30 de setembro de 2019

Opinião – “Amor à Segunda Vista” de Hugo Gélin


Sinopse

Quando Raphael (François Civil) conheceu Olivia (Joséphine Japy) no secundário, foi amor à primeira vista. Após 10 anos de casamento feliz e uma carreira próspera como autor de best-sellers, Raphael tem tudo – ou pelo menos assim o pensa.
Após uma enorme discussão entre o casal, Raphael acorda numa vida paralela onde é solteiro, jogador de pingue-pongue e professor do ensino secundário, com uma vida pouco interessante e demasiado colada à do seu melhor amigo de infância.
Percebendo que Olivia era tudo para si, Raphael terá de fazer o impossível para reconquistar o amor de sua vida - que neste mundo não faz a mínima ideia de quem ele é.

Opinião por Artur Neves

Esta comédia romântica, para lá da divulgação do amor em situações comuns, apresenta-nos uma fantasia fundamentada na ideia de recomeço, de segunda oportunidade para concretizar uma coisa que se tinha e se perdeu. Para lá da sua exibição em sala do circuito comercial, faz também parte do programa da Festa do Cinema Francês 2019, em exibição em várias cidades do país.
Enquadra-se no género do famoso “O Feitiço do Tempo” de 1993 e de outros mais recentes, tal como, “Efeito Borboleta” de 2004, só para citar os mais conhecidos, que através da construção de um universo paralelo criado por um acaso e seguido pela convicção dos personagens de que estão vivendo uma realidade metafísica, executam um paralelismo existencial, no qual estando conscientes do paroxismo da sua atuação, não encontram os meios para reverter o seu estado, sendo compelidos a cumprir a realidade paralela com a qual não se identificam.
Após criado este ambiente, em que até o tempo é diferente, é fácil criar situações confusas e ocorrências inevitáveis que provocam sorrisos, surpresas, alegrias e tristezas inerentes ao amor falhado, ao fracasso de uma relação que quando perdida tem mais valor e mais urgência em ser reactivada, mas como existe noutra dimensão resta a necessidade de estabelecer um plano para nos transpor para lá, ou para trazer quem lá está até nós. Um problema “bicudo” portanto, com várias nuances.
O realizador Hugo Gélin, francês de nascimento, em Paris, 1980, é o mesmo que já nos ofereceu “A Gaiola Dourada” em 2013 com Rita Blanco e Joaquim de Almeida, já nos mostrou a sua capacidade de nos emocionar e divertir, com argumentos da vida real, de fácil aceitação pelo grande público mas que se esgotam em si mesmos pela natureza dos seus motivos. Ao procurar uma história mais transcendente, presumo que pretende subir a fasquia de uma forma rebuscada, para afinal descobrir como o amor pode ser simples, embora por caminhos complicados.
Hugo Gélin realizou e é também o autor do argumento, mas a sua construção está impregnada pela forma da indústria americana contar comédias românticas. Quero dizer com isto, que a história anda à volta de análises psicológicas, grandes bebedeiras com as consequentes ressacas (o cinema americano é pródigo nelas) detalhes de comportamento que merecem observação atenta, idiossincrasias e particularidades pensadas para o desfecho que se adivinha desde o princípio, a segunda oportunidade para repor a primeira vez perdida, com a “flecha do amor” e tudo.
Temos portanto aqui uma diversão salutar, com fantasia, com romance, que se vê com agrado, (se não se escamotear as vivências paralelas) que entretém durante 117 minutos e pode ativar a memória de uma paixão anterior.

Classificação: 6 numa escala de 10

27 de setembro de 2019

Opinião – “Vita & Virgínia” de Chanya Button


Sinopse

Vita & Virgínia é a história verdadeira da relação apaixonada entre a escritora Virgínia Woolf (Elizabeth Debicki) e a enigmática aristocrata Vita Sackville-West (Gemma Arterton) e a história do nascimento do romance “Orlando”, que os inebriantes encontros das duas inspiraram.
Vita & Virgínia é uma história de amor, contada num estilo contemporâneo, sobre duas mulheres – duas escritoras – que arrasaram as barreiras sociais para encontrarem conforto na sua ligação proibida.

