28 de maio de 2021

Opinião – “Quo Vadis Aida?” de Jasmila Žbanić

Sinopse

Aida é tradutora da ONU na pequena cidade de Srebrenica. Quando o exército sérvio da Bósnia assume o controlo da cidade, ela descobre que a sua família está entre os milhares de cidadãos que procuram abrigo no acampamento das Nações Unidas. Como uma pessoa de dentro das negociações, Aida tem acesso a informações cruciais que ela precisa interpretar. O que está no horizonte para sua família e seu povo – resgate ou morte?... Que ação ela deve tomar?... Inspirado em factos verídicos.

Opinião por Artur Neves

Retrata-se neste filme a monumental inépcia e indefinição da ONU em relação ao conflito da Guerra da Bósnia entre 1992 e 1995 quando a sua representação em Srebrenica, uma pequena vila na Bósnia Herzegovina, era constituída por militares holandeses e outros jovens locais de pouca idade, arvorados em capacetes azuis que mais não podiam fazer do que empunhar o símbolo da organização para testemunhar a sua integração numa força longínqua que os abandonou à sua sorte, enquanto desenvolvia reuniões infindas sobre o seu destino.

Aida Selmanagic (Jasna Djuricic) é uma professora que a representação da ONU requisita como tradutora, tomando assim um papel central na história mercê da sua livre movimentação no interior da representação e do conhecimento profundo da dinâmica política das forças estacionadas da ONU que reclamam apoio aéreo, sempre prometido mas que nunca chega, permitindo o genocídio de cerca de 3000 muçulmanos às mãos de exército Sérvio invasor que tomou a vila.

Aida, personagem fictícia do argumento que serve de guia da ação para o espectador, tem como objetivo salvar a sua família, o marido e os dois filhos, pelo que se desdobra entre as suas funções oficiais e o papel de mãe e esposa para garantir a segurança daqueles que ama, num ambiente de guerra que piora constantemente, tentando ainda gerir a proteção de milhares de refugiados, no precário equilíbrio entre a falta de recursos e a ausência de apoio externo que ameaça destruir o povo muçulmano da Bósnia e de comunicar ao povo as determinações dos impotentes soldados da ONU envolvidos numa guerra que se desenvolveu ao seu redor nos últimos três anos.

O exército Sérvio entra sem resistência em Srebrenica, comandado pelo general Ratjo Mladic (Boris Isakovic), que mais tarde viria a ser condenado a prisão perpétua por um tribunal internacional, sem que contudo essa punição tenha conseguido lavar o sangue das mãos da ONU. Ratjo Mladic é vaidoso e exige que todos os seus discursos humanistas de vencedor magnânimo sejam filmados e transmitidos para o mundo, enquanto reúne todo o povo da vila num descampado, negoceia com o Major Franken (Raymond Thiry), responsável pelas forças estacionadas da ONU a sua transferência para um lugar seguro em camionetas, devolvendo-os à liberdade, mas o que realmente faz é fuzilá-los assim que os carros se afastam de Srebrenica a uma distância fora da vista.

A argumentista e realizadora Jasmila Žbanić nascida em Sarajevo em 1974 apresenta-nos toda esta história sem imagens chocantes regadas com sangue, como é frequente em filmes de guerra, mas antes de uma forma emocional onde Aida é a sua intérprete fundamental nas suas movimentações progressivamente ansiosas, nos seus olhares imoveis no vazio, na sua expressão dura e determinada, ciente que a sua posição não lhe confere qualquer garantia diferente de todos os outros prisioneiros e nas pausas para fumar que a evadem do caos circundante, mas que não são mais do que o prenúncio da tragédia que aos poucos se vai adivinhando pelo desenrolar da história.

A filmagem é conseguida maioritariamente de câmara na mão, com tomadas de vista perto da ação de forma a inserir-nos no ambiente tenso que se vai adensando, deixando ao espectador a avaliação da gravidade dos acontecimentos que se sucedem, vivenciados pela protagonista numa correria insana sem objetivo definido porque ela, tal como todos os outros, não têm para onde realmente fugir. Muito bom, recomendo sem reservas.

