31 de março de 2021

Opinião – “Unorthodox” de Anna Winger e Alexa Karolinski

Sinopse

Uma judia hassídica de Brooklyn foge a um casamento combinado e vai para Berlim, onde um grupo de músicos a acolhe... até que o passado vem bater-lhe à porta. Baseado no livro de memórias homônimo publicado no New York Times de Deborah Feldman, Unorthodox é a história de uma garota que rejeita sua educação radicalizada e parte para começar uma nova vida segue o rasto sombrio das suas origens para descobrir os mistérios perigosos do passado de sua família.

Opinião por Artur Neves

Numa altura em que as obras mais apetecíveis permanecem suspensas aguardando melhores dias para a sua exibição é a altura de fazer uma incursão pelo mundo das séries, particularmente das minisséries, que não eternizam a sua existência para lá da razoabilidade coerente do argumento que lhe serve de fundamento. É nessa categoria que se situa esta minissérie de quatro episódios, num total de 215 minutos, que não perderia nada se fosse convertida em filme, considerando a sequência restrita entre os episódios que compõem a história contada.

Aliás se observarmos o mastodôntico “Liga de Justiça” de Zach Snyder’s apresentado em 2021 com a escandalosa duração de 242 minutos em que mistura numa inenarrável história todos os defuntos super heróis da Marvel, esta minissérie até se apresenta como limitada para mostrar o ridículo e a incongruência contidos na religião judaica ortodoxa, subordinada à Tora e a todos os seus atávicos princípios, amplamente desadequados à vida real e ao tempo em que vivemos.

A minissérie reporta-nos assim, na pele de Esther Shapiro (ternamente conhecida por Esty) interpretada por Shira Haas, uma atriz israelita, o percurso tortuoso de vida de Deborah Feldman que anos antes igualmente abandonou a comunidade hassídica de Williamsburg a que pertencia, rumo à Alemanha, já com uma filha no ventre depois de um casamento combinado, da forma que Esty nos mostra nesta excelente minissérie, que estabeleceu ficar por aqui não se prevendo qualquer “2ª temporada” ou sequela duma história real contada na terceira pessoa. Aliás uma minissérie deve se mesmo assim.

O filme começa por nos mostrar o encontro (a apresentação) entre de Esty a Yanky Shapiro (Amit Rahav) com todo o protocolo definido pela Tora que estabelece a supremacia absoluta do homem sobre a mulher, devendo esta remeter-se ao papel de parideira e quanto mais parir melhor, porque mais rapidamente cumprirá os objetivos de repovoar o mundo com cidadãos judeus, compensando assim os falecidos no Holocausto.

O encontro, a preparação para o casamento, a divulgação dos seus deveres de esposa, comunicados a uma rapariga de 19 anos que ignora completamente a vida sexual, incluindo a sua própria anatomia íntima e a função dos seus órgãos, (esta cena merece reflexão sobre a legitimidade da castração do desejo e das emoções de um ser humano, através de uma convenção religiosa) a fragilidade do relacionamento entre os combinados “noivos” incumbidos a cumprirem um ritual preestabelecido mas que não os vincula afetivamente, porque simplesmente não se conhecem, são apenas o fruto do arranjo familiar com o beneplácito do Rabino da comunidade a que pertencem, fazem desta história um documento com importantes e estranhas revelações sobre comportamentos sociais.

Depois de realizado o casamento é preciso consumá-lo e neste capítulo é também apresentado toda a mecânica do processo (não há outra forma de dizer isto) com os falhanços sucessivos e o temor expresso por uma mulher que em repetidas noites de desgosto e sofrimento em todas as fracassadas tentativas de sexo que mortificam o seu espírito por não cumprir o objetivo anunciado de elevação do ego do seu marido. Quando finalmente a “coisa” se resolve, num ato de raiva sem amor, é evidente o chocante horror visceral na face de Esty contra a expressão de prazer vitorioso de Yanky, que exprime sem qualquer reserva a profunda desigualdade entre sexos vigente na sua comunidade.