Opinião por Artur Neves

Estamos em presença de mais um filme de época, baseado na personalidade esdruxula, ou que mais exactamente podemos classificar como bipolar, da escritora Virgínia Woolf nascida em janeiro de 1882 e conhecida como sendo uma das mais importantes figuras do modernismo do século XX e da romancista e poetisa inglesa Vita Sackville-West com quem viveu um tórrido, subversivo e literário romance de amor em 1920, cuja correspondência epistolar entre ambas já deu origem a uma peça de teatro que agora chega ao cinema pela mão de Chanya Button, nascida em Londres em 1986 e formada em literatura contemporânea em Oxford University.
Ou seja, temos aqui uma história sobre a aristocracia Inglesa do início do século XX, ainda fortemente influenciada pelos dogmas e convenções vitorianas, trabalhada por quem “conhece da poda” e que assim produz um filme que retrata o relacionamento entre as duas amantes desde o seu conhecimento mútuo nas reuniões do Grupo de Bloomsbury, um círculo intelectual restrito, até ao auge do seu envolvimento romântico, de cariz tão intelectual como sensual, tão inspirador do ponto de vista criativo para ambas, como perturbador para Virgínia ao ponto de lhe provocar manifestações da sua doença particularmente debilitantes.
Button traça um retrato de época com uma linguagem visual das cenas, rica e reveladora do mundo interior das duas mulheres. Vita escreve à máquina mas a câmara capta-lhe a expressão facial das palavras em simultâneo com a impressão das letras no papel e com o ruído das teclas, Virgínia escreve com uma caneta de tinta ao mesmo tempo que vemos a expressão da sua boca a balbuciar as palavras directamente para a câmara, criando uma mística que vai para lá da página escrita. Essa técnica exprime a dinâmica dos sentimentos que ambas mutuamente inspiram, não só quando estão separadas, mas também quando se ouvem no rádio, em que Vita “bebe” as palavras de Virgínia.
O ambiente social daqueles anos também não é descurado por Button com cenas filmadas em ricos cenários aristocráticos, com um guarda-roupa bem adaptado à época e uma Isabella Rossellini na pele de Lady Sackville, mãe de Vita e guardiã dos bons costumes e dos segredos do casamento da filha com Harold Nicolson (Rupert Penry-Jones) igualmente bissexual, tal como Vita, que nos tempos de hoje constituiriam o exemplo acabado de um “casamento aberto”. Ambos tiveram relações homossexuais fora do casamento que Lady Sackville afanosamente dissimulava nas reuniões sociais que o seu estatuto aristocrático permitia frequentar. Todavia, para lá das suas tendências sexuais íntimas, eram verdadeiramente dedicados um ao outro, ao ponto de Nicolson abdicar da sua carreira diplomática para usufruir da companhia de Vita e Buton não se esquece de evidenciar esse detalhe.
Virgínia Woolf, igualmente bissexual, casada com Leonard Woolf (Peter Ferdinando) que a apoiava incondicionalmente e ajudava a superar as suas crises, aceitava o seu relacionamento com Vita e lhe corrigia os manuscritos, particularmente no romance “Orlando”, onde Virgínia cria uma personagem que ilustra com precisão o tumulto intelectual e sensual vivido com Vita.
Temos pois aqui um filme sobre pessoas reais na sua faceta mais autêntica, realizado com delicadeza e atenção aos pormenores, que por vezes pode parecer extenso e com alguma falta de profundidade sobre os personagens, mas isso decorre somente da multiplicidade de detalhes que nos são oferecidos para apreciação. Interessante, para ver com paciência.

Classificação: 6 numa escala de 10


26 de setembro de 2019

Opinião – “O Terramoto” de John Andreas Andersen


Sinopse

Em 1904, um terramoto de 5.4 na escala de Richter abalou a cidade de Oslo. O epicentro foi o Rifte de Oslo, que atravessa a capital Norueguesa. Há registos diários de atividade sísmica neste rifte e há indícios de que terramotos de grande escala possam vir a ocorrer nesta zona, ainda que os geólogos não o possam confirmar com certeza. Quando? Ninguém sabe – mas sabemos que a densidade populacional e de infra-estruturas de Oslo a tornam expressivamente mais vulnerável hoje do que em 1904.