Em exibição nas salas a partir de 3 de Junho

Classificação: 8 numa escala de 10

 

26 de maio de 2021

Opinião – “Vingança Letal” de George Gallo

Sinopse

Neste thriller dinâmico de ação, Damon Hickey (Morgan Freeman) um comissário de polícia reformado, com uma longa carreira de corrupção, chantageia a sua cuidadora e antiga correio de droga Victoria (Ruby Rose), raptando a sua filha e forçando-o a fazer cinco perigosas recolhas de dinheiro do submundo numa noite. Arrasada pela traição do único homem em quem alguma vez confiou, Victoria luta contra traficantes e bandidos do submundo numa missão para a salvar filha. À medida que a noite avança, Victoria é confrontada pelo seu passado e por pessoas de quem Damon a tem protegido, que a querem ver morta. Levada ao limite, Victoria encontra uma esperança de redenção no plano de Damon.

Opinião por Artur Neves

Como é que o argumentista de “Fuga à Meia-noite” de 1988 escreve e realiza um filme tão desconchavado como este que me sugere somente perguntar; porquê?... e para quê?...

A história, que toma como referência de ação o filme “John Wick”, (mais um) junta Damon preso a uma cadeira de rodas num acidente fatal com o tráfico de drogas a que se dedicava obrigando a sua cuidadora Victoria e anterior traficante mais eficiente, atualmente em fase maternal cuidando da sua pequena filha, que se desloque a cinco lugares diferentes para lhe trazer igual número de sacos de dinheiro que estavam em dívida.

Para conseguir isso, Damon sequestra sua pequena filha e ameaça-a a cumprir o seu desejo sob pena de não mais ver a filha se falhar no objetivo. Damon vive numa mansão ao estilo de Miami Vice moderno e desloca-se numa cadeira de rodas motorizada avant gard, com um tablet que permite visualizar todas as imagens captadas pela câmara corporal implantada na “roupa de trabalho” de Victoria, com que ele a controla quer ela esteja parada a confrontar os traficantes, quer esteja “voando” a alta velocidade na sua mota a caminho de mais um local ou sendo perseguida por um automóvel que ela finta como pode optando por ruas estreitas e desertas numa Washington, DC não identificável. Que provedor de internet teria um equipamento e um conjunto de antenas tão perfeito e eficaz, capaz de transmitir imagens nítidas, quase sem cortes nem defeitos de configuração nos lugares mais inusitados e em alta velocidade. Por favor Sr. George Gallo, até para mentir com êxito é preciso qualidade.

Embora algo contrafeita Vitoria (Ruby Rose), uma jovem em busca da glória, já vista este ano em “O Porteiro” com Jean Reno e anteriormente em John Wick 2, com o seu ar andrógeno que faz lembrar Angelina Jolie nos seus primeiros tempos, veste o fato de motard e segue à desfilada neste filme série B, sem qualquer garantia de atingir o estrelato com estas histórias de cordel apenas estruturadas para mostrar ação, tiros, muitos mortos atingidos sem vacilar e saídas de heroína, deixando atrás de si um rasto de destruição do qual ela sai ilesa.

Não sabemos nada de Damon, nem de Vitoria, para lá de ter tido um irmão que é mencionado uma vez como seu parceiro no crime e da filha pequena sequestrada que vemos cuidadosamente a dormir num quarto da casa de Damon. A imagem do filme também aparece estranha com visuais coloridos a uma só cor como a casa de Damon que aparece em azul e a casa de um dos traficantes, toda em violeta, assim como várias tomadas de vista monocromáticas da cidade sem qualquer ligação coerente com a trama que nos quer mostrar.