A partir daqui Esty decide que não pertence mais ali e prepara a sua fuga para Berlim, ao encontro da mãe que anos antes teve o mesmo destino. Em Berlim segue-se o percurso de Esty que sem conhecimento da vida fora da sua comunidade procura sobreviver com a ajuda de amigos ocasionais em cujo círculo se consegue integrar. A Alemanha e a cidade de Berlim desempenham também um significativo papel considerando o seu impacto no passado para a comunidade judia e a minissérie utiliza-a bem, evidenciando a sensação de trauma do Holocausto que fornece uma tensão para o confronto das ideologias em presença.

Completado com frequentes flashbacks que nos informam das motivações dos eventos mostrados, "Unorthodox" funciona dentro do universo expandido de rebelião religiosa e drama lésbico que a realizadora Maria Schrader, em conjunto com as criadoras do argumento, transformaram em drama familiar e de costumes, num thriller fascinante, onde uma jovem em busca da sua individualidade e em rutura com crenças inculcadas desde o berço, contrastam com os esforços pífios de homens que a perseguiram em Berlim e julgam que a podem deter.

A atriz israelita Shira Haas tem um desempenho fabuloso entre o drama do amadurecimento como mulher e a história de sobrevivência que unilateralmente enceta. O seu marido Yanky Shapiro (Amit Rahav) representa um frágil hassidista embrutecido por uma religião castradora que nem se apercebe que sua mulher está grávida, de tão imbuído que está no seu papel protocolar. Para perseguir a sua esposa em Berlim, ele recebe a ajuda do seu primo Moishe Lefkovitch (Jeff Willbusch) um grosseiro arrivista, já sinalizado pelo Rabino da comunidade que o incumbe dessa tarefa com a promessa de reinserção e do perdão pelos anteriores desvios. Cabe ainda referir que Jeff Willbusch é ele mesmo, na vida real, um dissidente da comunidade Hassidi. Esta é pois uma minissérie que recomendo vivamente. Em exibição na plataforma Netflix.

Classificação: 8,5 numa escala de 10

PS: Para os mais curiosos informo que estão disponíveis no YouTube, um Making of da série em 20 minutos e um documentário de 90 minutos sobre Deborah Feldman.

 

23 de março de 2021

Opinião – “Cherry – Inocência Perdida” de Anthony Russo, Joe Russo

Sinopse

"Cherry" segue a jornada selvagem de um jovem desprivilegiado de Ohio que encontra o amor de sua vida, apenas para arriscar perdê-la por meio de uma série de decisões erradas e circunstâncias de vida desafiadoras. Inspirado no romance best-seller de mesmo nome, "Cherry" apresenta Tom Holland no como um personagem desequilibrado que deixou a faculdade para servir no Iraque como médico do Exército e só é ancorado por seu único amor verdadeiro, Emily (Ciara Bravo). Quando Cherry retorna para casa como um herói de guerra, ele luta contra os demônios de PTSD não diagnosticado e se torna viciado em drogas, cercando-se da companhia de desajustados depravados. Gastando o seu dinheiro na compra intensiva de drogas, Cherry se volta para o assalto a bancos para financiar seu vício, quebrando seu relacionamento com Emily ao longo do caminho.

Opinião por Artur Neves

A história que está na base deste filme assenta no romance semiautobiográfico publicado em 2018 de Nico Walter, veterano do exército dos Estados Unidos, escrito por este quando cumpria uma pena de prisão por assalto a bancos, tal como o protagonista deste filme realizado pelos irmãos Russo, que ao vê-lo, ocorre-nos pensarmos se já vimos aquela história, bem resumida na sinopse, mas melhor concebida e apresentada, como em; “Nascido para Matar”, de 1987 por Stanley Kubrick, ou “Máquina Zero”, de 2005 por Sam Mendes.

Uma breve pesquisa no IMDB revela-nos ainda que os irmãos Russo são os responsáveis pelos mais recentes filmes de Super Heróis, tais como; “Capitão América: O Soldado do Inverno”, de 2014 ou o mastodôntico e espalhafatoso “Vingadores: Endgame” de 2019, sem andar mais para traz, onde a Marvel decidiu duma penada acabar com todos os Super Heróis que tinha porfiadamente construído ao longo de vários anos em vários suportes, passando pelo papel e pela banda desenhada e culminando no cinema com pessoas reais, onde se sagraram campeões do cinema populista, que gera chorudos proventos de bilheteira, arrastando uma extensa corte de espectadores fieis, devotos de criaturas de ficção com super poderes, que não são mais do que a fictícia compensação para as fraquezas e frustrações dos seus adeptos.