Opinião por Artur Neves

Esta história continua uma sequência de filmes catástrofe Noruegueses iniciada em 2015 com “Alerta Tsunami” também já estreado em Portugal. Embora de realizadores diferentes esta saga inclui o ator principal comum, onde o encontramos na ressaca do aviso falhado no filme anterior, despedido e com o consequente comprometimento da sua carreira de geólogo, separado da família, a viver sozinho num lugar de ocasião, sem auto estima, abandonado de si, vegetando nos dias que passam mas continuamente atento aos mínimos tremores que ele sente ocorrerem em Oslo, pois está convencido da eventual ocorrência de nova catástrofe.
Assim, sub-repticiamente, a história vai-nos transmitindo um sentimento de insegurança para o que virá a seguir. Não são avisos, são pequenos indícios a que ninguém liga, excepto Kristian (Kristoffer Joner) cujo corpo treme igualmente da angústia, de não ser ouvido nem pelos seus pares que lhe cobram o falhanço anterior.
Existe também outro cientista que trabalha por conta própria e que é seu amigo e em quem ele confia. Porém, a morte acidental deste, enquanto trabalhava num túnel com um traçado crítico para a cidade de Oslo, deixa-lhe um espólio científico que confirma as suas mais dramáticas previsões e que o faz renascer por ser a oportunidade última de resgatar a sua família do edifício onde se encontram e com quem já tinha conseguido estabelecer uma relação amistosa e assim parte da sua vida, regenerando-lhe a existência conturbada e precária.
A partir daqui a história entra no domínio dos efeitos especiais, de ocorrência do tão esperado terramoto. Toda a cena de destruição está bem conseguida, só que o filme entra num dramatismo de clausura de fazer abalar os mais céticos. Kristian vai salvar a sua mulher que se encontra no seu escritório no 34º andar do edifício e “candidamente” com o edifício já a tremer sobe de elevador. Pior ainda, com a estrutura do edifício a ceder tenta descer com a mulher pelo mesmo elevador e claro que, não consegue mais do que viver largos e angustiantes minutos quando o elevador interrompe a sua marcha devido à inclinação do edifício.
Depois desta cena tem de voltar ao topo do edifício para resgatar a sua filha que se encontra lá retida e temos outra angustiante e forçada cena de salvamento numa estrutura em consola que de minuto a minuto se inclina para o abismo. A imagem da tragédia é impressionante corroborada por sons premonitórios do desabamento iminente. O chão inclina-se para lá do limite da estabilidade construindo a emergência de uma cena que além de perturbadora não é credível e dura mais do que é humanamente suportável tornando-se desinteressante por excesso.
Todavia, a mensagem que fica é a da reconciliação familiar e a recuperação de um homem na sua verdade premonitória, embora mantendo a mágoa do fracasso. O resto é a representação de uma enorme catástrofe em 106 minutos, que pode ser apreciada como puro entretenimento, pois como advertência para comportamentos de fuga em caso de perigo semelhante, definitivamente não é útil.

Classificação: 6 numa escala de 10

25 de setembro de 2019

Opinião – “RAMBO: A Última Batalha” de Adrian Grunberg


Sinopse

Quase quatro décadas após ter derramado a primeira gota de sangue, Sylvester Stallone está de volta como um dos maiores heróis de ação de todos os tempos: John Rambo. Desta vez, Rambo tem de enfrentar o seu passado e recuperar as suas implacáveis técnicas de combate para reclamar vingança numa última missão. Uma jornada mortal de desforra, RAMBO, A Última Batalha é o último capítulo da lendária série.