Decididamente isto não é cinema, mostrar acrobacias em estrada e em salas de casas contra traficantes e pistoleiros mais ou menos façanhudos, em que a certa altura um deles reporta; “Ouvi dizer que você já matou mais pessoas do que Quentin Tarantino” como se a evocação de um realizador inteligente que sabe fazer e defender os filmes de ação contribuísse positivamente para branquear “Vingança Letal”, não se pode chamar cinema.

As performances são rígidas com ausência de consequências em cenas de ação monótonas e despidas de sentido. No final, quando os cinco sacos de dinheiros estão reunidos na casa de Damon, este aciona um detonador e explode toda a casa, morrendo dentro dela… Para quê?... porquê?...

Estreia nas salas a 3 de Junho

Classificação: 3 numa escala de 10

 

24 de maio de 2021

Opinião – “Ninguém” de Ilya Naishuller

Sinopse

Por vezes, o homem em quem ninguém repara é o mais perigoso de todos…

Bob Odenkirk (vencedor de dois Emmy®) interpreta Hutch Mansell, um pai e marido negligenciado, que tudo aceita, sem nunca reclamar. Ele não é ninguém.

Numa noite, dois ladrões invadem a casa de Hutch e este recusa defender-se a si e à sua família, na esperança de evitar uma escalada de violência. O filho adolescente, Blake (Gage Munroe, A Cabana), fica desiludido com o pai e a sua mulher, Becca (Connie Nielsen, Mulher-Maravilha), parece afastar-se cada vez mais dele. Após o assalto, a fúria de Hutch desencadeia instintos adormecidos, levando-o por um caminho que irá trazer à tona segredos mais sombrios e capacidades mortíferas. Num cenário de luta, armas e derrapagens, Hutch tem de salvar a sua família de um perigoso adversário e garantir que nunca mais será subestimado.

Opinião por Artur Neves

Já tínhamos o devaneio violento de John Wick, que por causa da morte do seu cachorro inicia uma jornada vingativa com muitos mortos e um rasto de sangue, que já leva três capítulos e promete, até agora mais dois, sendo um em 2022 e outro em data ainda por determinar, mas que tem potencial para continuar como todos sabemos, eis senão quando entra este novo personagem Hutch Mansell (Bob Odenkirk) que por causa de um assalto a sua casa que ele até permitiu sem se defender, incendeia a sua personalidade secreta quando descobre que os ladrões levaram também a coleira do gato de sua pequena filha.

Dito assim o motivo de tanta pancadaria, mortes e tiros, é leviano e supérfluo mas não deixa de se complicar até incluir a morte de um senhor do crime russo Yulian Kuznetsov (Aleksei Serebryakov), que chefiava uma organização para guardar na américa, as fortunas dos oligarcas russos.

Como se chega a este desatino só mesmo vendo o filme se pode saber, até porque a história tem diversos twists que só assistindo se compreendem e justificam o percurso que o argumentista de John Wick, Derek Kolstad, deu à história e pelos vistos vai continuar porque estas sagas quando são despoletadas nunca se ficam por um filme somente e também porque o final de “Ninguém” já aponta para o futuro.

Até ao desatino de Hutch ele até se apresenta como um cidadão normal, pacato, muito pacato mesmo, envolvido nas suas rotinas diárias de trabalho numa empresa em que é sócio com mais dois amigos, deslocando-se de transporte público, ajudando nas tarefas domésticas, aliás com êxito reduzido, pouco considerado pelo seu filho adolescente, mas amado pela sua filha ainda criança e tolerado pela esposa Becca Mansell (Connie Nielsen) com quem dorme com um travesseiro entre ambos. Até aqui nada nos revela a sua identidade secreta, ou o segredo que o impediu de responder adequadamente ao assalto a sua casa, ou a existência e uma raiva reprimida que depois de libertada nos mostra uma fúria sem limites.

Depois do assalto é que as coisas se complicam, isto é, Hutch reconsidera a viabilidade da sua pacatez (que vimos a saber posteriormente; autoimposta) e geram-se várias situações de alto impacto violento como início da sua nova identidade comportamental, como aquela cena no interior de um autocarro em que ele, só com as mãos e uma pequena faca despacha um punhado de arruaceiros entre os quais se encontra o irmão do oligarca russo, cujo encontro vai ocupar o resto da história e da ação, com um nível de violência feroz e muitos… muitos tiros por minuto.