Terminado o filão (temporariamente!… porque não acredito que a Marvel aliene a sua galinha dos ovos de ouro) Anthony e Joe Russo voltam-se agora para o cinema do real, de pessoas com problemas, traumas de guerra (PTSD – Transtorno de stress pós traumático) e dores de alma que os hão de levar à destruição de si próprios e de quem os cerca e filmam a história com todos os traços de epopeia que lhes ficou dos seus anteriores trabalhos. São as caraterizações ricas em pormenores dos estropiados em combate, os grandes planos do sofrimento de guerra e posteriormente, da degradação pelo vício da heroína. São os planos monocromáticos de pânico e solidão das vítimas em plena trip da droga, completos farrapos da sua dependência destruidora. É uma profusão de miséria e de degradação que se espalha pelo zoo de criaturas que os cercam, mas pasme-se, nós não sentimos que corresponda à reprodução real da degradação que quer transmitir.

“Cherry” começa pelo amor fulminante entre ele e Emily que são colegas na faculdade que frequentam em Cleveland, casam-se e são separados pela guerra do Iraque, onde o filme pretende denunciar o modo como a América trata os seus jovens, os seus soldados e os seus veteranos. A sinopse reporta que Cherry é médico, mas o filme informa-nos que ele é paramédico formado à pressão sobre bonecos insufláveis, ou modelos rígidos que só remotamente os elucidam para os ferimentos em teatro de guerra. Todavia, os meios técnicos utilizados na batalha, no Iraque são de relevo com drones que capturam pormenores recônditos e lentes olho de peixe para tomadas de vista deformadas e extravagantes que nos apresentam sequências monocromáticas ou a preto e branco de uma realidade só existente na mente dos personagens.

Tom Holland tem aqui a sua oportunidade para se despedir e se “despir” do Spider Man que o perseguiu nos últimos tempos, considerando que já mostrou assinalável qualidade de desempenho dramático em “Sempre o Diabo” de 2020, já apreciado neste blogue. Agora veste a pele de um veterano com dificuldade de adaptação ao mundo real no regresso da guerra do Iraque ao Ohio e nos mostra o falhanço das instituições que falharam com ele, tal como o exército, o governo com a sua política desastrosa e os bancos, pela sua cultura de crueldade, somente voltados para o lucro e indiferentes à epidemia de dependentes de opióides que geraram bem como, todos os serviços sociais de apoio, que distribuem oxicodona para terapia de problemas muito mais profundos.

É uma mistura de problemas muito complexos que nos acompanham por 141 minutos em que ficamos ligados a um protagonista anti herói que nos mostra as fraquezas e os desencantos da maior economia mundial e que merece ser visto apesar da sua extensão.

Em exibição na plataforma Apple TV

Classificação: 6 numa escala de 10

 

17 de março de 2021

Opinião – “A Desaparecida” de Peter Facinelli

Sinopse

As férias em família sofrem uma reviravolta assustadora quando um casal descobre que sua filha desapareceu sem deixar vestígios. Não parando de a procurar para conseguir encontrá-la, a sua desesperada busca pela menina leva-os a uma revelação chocante, que os coloca de frente contra uma verdade que não querem aceitar.

Opinião por Artur Neves

Com o nome original de “Hour of Lead” (“Hora de Chumbo” em tradução direta) este filme traz-nos a história do desaparecimento da filha de 9 anos de um casal que parte alegremente de férias na sua RV, uma caravana construída na estrutura de um autocarro, para umas férias num parque situado no Alabama, não muito longe de Tuscaloosa, num aprazível bosque que confina com um rio. O lugar é de facto fantástico e apetecível, mas desde a hora da chegada todas as ações e comportamentos dos personagens geram imediatamente múltiplas perguntas no espectador que eu pergunto se seria necessário começar tão “a matar”, considerando que nas sequências seguintes muitas incongruências nos são apresentadas apenas para “matar” o tempo de visionamento que foi projetado para o filme… mas avancemos…

A história escrita e realizada por Peter Facinelli, nascido em Queens, Nova Iorque, descendente de imigrantes italianos, e sem muito curriculum na arte, empola as referências sobre o desaparecimento do objeto do enredo com o único fim de manter o espectador baralhado, mas focado nos pormenores que possam trazer tensão e ansiedade à história, servindo todavia para camuflar o golpe de misericórdia final num twist imprevisível que corporiza finalmente o grande objetivo do filme.

