma borboleta social entre as suas colegas, estava agora remetida ao mutismo de uma solidão autoimposta pelo remorso de culpa no envolvimento da morte da irmã.
Brett Haley tenta assim uma adaptação difícil do drama escrito por Jennifer Niven, envolvendo os dois candidatos a apaixonados a sucessivas camadas de tristeza, suicídio (Finch autoflagela-se em sucessivas tentativas de suspensão da respiração por longos momentos na banheira e na piscina) e doença mental ao mesmo tempo que nos conduz ao aparecimento do amor límpido entre dois jovens perturbados.
Os trabalhos escolares motivam a insistência dele para que ambos constituam um grupo de trabalho, contra a relutância dela em aceitar a proposta, porém, depois de ter aceitado a sugestão, a recolha de dados implica a deslocação de ambos para diferentes locais do estado de Indiana (“Todos os locais Brilhantes” na referencia original do nome do filme) o que aumenta o conhecimento mútuo e constitui um objetivo real para a vida, para lá de Violet se interessar por Finch e de se pretender constituir como sua salvadora, como ele inicialmente fez com ela e ela não conseguiu ser para a sua irmã falecida.
Assim, o realizador apresenta-nos uma abordagem diferente ao comum amor jovem e romântico. Existem muitas dificuldades de relacionamento entre ambos numa ligação de amor em que a inspiração de morte está sempre presente. Os acontecimentos vão-se sucedendo e a relação torna-se dúbia, colocando a história num patamar de mistura entre trevas e luz a caminho do desequilíbrio, que não vou revelar para não estragar o interesse do filme.
Tal como na vida real as coisas podem ser muito desafiadoras ou desanimadoras e até totalmente desprovidas de esperança, mas vale sempre a pena procurar os lugares claros nos tempos sombrios, (no sentido original do título) ou procurar os momentos perfeitos nos dias sombrios (no enfoque do título para Portugal) para permitir que alguém à nossa volta se sinta menos isolado, e os 107 minutos de filme justificam essa premissa.

Classificação: 6 numa escala de 10

5 de março de 2020

Opinião – “Os Melhores Anos da nossa Vida” de Claude Lelouch


Sinopse

Eles tinham-se conhecido há muitos anos, um homem e uma mulher cujo fascinante e inesperado romance, mostrado no agora icónico filme, revolucionou a forma como compreendemos o amor.
Hoje, o antigo piloto de automóveis de corrida parece incapaz de aceder às suas memórias; para o ajudar, o filho procura a mulher que o seu pai não conseguiu conservar, mas de quem não cessa de falar.
Anne volta a reunir-se com Jean-Louis e a ligação entre os dois recomeça no ponto onde eles a tinham deixado…

Opinião por Artur Neves

Claude Lelouch, atualmente com 83 anos, não se liberta da sua icónica obra-prima dos anos sessenta “Um Homem e uma Mulher” de 1966, filme largamente premiado e vencedor do Oscar desse ano, em que o jovem piloto de automóveis, Jean-Louis (Jean-Louis Trintignant) vive um tórrido caso de amor, simples mas sublime, com Anne (Anouk Aimée) e do qual já fez um remake em 1986, “Um Homem e uma Mulher: 20 anos depois” cuja aceitação crítica não pôde ter influenciado este retorno ao tema, pois esse filme ficou perdido na espuma do tempo, tal como até hoje se mantém.
Confesso que este autor já foi um dos meus preferidos naquele tempo, complementado com duas obras que reputo de muito interessantes; “Toda Uma Vida” de 1974, como introdução e “rascunho” de argumento do também icónico “Uns e os Outros” de 1981, onde ele retrata magistralmente o pós guerra europeu de 1939-45, entretecendo personagens significativos para época, numa história que contempla os sobreviventes do Holocausto e culmina na magistral interpretação do Bolero de Ravel, por Rudolf Nureyev na praça Trocadero em Paris.
Desta vez Lelouch junta novamente Anne e Jean-Louis, com 86 e 88 anos respetivamente, ela francamente mais apresentável e vibrante do que ele, que exibe uma lamentável impotência física e mental. Ele está ligado a uma cadeira de rodas, passa todo filme sentado na cadeira ou num sofá onde revê a sua antiga apaixonada e a reconhece brevemente por um movimento de remoção do cabelo dos olhos, mas toda a conversa entre os dois remete-se ao que foram, ao que sentiram e às memórias do que viveram que para Jean-Louis são sempre remotas e vagas. O único momento em pé de Jean-Louis é quando, ajudado por Anne, executa uma transição entre o sofá e a cadeira de rodas que promove a sua locomoção.
A magia do encontro é preenchida com flashbacks do passado que ambos viveram extraídos do filme de 1966, quando sentados no jardim da casa de repouso que serve de abrigo a Jean-Louis, ou em pequenos passeios no Citroen 2CV de Anne, que se vêm a revelar sonhos e devaneios da mente perturbada de Jean-Louis, enquanto sonha acordado com o amor que viveu e os fragmentos que recorda.
A velhice, a degradação física e mental das pessoas não será o elemento real mais importante para exibir num filme e por mais curioso que seja, ver Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée representarem os personagens que os fixaram no nosso imaginário, talvez pela última vez, não terá o mesmo impacto nas novas gerações até aos 30 anos, para os quais o “amor dos avós” significa apenas um dos factos que lhes deu origem, ou para a geração até aos 60 anos, em que se consciencializa a eventual inevitabilidade daquele futuro mas que todavia desconhece e não quer partilhar, ou na geração posterior, que se assistir ao filme o olhará com indiferença, porque naturalmente a imagem refletida naquele “espelho” não é reconfortante para a consciencialização das suas capacidades perdidas.
A reunião tardia entre Anne e Jean-Louis, revivendo o amor que viveram e os lugares onde o praticaram, poderia ter acrescentado algo de novo á criação cinematográfica, mas tal não aconteceu decorrente da demasiada recorrência ao filme de 66, em confronto com uma realidade bem diversa que nada tem a ver com a desse tempo passado. O modo de Lelouch filmar é idêntico, a envolvência das emoções pela música também, mas o primeiro é vida pulsante, o segundo é o prenúncio da morte e cabe-nos a nós próprios definir o momento de sair de cena pelos nossos próprios meios.