“Ninguém” funciona num vazio de autoridade onde a população da cidade é ignorada ou deixada à mercê de um bando de fanáticos sociopatas como na cena do autocarro, e tanto Hutch como Yulian possuem elementos de grupo que cuidam deles, que os apoiam em devastadoras cenas de luta com uma simulação de inteligência que se esgota na imaginação dos ataques e das defesas de parte a parte, introduzindo alguma graça em breves momentos, numa história de autodescoberta individual e reencontro familiar, com laivos sentimentais que transformam a violência delirante baseada no ódio num convívio comovente e restaurador de um certa confiança social.

Tem estreia prevista em sala para dia 27 de Maio

Classificação: 5 numa escala de 10

 

19 de maio de 2021

Opinião – “Um Homem Furioso” de Guy Ritchie

Sinopse

Um título autoexplicativo para uma trama centrada na história de "H", um misterioso desconhecido que trabalha para uma empresa de transporte de valores em Los Angeles. A intriga adensa-se quando um desses camiões é assaltado e o protagonista mostra grande habilidade em lidar com os assaltantes, o que lhe traz relevância na empresa e a admiração dos colegas. O que eles não sabem é que “H” vive preso ao passado e está disposto a pôr termo a todos os criminosos da cidade até encontrar quem matou o filho.

Baseado no filme francês “Le convoyeur” de 2004, “Um Homem Furioso” apresenta um elenco de estrelas que inclui Jason Statham, Holt McCallany, Jeffrey Donovan, Josh Hartnett, Niamh Algar, Laz Alonso, Scott Eastwood e Eddie Marsan. O filme é dirigido por Guy Ritchie a partir do argumento de Ivan Atkinson, Marn Davies e Guy Ritchie. Produzido por Bill Block e Atkinson.

Opinião por Artur Neves

A nota mais perfeita neste filme foi a escolha do protagonista, pois adequa-se na perfeição ao que Jason Statham nos tem transmitido ao longo de toda a sua carreira até agora e que constitui a sua imagem de marca. Frieza na acção, distanciamento face aos problemas, foco nos objetivos e calculismo em relação aos problemas.

“Um Homem Furioso” é a adaptação americana feita por Guy Ritchie do thriller francês “Le Convoyer” de 2004 a partir do argumento original de Nicolas Boukhrief e Éric Besnard mas que teve um destino semelhante a outras sequelas desenvolvidas por Guy Ritchie, tais como; “O Agente da U.N.C.L.E.” de 2015 ou “Rei Artur: A Lenda da Espada” de 2017, muito embora seja considerado como realizador preferencial em Hollywood e tenha assinado filmes que contrariam essa preferência injustificada.

Este “Um Homem Furioso” está mais ou menos dentro dessa linha porque apesar de ser um filme com muita acção, protagonizado por um ator que ele mesmo lançou com sucesso há uns 20 anos atrás e que desempenha neste filme um papel credível como durão e incorruptível entra por vezes em sequências em flashback demasiado longas, que são necessárias para a compreensão das motivações, note-se, mas transportam em si algum tédio porque são cenas já usadas anteriormente, vistas de outro ponto de vista que não o actual, não trazendo assim algo de novo.

Adicionalmente a isto, depois de cada evento significativo para o enredo, a história anda para trás e para a frente, avisando o espectador com referências como; “Cinco meses depois” ou “Cinco meses antes” provocando alguma confusão na interpretação dos factos que nos são apresentados, considerando que se trata de recontar episódios com cenas já vistas.