O casal; Wendy (Anne Heche) e Paul (Thomas Jane), pais de Taylor (interpretado pela gémeas Kk Heim e Sadie Haim) a menina misteriosamente desaparecida, apresentam uma relação estranha entre si e com a diferente maneira com que lidam com a confusão e o trauma gerado pelo desaparecimento de Taylor. Paul tenta apoiar Wendy na sua dor de mãe e embora contra a recomendação do Sheriff Baker (Jason Patric), numa interpretação ressentida e silenciosa para as cenas em evolução, internam-se na floresta, armados, para procurar Taylor, ou o seu presumível raptor, um presidiário que anda a monte já perseguido pelas autoridades.

Na sua busca encontram um campista solitário, a dormir junto a uma fogueira e não fazem a coisa por menos, dão-lhe um tiro na cabeça para ele dormir para sempre. Quando voltam ao parque de caravanas as suspeitas agora recaem sobre os vizinhos do lado, um casal muito suspeito na sua opinião, em que aproveitando a sua saída para se introduzirem na sua caravana na busca de Taylor, obviamente tudo o que encontram lhes avolumam certezas sobre a sua culpabilidade. A consistência das suas conclusões leva-os a uma busca de barco com os vizinhos que apanham a mesma “sorte” do campista, ele, Eric (Kristopher Wente) morre com um tiro e ela, Miranda (Aleksei Archer) por afogamento, sem que daí surja qualquer constrangimento ou punição para os assassinos, ou sequer se fale mais nisso até os corpos serem descobertos

Nesta altura as perguntas que nos afloram à mente já são tantas que quase só estamos ali para ver o desfecho daquelas mortes banalizadas, sem motivos que justifiquem a sua ocorrência, bem como das representações absurdas de pânico, dor e perda dos protagonistas que afogam as suas penas em tanto sangue inocente. Todavia, a coisa não se fica por aqui porque o proprietário do parque, Tom (John D. Hickman) que não lhes dispensou uma receção muito amistosa logo no início (já devia estar a adivinhar o que lhe sucederia) vai ter a mesma sorte, bem como o seu jardineiro, Justin (Alex Haydon) que durante todo o tempo apresenta um ar de comprometimento suspeito e antecipadamente culpado não se sabe bem de quê.

Facinelli não tem limites nas suspeitas lançados sobre todos seguindo as convenções do suspense e os tiques do mestre, na medida em que ele também desempenha um pequeno papel secundário, o Deputy Rakes, mas a milhas de distância do mestre que quer imitar. Para confundir e baralhar o espectador não se coíbe de revelar detalhes sórdidos sobre a natureza humana, inclusive sobre o Sheriff Baker que recupera de um período em que cedeu ao álcool na sua luta contra o sofrimento infligido por uma tragédia pessoal.

Finalmente, quando Facinelli nos apresenta uma razão que no contexto anterior da história é impossível de prever, duas opções se abrem ao espectador; sentir-se despudoradamente manipulado na sua expectativa ao drama típico da criança desaparecida, ou agradavelmente surpreendido e recompensado pelo twist final. Pela minha parte incluo-me no primeiro grupo.

Disponível em streaming na plataforma TVCine Top

Classificação: 4 numa escala de 10

 

12 de março de 2021

Opinião – “Promising Young Woman” de Emerald Fennell

Sinopse

É a vingança que guia a narrativa de Promising Young Woman. Na pele de Cassandra Thomas, Carey Mulligan dá vida a uma estudante de medicina que decide colocar uma pausa na sua vida profissional enquanto despende as noites em bares. É aí que atrai e conhece diversos homens que, depois, tenta punir pelas tentativas de se envolverem com uma mulher aparentemente debilitada – ela própria. Uma jovem assombrada por uma tragédia ocorrida no seu passado.