Classificação: 4 numa escala de 10

3 de março de 2020

Opinião – “Mulheres de Armas” de Peter Cattaneo


Sinopse

Kate (Kristin Scott Thomas), é a mulher perfeita de um oficial, que suporta com elegância e estoicismo uma vida de ansiedade e solidão, quando ele se encontra ausente em missões militares.
Encontrando liberdade em cantar, ela convence um grupo de mulheres da base a formar o Coro de Mulheres de Militares.
Uma das mulheres, Lisa (Sharon Horgan) – recém-chegada, rebelde, inconformada e inicialmente cética pelo amadorismo do grupo, vê-se rapidamente convencida pela amizade, humor e coragem do coro, assumindo com Kate a sua direção.
Na busca de uma voz única, Kate, Lisa e o coro fazem frente às convenções e às suas próprias diferenças pessoais.
Entoando sucessos da pop e hinos do rock, este extraordinário grupo de mulheres acaba por transformar um hobby num sucesso inesperado, a nível nacional.
Inspirado num fenómeno global da vida real, “Mulheres de Armas” com as suas mulheres luminosas dão-nos força a todos, para – unidos – superarmos os nossos medos.

Opinião por Artur Neves

Esta história, é baseada em factos reais como nos é mostrado no fim do filme, o conjunto de coros femininos de esposas de militares em diferentes bases inglesas por todo o território da Grã-Bretanha, onde mitigam os seus medos e angustias em conjunto, ocupando o tempo em atividades de canto coral amador.
Só que, e ainda bem, a história mostra muito para lá das atividades canoras das participantes, toda a envolvência e relacionamento entre as esposas dos militares em que cada uma assume implicitamente uma posição equivalente à patente do seu marido, muito embora o seu estatuto oficial de esposa não lhe confira isso por direito.
Deste modo, mostram-se as relações entre as pessoas quando submetidas a um convívio, se não forçado, pelo menos fortemente condicionado pelas circunstancias da vida castrense e da situação de missão no exterior dos seus cônjuges.
E aqui o filme destaca-se pelos pormenores que frequentemente exibe sobre a censura velada que umas exercem sobre outras, a crítica pelas atitudes e pelos conceitos que lhes determinam o modo de estar em sociedade, muito focado no comportamento dos filhos, na solidão do seu estado, no medo do telefone ou do aviso oficial do desastre que temem em receber (nós sabemos que alguém vai morrer) vivendo um ambiente de privação sexual que as constrange e lhes motiva múltiplas referencias mais ou menos críticas à condição que envolve todas.
Neste caldo de relações sociais existe sempre alguém que se destaca e nesta história é a “coronela” Kate (Kristin Scott Thomas), fria, distante, convencionalmente organizada, mas também muito magoada pela perda do filho em combate, à qual se opõe, Lisa (Sharon Horgan) a “sargenta principal” truculenta, intuitiva, com propensão para a bebida, com pouco gosto para a casa, intransigente para com a filha adolescente e farta das repetidas ausências do marido, que protagoniza com Kate o melhor e mais completo bate-boca sobre o casamento, o sexo e as atitudes sociais que ele, ou a sua falta, provocam.
Depois claro, temos o coro, o revivalismo de canções do imaginário inglês mais comum e conhecido, desde Cyndi Lauper aos cantores clássicos que serve também como confrontação entre duas mulheres empenhadas em fazer acontecer coisas mas cada uma à sua maneira, do seu jeito e segundo as suas premissas, uma com planeamento e organização e a outra de forma mais casual e deixando as outras mulheres descobrirem as suas preferências e o seu próprio caminho, separadas dos seus parceiros.
Por entre os risos e as confrontações do grupo existe um drama latente, em suspenso em cada uma delas, que se juntam para espantar os pensamentos mais sombrios e transformar a espera no purgatório mais ameno que possam conseguir. É um filme de pormenores, de retalhos de vida, de convívio comprometido, que forma um microcosmo interessante para ser visto.

Classificação: 6 numa escala de 10