Como se pode esperar de um filme de ação, os diálogos não serão muito elaborados, mas neste caso não só o protagonista utiliza em todo um filme um humor taciturno de muito poucas palavras (“H” – Jason Statham, não se pode queixar de ter um grande papel a decorar) como também as piadas e conversas entre todos os elementos do grupo são grosseiras e de mau gosto. Pelo desenrolar da história nunca temos dúvidas que “H” vai cumprir o objetivo a que se propôs, tal é a previsibilidade do argumento em que “H” parece sempre estar onde não está, a desempenhar um papel secreto, enquanto transporta toneladas de dinheiro e investiga os seus colegas de trabalho sobre outras motivações e outras pessoas.

Salvam-se as cenas de luta contra os ladrões que tentam assaltar os carros de transporte de valores, que constituem a parte mais emocional do filme e as reações dos agentes de transporte face à frieza e eficiência de “H” que não vacila nem erra os tiros que utiliza no combate, todavia sugere-nos a pergunta; “onde é que eu já vi isto…” tal é o efeito repetição, a falta de paixão e a previsibilidade intrínseca da história. Seguramente Guy Ritchie já teve melhores dias e o facto de se ter afastado das suas origens de realizador independente para se render a Hollywood, está associado ao sentimento que esta história nos inspira em que apesar das movimentadas cenas e da ação intensa, não cativa.

Tem estreia prevista nas salas para 20 de Maio

Classificação: 5 numa escala de 10

 

18 de maio de 2021

Opinião – “Blackbird: A Despedida” de Roger Michell

Sinopse

Lily (Susan Sarandon) e Paul (Sam Neill) convocam os seus filhos adultos para um encontro na casa de praia com a intenção de lhes comunicar uma decisão. O casal planeara um fim de semana de amor com as habituais tradições de família, mas o ambiente começa a ficar tenso quando surgem problemas mal resolvidos entre Lily e as filhas Jennifer (Kate Winslet) e Anna (Mia Wasikowska). Para além das filhas, estão o genro de Lily, a sua amiga de longa data, a companheira da filha Anna e o neto. Neste derradeiro encontro na casa de praia, e ainda na posse de todas as suas faculdades Lily partilha a sua decisão de pôr fim à sua longa batalha contra a doença. A sua história é, em última análise, um relato de esperança, amor e uma celebração da vida.

NOTA – Reedito esta opinião já anteriormente emitida, quando este filme tinha previsão de estreia em 2020 sem data definida. Tudo o que anteriormente foi dito continua válido e acrescento a informação que o mesmo tem estreia prevista nas salas para o próximo dia 27 de Maio, 5ª feira

Opinião por Artur Neves

Neste filme aborda-se de modo suave a temática da eutanásia, sem conflito, sem discussão política e apenas respondendo à pergunta crucial desta questão, que impropriamente tem levantado tanta polémica e que se resume à seguinte pergunta: Afinal, de quem é a vida?...

Na história, uma família de classe média alta convoca uma reunião que inclui três gerações para a mãe e avó desfrutar um fim de semana com todos antes de cometer suicídio acompanhado e assim usufruir do seu direito à vida que deve incluir a definição do seu termo de acordo com a sua vontade. Lily tem ELA que já lhe paralisou um braço e lhe dificulta o andar, arrastando a perna direita e provocará imenso sofrimento no futuro próximo, tal como, não poder alimentar-se, nem somente respirar sem ajuda mecânica. Ela rejeita esse sofrimento e enquanto goza das suas faculdades mentais e de um braço ativo, e quer despedir-se de todos os que lhe são mais próximos, pelo que inclui a sua amiga desde os anos de faculdade Liz (Lindsay Duncan) que sempre desempenhou um papel particular na sua vida e que vai continuar para lá da sua morte.