Opinião por Artur Neves

Não podemos esquecer que a saga de “ Rambo” apareceu na sequência da famigerada guerra do Vietnam em que morreram muitos soldados americanos e os que voltaram, os veteranos de guerra, apresentaram sérias dificuldades de inserção social decorrente dos traumas sofridos em combate e são hoje ainda uma chaga que ensombra a sociedade americana.
Em 1982 aparece o primeiro filme, que gerou logo em 1985 uma sequela, não somente pelo êxito de bilheteira, mas também para passar a mensagem de uma América constituída por homens híper masculinos, valentes, especialmente adestrados para a luta, para atenuar o desaire sofrido pelo país naquele conflito. Deste modo, contaram-se histórias de heróis medalhados perseguidos pela polícia e pelas populações locais que obrigaram o “inocente” herói a uma legítima explosão de fúria violenta, permitindo assim sublimar a sua caraterística dominante de inadaptado social.
Assim, Rambo 1 e 2 apresentam objetivos claros de branqueamento da guerra do Vietnam e devia ter ficado por aqui, todavia, considerando que o franchise se tornou rentável e por isso apetecível a saga continuou com Rambo 3 de 1988, agora sobre a guerra do Afeganistão em que os USA censuram a URSS pela invasão, como se não tivessem anteriormente feito algo semelhante. A política externa dos USA assim o justifica e Rambo lá tem de atuar mais uma vez e, mais uma vez, poderia ter ficado por aqui.
Mas não, 20 anos depois, voltamos a encontrar Rambo em 2008, com um Sylvester Stallone mais envelhecido, eventualmente com alguns problemas de saúde porque o filme desenrola-se lento, com ação comedida em que Rambo aparece quase como uma figura secundária que discute a perseguição dos cristãos na Birmânia, na Revolução do Açafrão em 2007, abordando novamente temas reais onde a política externa dos USA está envolvida, em que Rambo tenta ser um mediador e um conselheiro mas o resultado é deplorável porque essa faceta não integra o ADN do personagem.
Em 2019 eis que Rambo aparece de novo, desta vez em que a política dos USA está envolvida com a crise dos migrantes, com a fronteira com o México, com a construção do famigerado muro defendido por Trump e como tal, a ação tem de mostrar que o México é um país perigoso, sem segurança, com um bandido em cada esquina, droga, sequestro de mulheres para a prostituição e envolvendo uma rapariga que foi criada por Rambo (desta feita; John) na sua quinta e ele tem de salvá-la da sua triste sorte.
Também existem algumas pessoas boas, mais particularmente uma, que ajudou e tratou de Rambo por ter sofrido uma perda semelhante, pelo que é quase como dizer; “não vás ao México sem ser acompanhado por Rambo”. O que se segue é uma epopeia de violência, razoavelmente bem conseguida com efeitos especiais bem estruturados que tornam o filme uma diversão sangrenta, mas ainda assim aceitável no contexto de nos deixarmos ir com um Rambo de intervenção cirúrgica, (o homem tem 74 anos) numa operação preparada ao milímetro, em que tudo corre mal para os bandidos e Rambo (Trump) cumpre as suas promessas. Esperemos que agora fique mesmo por aqui, como tal e para despedida vamos lá dizer adeus.

Classificação: 5,5 numa escala de 10

21 de setembro de 2019

Opinião – “Ousadas e Golpistas” de Lorene Scafaria


Sinopse

A partir de um artigo de fundo publicado na New York Magazine, "Hustlers" conta como um grupo de strippers de um clube noturno de Nova Iorque empreendeu um elaborado esquema de vingança contra os corretores de Wall Street que as enganaram.

Opinião por Artur Neves

Esta história é fundamentada num caso real baseado no artigo de Jessica Pressler, representada por Elizabeth (Julia Stiles) uma jornalista do New York Magazine a quem é concedida uma entrevista por Destiny (Constance Wu) num momento de fraqueza considerando que era co autora na burla que toda a equipa praticava. Este filme conta-nos uma história feminista, interpretado por uma mulher poderosa Ramona (Jennifer Lopez) num dos melhores papéis da sua carreira.
Os homens são aqui considerados como personagens falhadas que sucumbem aos encantos de mulheres rebeldes, “heróis populares” e não simples bonecas sexuais que usam de vários estratagemas para lhe extorquírem o dinheiro gasto na satisfação dos seus gastos sumptuários de roupas e acessórios de marca.
Ramona é magnética no seu desempenho competente e autoritário, só comparável ao seu papel em “Romance Perigoso” de 1998 onde já se identificava como uma aposta credível no mundo do cinema. Este é um dos valores do filme, consubstanciado no prazer de assistir à super estrela Jennifer Lopez (J-Lo) num personagem completo de autoridade, magnetismo, liderança sem nunca deixar de ser envolvente e protetora para as outras que a cercam.
A realizadora Lorene Scafaria segue as táticas clássicas da arte de filmar à Scorcese, incluído uma narração em off, câmara lenta para enfatizar os momentos de antecipação da ação e zooms prolongados que potenciam a emoção, tudo acompanhado de uma banda sonora bem escolhida de pop rock, desde Britney Spears a The Four Seasons, complementada com Chopin nos momentos mais escuros numa história que decorrente do seu desenvolvimento quase permite a exibição de um tema diferente para cada take.
O problema surge com a crise do subprime e a consequente queda de Wall Street em 2008 em que a loucura do dinheiro a rodos dá lugar a uma narrativa mais discreta à medida que o desemprego se começa a verificar até neste ramo de negócio. Aqui tudo muda e é a altura em que Ramona e as suas mais diretas companheiras engendram um esquema que as há de levar à prisão.
Destiny (Constance Wu, revelada em “Asiáticos Doidos e Ricos” de 2018) é a principal protegida de Ramona que inicialmente usa o striptease para apoiar a avó que a criou (é um motivo como outro qualquer, mas é lamecha e suspeito) e depois para manter a sobrevivência financeira da filha que entretanto teve, onde revela tenacidade e caráter. Ela ama Ramona ao mesmo tempo que a respeita e discorda dos seus métodos, mas a necessidade de sobrevivência a isso obriga.
A partir daqui a história requisita elementos que podem ser considerados “empréstimos” de “Viúvas” de 2018 (já comentado neste blog) ou “Showgirls” de 1995, mas que em nada o desqualifica ou menoriza, constituindo um belo espetáculo no seu todo, tanto no argumento como no soberbo desempenho de J-Lo. Recomendo.