Opinião por Artur Neves

Com uma tradução para português aceitável, este; “Uma Rapariga com Potencial” foi considerado na lista dos nomeados para os Globos de Ouro, bem como, na recente lista para os prémios BAFTA (73ª British Academy Film Awards) de cinema, em Inglaterra e recentemente incluído nas nomeações para os óscares da Academia americana. Com um argumento no género thriller representa ainda a estreia auspiciosa da realizadora inglesa Emerald Fennell, também autora do argumento, que com este filme inicia a sua carreira em longas-metragens, duma maneira tão prometedora como a protagonista da história que nos mostra este filme.

Ela, Cassandra Thomas, Cassie para os amigos, é uma estudante de medicina que perto dos seus 30 anos decidiu suspender o seu curso de medicina para se dedicar à tarefa justicialista sobre um evento traumático que a acompanha desde a juventude e a impede de ser feliz. Ela simula um estado de completa embriaguez nos bares que frequenta, provocando lascivamente os frequentadores masculinos com espírito predador que ela arrasta para um motel, ou os acompanha a casa para uma lição de consentimento e de respeito sobre a real vontade da parceira, que eles nunca mais esquecerão.

Não quero revelar demais como se processa o castigo, mas na altura da “lição” Cassie assume o espírito do acidente acontecido com uma amiga da faculdade que ela tratava como irmã e morreu às mãos de outros colegas; Madison (Alison Brie), e Dean Walker (Connie Britton) que permaneceram imóveis e mudos perante irrefutáveis provas da violação a que a amiga foi sujeita. Cassie assume um papel difícil e perigoso que não lhe permite grande margem de autonomia, mas o desgosto e a raiva presente nas suas memórias impede-a de recuar na sua cruzada pela razão e pela vingança.

Na manhã seguinte já a vemos no pleno controlo das suas faculdades caminhando com os seus sapatos de salto alto na mão enquanto devora com apetite um hambúrguer a caminho do seu trabalho de ocasião numa cafetaria. Este é um filme de mulheres que lutam contra a violação por homens sem escrúpulos e pelo respeito a que têm direito como pessoas com capacidade de decisão e de vontade autónoma.

A história deste filme explora de forma ousada ideias complexas que se cruzam nos pensamentos humanos e nas normas legais. Fazer justiça pelas próprias mãos nunca é uma solução aconselhável, mas por vezes as circunstancias assim nos conduzem a este limite. O filme mostra-nos o fundamentalmente importante sobre o sexo consentido, ou a falta da sua aquiescência, e a tolerância das instituições académicas para os estudantes masculinos e os seus devaneios impulsivos generalizadamente compreendidos quando apanhados em transgressão.

Carey Mulligan dá o melhor de si à interpretação de um personagem sofredor que assumiu a responsabilidade de não deixar o crime de uma pessoa que lhe era tão próxima, impune, ou esquecido numa investigação interrompida, através de múltiplas tentativas de vingança purificadora. As suas razões são genuínas e no seu caminho encontra homens em quem excita os seus piores impulsos para nos mostrar e provar a si própria a justeza dos seus atos contra todas as ações censuráveis. A obstinação dos propósitos de Cassie é um conceito exaustivo que por outro lado nos mostra que nem todos os homens que ela encontra são igualmente merecedores do mesmo tratamento, mas a sua determinação em atingir os objetivos faz-nos pensar que eles ainda são piores, residindo aqui a parcialidade desta história que nos agarra ao ecrã, entre drama, comédia e suspense durante 114 minutos, com significativo agrado.

Disponível nas plataformas Netflix e Amazon Prime video

Classificação: 7 numa escala de 10

 

3 de março de 2021

Opinião – “Nomadland” de Chloé Zhao

Sinopse

Após o colapso econômico de uma cidade empresarial na zona rural de Nevada, Fern (Frances McDormand) embala sua van e parte para a estrada explorando uma vida fora da sociedade convencional como uma nómada moderna.

Neste terceiro longa-metragem da diretora Chloé Zhao, Nomadland apresenta os verdadeiros nómadas Linda May, Swankie e Bob Wells como mentores e companheiros de Fern em sua exploração pela vasta paisagem do oeste americano.

Opinião por Artur Neves

Premiado nos Globos de Ouro de 2021, este filme mostra-nos um conjunto de espoliados da América para quem Trump prometia o que não podia cumprir, apenas para arregimentar adeptos que sem outras perspetivas aceitavam como boas as suas promessas vans. Esta história é baseada num livro com o mesmo nome escrito em 2017 por Jessica Bruder, uma jornalista americana que escreve sobre subculturas sociais e viveu oito meses com a comunidade onde se inspirou. Atualmente leciona num curso de jornalismo na Columbia Journalism School.