Para o almoço de domingo ela pede que seja um almoço de Natal (antecipado, não gosta do Dia de Ação de Graças) em que todos se empenham em recriar o ambiente Natalício, embora numa família estável existam sempre divergências, questões não resolvidas do passado e sofrimento contido que extravasa os limites em momentos de tensão como este. Sua filha mais velha; Jennifer (Kate Winslet) de temperamento nervoso, crítica absoluta, louca por controlo e impulsiva é casada com um homem, Michael (Rainn Wilson), que fala de assuntos que ninguém liga e facilmente se desliga do ambiente ou é posto de parte por este. Têm um filho; Jonathan (Anson Boon), um adolescente em plena descoberta da sua vocação e autonomia que lhes faz inusitadas revelações durante o almoço. A sua filha mais nova; Anna (Mia Wasikowska) gay, sofre de distúrbio bipolar nem sempre controlado, e vive uma relação instável com a sua namorada Chris (Bex Taylor-Klaus) que apesar de tudo vai contendo as imprevisibilidades comportamentais de Anna.

A cena do almoço que se celebra com estas pessoas é digna de ser apreciada pela cordialidade e elevação dos temas abordados, em que o sexo é comentado sem culpa nem preconceito, mas antes como a maior pulsão natural, própria de pessoas. São ditas coisas sem nota de culpa ou vergonha, incluindo as prendas que Lily destinou a cada um dos membros da família que inclui um vibrador para acalmar a impulsividade física e verbal de Jennifer que o marido é incapaz de compensar. É aqui que o cinema mais cumpre a sua função mostrando-nos eventos do quotidiano de uma forma neutra, despida de formalismo ou convenções atávicas, fazendo-nos refletir (se quisermos) sobre a nossa própria realidade.

Todo o elenco tem excelente desempenho em personagens realistas e credíveis mas Lily, Susan Sarandon, destaca-se pela sua habilidade de lidar com as inevitáveis cenas pesadas entre personalidades tão diversas, assim como em todos os momentos de humor suave criados para aliviar os momentos tensos. O seu desejo de ter um fim de semana “normal” só é conseguido depois de imprevistas revelações que ela não estava preparada para ouvir, embora isso não a afaste do seu objetivo, pois a sua decisão de morte é imposta pela progressiva degradação física provocada pela doença. Para lá das palavras, a história é enquadrada pelas arias de Johan Sebastian Bach e pela sonata para piano nº 16, de Mozart, que conferem a solenidade que o evento se reveste.

É um filme completo no aspeto da diversidade humana, importante, apesar de ser um remake de um filme dinamarquês de 2014, “Coração Silencioso”, cujos argumentos têm o mesmo autor; Christian Torpe, desta vez tendo como cenário a costa inglesa que só o valoriza. Está prevista a sua estreia em sala, sem contudo possuir ainda uma data. Recomendo sem reservas.

Classificação: 8 numa escala de 10

 

Opinião – “Protótipo” de Gavin Rothery

Sinopse

2049. George Almore (Theo James), especialista em robots, está à beira de uma descoberta. Instalado num complexo remoto e secreto, tem trabalhado no modelo dum androide que é um verdadeiro equivalente humano. O mais recente protótipo deste, o J3, está praticamente terminado. J3 é o aperfeiçoamento de dois protótipos anteriores, o J1 e o J2, em que cada um dos quais é uma versão cada vez mais avançada da sua esposa, Jules (Stacy Martin), que morreu num violento desastre de viação.

Motivado pelo seu amor por Jules, George desviou secretamente o foco do seu trabalho, desenvolvendo os robots com o objetivo de criar um simulacro da falecida mulher.

NOTA – Reedito esta opinião já anteriormente emitida, quando este filme tinha previsão de estreia em Novembro de 2020, Tudo o que anteriormente foi dito continua válido e acrescento a informação que o mesmo tem estreia prevista nas salas para o próximo dia 20 de maio, 5ª feira.

Opinião por Artur Neves

O local é uma montanha coberta de neve na China, perto de Kyoto (na realidade o filme foi realizado na Hungria, num cenário igualmente severo, e digo isto, não para retirar a mística da história mas simplesmente para reposicionar o filme) onde encontramos uma instalação de investigação científica de alta segurança, em que George Almore (Theo James) assume o papel de um one man show, um lobo solitário da ciência robótica que passou quase três anos a desenvolver um androide que mais se aproximasse de um ser humano através da introdução de Inteligência Artificial na sua programação.