Classificação: 7,5 numa escala de 10

13 de setembro de 2019

Opinião – “Ad Astra” de James Grey


Sinopse

Este filme conta a história do astronauta Roy McBride (Brad Pitt) enquanto viaja para as extremidades do sistema solar com o objetivo de encontrar o seu pai desaparecido e desvendar um mistério que ameaça a sobrevivência do nosso planeta. Nesta expedição, Roy irá descobrir segredos que desafiam a natureza da existência humana e o nosso lugar no universo.

Opinião por Artur Neves

Ad Astra, a expressão que dá nome ao filme, tem origem na Eneida, uma epopeia latina escrita por Virgílio no século I a.C. podendo tomar diferentes sentidos no contexto em que for proferida. No aspeto aeronáutico, particularmente no que concerne à conquista espacial pode significar; “por ásperos caminhos até aos astros” (ad astra per aspera), ou mais genericamente “atingir a glória por caminhos difíceis” ou “alcançar o triunfo por feitos notáveis” e qualquer delas está adequada à história contada neste filme.
Na sequência de fortes e perturbadoras tempestades elétricas na terra, provocadas por uma entidade longínqua e desconhecida que se prevê seja provocada por Clifford McBride (Tommy Lee Jones), responsável por uma anterior expedição e pai de Roy MacBride, este é enviado numa expedição para o encontrar, despertando nele sentimentos contraditórios por uma pessoa que ele ama, mas do qual se sente abandonado desde a infância e do remorso que ele sente, de por motivo idêntico provocar isso na sua mulher, remetendo-a um lugar tão marginalizado na sua vida, decorrente da indiferença a que ele a sujeita.
Esta é pois a história de uma saga familiar de um homem amargurado, embora calmo, equilibrado, coerente, cuja memória paterna é tão débil que ele confunde a invenção da sua imaginação com a realidade histórica oficial de um homem que é lembrado e homenageado como o herói para lá do seu tempo, que teve a coragem de viajar no espaço para limites nunca antes atingidos, ad astra, e que ao ser escolhido para esta missão acende-lhe o desejo de finalmente esclarecer as conflituantes emoções que o atravessam e definir o monólogo íntimo que Roy nos dá a conhecer através consistentes narrações em off.
No fim, Roy reconhece “que somos tudo o que temos” e introduz uma linha poética considerando que as pessoas que têm outras pessoas são ricas, são únicas e estão somente aqui na terra. No espaço a realidade é bem diversa.
Para lá deste dilema, Roy é um profissional perfeito e competente em todas as tarefas a que se dedica, sejam elas previstas ou ocorram de surpresa, nos mais fantásticos cenários que o filme pode produzir sobre a galáxia e o cosmos. Esta é outra vertente importante deste filme e inclui a parte lúdica da demonstração da ciência e da tecnologia espacial muito próxima do que são já hoje ou serão num futuro muito próximo. As viagens particulares à lua são encenadas como a SpaceX, fundada em 2002 por Elon Musk, nos anda a vender á uns tempos, mas “Ad Astra” funciona, fundamentalmente porque é lindo de se olhar para a profundidade imensa do espaço fotografado por Hoyte Van Hoytema.
Foram usadas imagens reais das missões Apollo 11 a17 como inspiração, posteriormente recriadas e toda a aparência visual do filme cumpre o nosso imaginário da imensidão espacial e da majestade da coisa real que o cinema nos pode oferecer, especialmente se for vista na versão IMAX que nos absorve e convence em todos os momentos. Todos os pormenores técnicos são respeitados com rigor, conferindo ao filme consistência e realismo.
Sendo eu um adepto do cinema em casa em ecrã generoso, de definição 4K ou 8K, completado por um som multicanal digno, (7+1 ou 10+2 canais + Atmos) rendo-me em absoluto à magnificência do IMAX e recomendo o visionamento deste filme neste formato, como sendo a forma mais imersiva de desfrutar esta obra, em competição no Festival de Veneza 2019.