O filme concretiza um modelo “dois em um”, é simultaneamente um documentários de pessoas reais, de vidas reais, entronizadas pelo personagem ficcionado de Fern (Frances McDormand), que se fez à estrada após o falecimento do seu marido Bo, que trabalhava nas instalações mineiras da empresa US Gypsum em Empire, Nevada, como resultado da redução da procura pelo mercado de gesso cartonado. A empresa fechou em Janeiro de 2011 e como todas as cidades mineiras como Empire, definham assim que a razão que as justifica desaparece e Fern permaneceu na casa da empresa depois da morte do seu marido até ser forçada a sair.

Estes dois géneros; o documentário e o drama ficcional ainda que muito próximo da realidade, dificilmente se conjugam de forma a motivar o interesse do espectador num visionamento atento, considerando que a componente documental se refere ao quotidiano de um grupo e pessoas que se dedica a viver a sua vida de uma forma libertária, sem amarras, sem localização fixa, mas as suas atividades em nada diferem de uma vida normal, parca e comum. Eles são os nómadas modernos por opção, diferentes dos povos nómadas naturais, vivem com o mínimo essencial, assumem um corte significativo com a sociedade de que se desligaram, e funcionam à margem do sistema americano onde o capital determina o estatuto e o valor individual.

Fern, o personagem muito seguro e credível construído por Frances McDormand, (que apesar de ter sido também nomeada não recebeu qualquer distinção que este ano foi para a realizadora chinesa Chloé Zhao de 39 anos), representa o detrito vivo do colapso económico da cidade Empire, no estado do Nevada, que serve de “abre-latas” para nos introduzir nos despojos abandonados e degradados da empresa mineira US Gypsum, de onde não mais se podem obter proventos nem meios de subsistência e justificam a demanda de Fern por outros horizontes vivendo na sua caravana, para se juntar a outros espoliados, que tal como ela, caíram no buraco do american dream que Trump jurara a pés juntos, recuperar.

Na sua viagem Fern conhece nómadas reais, tais como Linda May que perdeu o emprego em 2008 e para quem os parcos benefícios da Segurança Social são insuficientes para viver noutro sítio que não seja numa caravana, ou Swankie que tem cancro em fase terminal e prefere morrer na estrada em vez de na cama de um hospital, bem como Bob Wells, que estão considerados no livro de Jessica Bruder e constituem o seu núcleo de amigos restrito.

A certa altura Fern encontra um outro trabalhador da fábrica, Dave (David Strathrain, o único outro ator de carreira que aparece no filme) com quem ela ensaia uma tentativa de amizade, mas quando o filho de Dave o visita, ele acompanha-o de volta à sua casa. Dave convida Fern para o visitar e ela aceita o convite, mas quando se encontram na casa do filho nada acontece e ficamos com a sensação que Fern já não é mulher de casa, não consegue viver no mesmo lugar muito tempo, já não aprecia o conforto de um lar porque choca de frente com o seu sentido de liberdade adquirida.

Fern é o esteio de ligação desta história de abandono, sofrimento e desordem e apresenta-nos uma atuação tranquila e segura, para a qual contribuiu o facto de ter vivido durante toda a rodagem na caravana que foi utilizada no filme (é assim que se faz quando se realiza trabalho honesto). Muito do valor do filme reside nas suas expressões resignadas, com olhar vagando pelo infinito ou sonhando acordada mergulhando nua numa piscina como um desejo improvável. Constitui todavia uma personagem fascinante na sua solidão, na sua frustração que de forma alguma “aquece” o filme para lá da aridez de vidas vazias. Na realidade não conhecemos Fern porque a história não nos a apresenta, apenas podemos intuir fragmentos através da sua interação com os outros. Não achei um filme particularmente interessante, é uma história do quotidiano banal de uma população dispersa e em movimento, pelo que a classificação atribuída vai toda para a personagem criada por Frances McDormand.

Pode ser visto na plataforma de streaming HULU e a partir da segunda quinzena de Março estará disponível na Netflix.

Classificação: 6 numa escala de 10