Embora o trabalho se encontre praticamente concluído do ponto de vista técnico, George chegou à fase mais sensível do trabalho com uma máquina que replica o livre arbítrio da condição humana, começando a formar os seus próprios desejos diferentes dos do seu criador, já notados nos protótipos anteriores J1 e J2 que apesar de possuírem uma forma quadrada, distante da forma humana e de terem ficado paralisados nos níveis; infantil e adolescente, respetivamente, já experimentam sensações de ciúme e insegurança, particularmente J2 que questiona diretamente George sobre o seu distanciamento atual, decorrente do envolvimento com J3 em fase avançada de realização.

Sendo este o tema principal da história, esta complica-se quando George mistura no seu trabalho o seu sofrimento pela perda da sua mulher num desastre de automóvel e pretende encontrar a imortalidade e a suavização da sua dor, através da programação da personalidade da sua falecida esposa Jules Almore (Stacy Martin) na consciência de J3, tornando-a no monstro ciumento de Frankenstein. Esta evolução é conseguida através de flashbacks sobre a vida de ambos antes do desastre, dos tempos felizes que passaram, que confere à história um fundo emocional que nos mostra o que ele perdeu, justificando a sua vontade de trazê-la de volta.

Gavin Rothery é também o autor do argumento que não dá respostas ao espectador e pelo contrário até levanta questões sobre os limites do controlo através da Inteligência Artificial, sem todavia ensaiar qualquer resposta e adicionar assuntos periféricos, tais como a vigilância remota do seu trabalho por uma supervisora mal-humorada Simone (Rhona Mitra) e a intervenção de vilões sombrios e deslocados que presumidamente vêm inspecionar o seu trabalho mas de uma forma a todos os níveis imprópria para um trabalhador intelectual na área da investigação robótica. É uma utilização avulsa do ator Toby Jones que definitivamente não pertence a esta história nem contribui para ela.

O desenvolvimento da narrativa não é linear, mas para nos fazer entender que ele pretende recuperar a sua falecida esposa no corpo de um androide talvez isso se justifique. O ambiente do laboratório foi conseguido em tons de prata serenos que alternam com o vermelho pulsante no caso de alarme, ou em neons elétricos sempre que o mundo exterior se intromete no santuário tecnológico isolado de George. A música de Steven Price (compositor de “Gravidade”) faz o seu trabalho envolvendo a ação em cordas suaves e sintetizadores nos momentos mais agudos. O enredo prende-nos se tivermos disponibilidade para o aceitar, mas isso só se verifica através de um esforço de vontade durante 109 minutos.

Classificação: 6 numa escala de 10

 

15 de maio de 2021

Opinião – “O Mauritano” de Kevin Macdonald

Sinopse

O Mauritano é uma história verídica de sobrevivência que relata a luta pela liberdade de Mohamedou Ould Slahi (Tahar Rahim) nomeado para um Globo de Ouro®) após ser detido pelo governo dos EUA, e encarcerado, durante anos, sem julgamento, na Baía de Guantánamo. Slahi encontra os seus únicos aliados na advogada de defesa Nancy Hollander (Jodie Foster, vencedora de dois OSCAR® da Academia) e na sua associada Teri Duncan (Shailene Woodley, nomeada para dois Globos de Ouro®), as quais, contra o governo dos EUA, lutam por justiça. Através da controversa defesa de Slahi, juntamente com provas descobertas por um notável procurador militar, o Tenente-Coronel Stuart Couch (Benedict Cumberbatch, nomeado para um OSCAR® da Academia), descobre-se a mais chocante verdade...

O Mauritano, baseado nas memórias inspiradoras de Mohamedou Ould Slahi (Diário de Guantánamo), é realizado por Kevin Macdonald, vencedor de um OSCAR® da Academia.