Classificação: 8 numa escala de 10

11 de setembro de 2019

Opinião – “Os Mortos não Morrem” de Jim Jarmusch


Sinopse

Na tranquila e pequena cidade de Centerville, passa-se algo de muito errado. A lua paira larga e baixa no céu, as horas de claridade estão a torna-se imprevisíveis, e os animais começam a exibir comportamentos fora do normal. Ninguém sabe bem porquê. As notícias são assustadoras e os cientistas mostram-se preocupados. Mas ninguém prevê as mais estranhas e perigosas consequências que em breve vão começar a assolar Centerville: Os mortos não morrem – eles erguem-se dos seus túmulos para atacarem brutalmente e devorarem os vivos, e os habitantes da cidade têm de lutar pela sobrevivência. Do realizador-argumentista Jim Jarmusch (“Paterson”, “Gimme Danger”) chega uma comédia de terror com um elenco extraordinário de atores que já trabalharam com Jarmusch (Bill Murray, Adam Driver, Chloë Sevigny, Tilda Swinton, Iggy Pop, Steve Buscemi, Tom Waits).

Opinião por Artur Neves

Não me parece bem comentar este filme sem falar ainda que brevemente de Jim Jarmusch, muito particularmente neste filme que “sabe” a homenagem a George A. Romero e ao seu “A Maldição dos Mortos Vivos” de 1978 onde pela primeira vez o mundo se viu confrontado com este conceito, que seguiu o seu caminho com as inevitáveis sequelas.
James R. Jarmusch, nascido em 1953 no Ohio, USA tem uma carreira profissional completa pelas diferentes áreas do cinema, como; argumentista, ator, editor, compositor, responsável pela fotografia e finalmente como realizador onde começou a ser notado em “Flores Partidas” de 2005, e mais recentemente em; “Só os Amantes Sobrevivem” de 2013 que representa a sua primeira incursão pelo mundo do vampirismo, muito embora tratando-os como “pessoas” e mais recentemente em “Paterson” de 2016 onde nos trás uma observação silenciosa dos triunfos e derrotas da vida quotidiana, vistos com poesia e detalhe. Em todo o seu cinema sempre mostrou preocupação em sensibilizar-nos para os aspetos controversos da vida onde no maior drama podemos experienciar, amor e comédia.
Este filme entronca nessa veia indie de contrastes, trazendo os mortos do cemitério de volta à vida consumista de todos os dias, fazendo-os levantar-se das campas em busca das suas preferências pessoais de telemóveis, café, wi-fi, Chardonnay, roupa, sem qualquer repúdio pelo excesso, despesismo ou lixo que estamos gerando, neste mundo que começa a apresentar sinais de saturação, em alterações significativas que deliberadamente negamos numa clara referencia crítica à América de Trump e à sua política belicista, potenciando a ocorrência de uma catástrofe ambiental pendente.
Contrariamente ao seu mentor, este filme de zombis não é verdadeiramente um filme de terror, nem sequer sangrento, pois os mortos-vivos desfazem-se em poeira negra que o vento espalha ao acaso. Os heróis da cena são três polícias, pachorrentos, circunspectos na análise dos acontecimentos e mais interessados em filosofarem sobre os eventuais motivos da tragédia do que em salvar o mundo, para o qual eles não sentem muita urgência.
Os atores já são velhos conhecidos dos filmes de Jarmusch; Bill Murray e Adam Driver como polícias e Tilda Switon na pele de Zelda, uma agente funerária que usa espadas de samurai. Todos desempenham personagens impassíveis, esteticamente descontraídos, personagens “jarmuschianas” direi mesmo, numa toada cinematográfica preguiçosa que faz deste filme uma comédia de terror incaracterística, com bons atores, boa música ao estilo Country, mas lamentavelmente com poucas ideias e frustrante no resultado final, porque depois das expectativas criadas esperava-se um pouco mais.
Adan Driver, na pele do polícia Ronnie Peterson, repete por diversas vezes e em diferentes situações, a frase; “Isso não vai acabar bem”, ela ganha foros de profecia, porque ao longo do desenvolvimento do filme vem-nos frequentemente à memória.

Classificação: 5 numa escala de 10

7 de setembro de 2019

Opinião - “MIDSOMMAR: O Ritual” de Ari Aster


Sinopse

Dani (Florence Pugh) e Christian (Jack Reynor) são um jovem casal americano cuja relação está à beira de se desmoronar. Mas depois de se manterem juntos devido a uma tragédia familiar, Dani, em fase de luto, junta-se a Christian e aos seus amigos numa viagem a um festival de verão, numa remota aldeia sueca. O que começa como umas descontraídas férias de verão numa terra de sol eterno, sofre uma reviravolta sinistra quando os aldeões convidam os visitantes para participarem nas festividades que tornam o paraíso campestre cada vez mais inquietante e visceralmente perturbador. Da mente visionária de Ari Aster, chega-nos um assustador conto de fadas onde um mundo de trevas se revela em plena luz do dia.

Opinião por Artur Neves

Esta história inclui-se no conhecimento da existência de cultos pagãos, em pleno século XXI na Europa Ocidental, representados numa corrente ancestral de agradecimento e veneração aos elementos da natureza responsáveis pelos ciclos de rejuvenescimento e morte a que obedece o tempo dividido nas estações do ano. Esta questão não é nova e considerando a sua espécie conotada com o ciclo da vida, costuma ser designada como “horror popular”, considerando que se trata de um culto baseado em práticas selvagens e não civilizadas decorrente dos dogmas inquestionáveis por que se rege. Aliás o cinema já abordou este tema em 1973, no filme; “O Sacrifício” de Robin Hardy onde se pode apreciar um Christopher Lee já com 25 anos de carreira,  falecido em 2015 e antes da notoriedade que adquiriu com a interpretação do personagem Conde Drácula.
Ari Aster, o realizador deste filme que em 2018 nos ofereceu “Hereditário”, no ambiente oculto e sombrio dos filmes de terror, apresenta-nos agora numa aprazível paisagem campestre da Suécia, no verão em que o sol nunca se põe, isto é, as noites são sempre iluminadas porque o sol não desaparece, uma história de suicídio, insanidade, histeria religiosa e nudez total, dentro de um conto de fadas praticado em nove dias, em Harga, uma organização comunal que pretende corporizar o paraíso na terra, onde todos vestem roupas brancas, se tratam como irmãos e usam ornamentos florais colhidos e preparados para cada situação do ritual.
Nesta comuna a multidão feminina sobrepõe-se à masculina e como tal são elas que organizam, preparam e executam o ritual que a história nos oferece de uma forma muito ordeira, lenta e ritualista que sucessivamente nos prende e nos faz assistir quase hipnoticamente. É interessante analisar como o terror se pode disseminar em ambientes naturais verdes, brilhantes, iluminados por um sol constante, sob um céu azul cobalto sem nuvens nem ameaças mas que nem por um só momento deixa de ser menos perturbador, violento e fatal.
O que distingue o horror deste filme dos tradicionais filmes de terror é que cerca de 90% do seu tempo decorre à luz do dia, partilhado por todos e sob o sol constante para garantir a comunhão dos atos praticados. Não considero este filme como thriller, porque Aster não usa violência, mas antes uma crescente atmosfera nervosa recheada de pequenos sinais que nos conferem a sensação de pesadelo crescente que paira sobre cada cerimónia, cada personagem, cada ato, até que o real pesadelo se concretize mas sempre de modo lento como a consumação duma vela que se acende.
A completar o ambiente temos uma música que se insinua, canções detalhadas e bonitas sobre temas da vida campestre que dá gosto ouvi-las e nos tenta convencer que tudo está bem e é ótimo, mas não nos iludamos, todos os que o forem ver pensarão nele algum tempo depois do filme terminar. Recomendo.

Classificação: 8 numa escala de 10

3 de setembro de 2019

Opinião – “Os Sete Anões e os Sapatos Mágicos” de Sung-ho Hong e Moo-Hyun Jang


Sinopse

Os SD (Os Sete Destemidos) são os sete príncipes mais belos e populares do Reino dos Contos de Fadas. Mas são também egocêntricos e arrogantes e, por causa disso, são amaldiçoados e transformados em pequenos anões verdes. Este feitiço só poderá ser revertido pelo beijo da mulher mais bela do reino. Determinados a recuperarem a sua beleza, os sete vão partir em busca da mulher mais bela e, no caminho, cruzam-se com a candidata ideal: uma jovem donzela chamada Branca de Neve, cujos sapatos mágicos (dos quais ela nunca se separa), parecem esconder um segredo.
Juntos, os Sete Anões e a Branca de Neve terão de proteger os sapatos mágicos e a Ilha dos Contos de Fadas, mas no caminho irão descobrir o verdadeiro significado da palavra beleza e aprender a celebrar quem realmente são, independentemente do seu aspeto exterior.
Com as vozes de Sara Carreira e Fernando Daniel.

Opinião por Artur Neves

Penso não ser por acaso que o filme começa com o nome “Branca de Neve e os Sete Anões” constituído com letras animadas em queda para o fundo do ecrã, aparecendo depois em zoom in o nome correto do filme no mesmo tipo de lettering anterior. Isto é a consequência de se deixarem histórias europeias centenárias na mão de Coreanos, que não possuem qualquer ponto de contacto com a nossa civilização, lendas e costumes. Isto todavia não significa uma crítica ou uma censura, mas tão somente uma constatação de facto.
A história original da Branca de Neve, que remonta à Idade Média, corresponde a um conto da tradição oral Alemã, que foi compilado num livro de “Contos de Fada para Crianças e Adultos” pelos irmãos Grimm, publicado entre 1817 e 1822, sem contudo se conhecer a data exata. Segundo Bruno Bettelheim, psicólogo Austríaco que viveu a maior parte da sua carreira académica nos USA, no seu livro de interpretação dos contos de fadas; The Uses of Enchantment publicado em 1976, defende que a história da Branca de Neve aborda essencialmente os conflitos edípicos entre mãe e filha na infância e na adolescência, dando maior ênfase ao que constitui uma infância feliz e às condições necessárias para que a criança cresça a partir dela.
Curiosamente e segundo o mesmo autor, os anões são seres que não conseguindo evoluir para uma humanidade amadurecida estão permanentemente retidos num nível pré-edípico, (não têm pais, não crescem, não casam, não têm filhos) servindo apenas para enfatizar os desenvolvimentos que ocorrem na evolução de Branca de Neve.
Posto isto, o que temos neste filme é o contrário do anteriormente descrito. Apresentam-nos sete heróis, belos e amarelos, devotados à justiça e a todas as boas intenções, que uma bruxa má fortemente parecida com a Michelle Pfeiffer (não havia necessidade desta conotação com a senhora) transforma em anões verdes como ogres, em sequência duns erros cometidos pelos próprios. Aparece também um rei, cuja filha, Branca de Neve gordalhufa mas de bom caráter, justa e cheia de boas intenções, transforma-se em bela e amarela depois de calçar os tais sapatos mágicos que a bruxa também persegue sem sucesso. Um príncipe, dum reino por inventar, feioso, arrogante e invejoso, pretende as graças da princesa que os anões defendem, com artefactos inspirados nos mais Coreanos Transformers, usando artes marciais e toda a fantasia que a banda desenhada do sol nascente pode conceber. Até uma Excalibur os Coreanos resolveram incluir na história, vinda não se sabe bem de que origem, mas neste argumento cabe lá tudo.
No final, um dos anões verdes, já recuperado em herói belo e amarelo apaixona-se pela princesa na sua rotunda forma gordalhufa, mostrando-nos que a verdadeira beleza não está no efémero aspeto exterior mas antes na alma, nos bons sentimentos e boa formação de caráter. Para esta mensagem dirijo toda a classificação indicada a seguir e deixo ao leitor a responsabilidade de pretender mostrar ao seu filho(a) toda esta trapalhada.

Classificação: 3 numa escala de 10