Opinião por Artur Neves

Baseado nas memórias do prisioneiro que sofreu as sevícias mostradas no filme, esta história conta-nos o drama de um homem detido durante 14 anos na prisão de Guantánamo sem acusação formal. Para ser mais preciso, ele foi preso preventivamente 7 anos até ao primeiro julgamento que o ilibou por falta de provas, mas continuou detido pelo governo americano por outros 7 anos, pelos sucessivos recursos da acusação que manteve discordância sobre o sentido do acórdão do primeiro julgamento, tendo sido libertado somente quando o governo esgotou as alegações que mantinham a sua discordância.

Decorrente dos esforços e dedicação de duas advogadas, Nancy Hollander (Jodie Foster) e Teri Duncan (Shailene Woodley) com destaque fundamental para a primeira, considerando que o espírito de equipa e colaboração entre elas se desfaz ao fim de algum tempo (será posteriormente recuperado mas chegam a separar-se) este filme mostra-nos ainda como as convicções humanas influenciam a razão objetiva que deve presidir à análise dos factos, de maneira tão absolutamente contraditória, entre duas mulheres que analisam o mesmo assunto.

Na sequência do 11 de Setembro os serviços secretos americanos encontram indícios que são compatíveis com a incriminação de Mohamedou Ould Slahi (Tahar Rahim, num desempenho surpreendentemente espetacular) como o mentor e estratega do choque do 2º avião contra as torres gémeas. Conseguem isso pelo conhecimento da localização e dos contactos de Slahi com os terroristas efetivamente envolvidos no ataque e com quem ele não nega ter tido esses contactos, embora num contexto totalmente diferente do que é subentendido pelos investigadores. A investigação assim desenvolvida gera a convicção de culpa de Slahi, que adicionada à pressão do governo dos USA em encontrar os culpados, justifica a sua inevitável prisão para posterior julgamento e inerente acusação.

Para os investigadores e para o governo dos USA as suspeitas funcionam como provas e a concessão do direito de defesa pelas advogadas não passa, em princípio, de um mero pró-forma. Só que Hollander e Teri mergulham profundamente nos documentos da acusação dos investigadores, assim como o advogado de instrução do processo, o Tenente-Coronel Stuart Couch (Benedict Cumberbatch) e dessa análise surgem as mais fundadas dúvidas, não só pela análise dos factos narrados por Slahi, como também, pelos documentos que são disponibilizados pelos investigadores, rasurados, truncados no seu conteúdo e resumidos em relatórios fechados que os impedem de formular um raciocínio coerente e lógico sobre os eventos, ligações e crimes de que Slahi está acusado.

Hollander e Teri também não conseguem provar que Slahi está inocente, nem a narrativa nos apresenta qualquer prova disso, porque as justificações de Slahi para os contactos que ele efetivamente assume que teve com os terroristas também não podem ser provadas. Apenas pode concluir-se que não há provas e que as confissões de culpa de Slahi foram obtidas sob tortura em condições infra humanas em que qualquer um confessa o que lhe mandem confessar, para aliviar um sofrimento insuportável.

Temos portanto uma história de contrastes, muito bem contada, com personagens convincentes onde se destaca Tahar Rahim num desempenho exemplar de resiliência contra as sevícias sofridas nos interrogatórios, onde consegue aprender inglês com os guardas durante o tempo de prisão e escrever coerentemente a sua versão dos factos para suporte da defesa. Jodie Foster destaca-se na sua tenacidade e perseverança pela defesa do seu cliente e Benedict Cumberbatch mostra-nos com segurança, a frustração de um oficial general desencantado com a justiça do seu país ao ponto de resignar ao posto que ocupa.

Kevin Macdonald soube construir com qualidade este equívoco jurídico e legal que está próximo de muitas realidades quotidianas. É um filme para ver e refletir, recomendo vivamente.

Estreia a 20 de Maio nos cinemas

Classificação: 7 numa escala de 10

 

13 de maio de 2021

Opinião – “Spiral, O Novo Capítulo de Saw” de Darren Lynn Bousman

Sinopse

Um sádico mentor desencadeia uma forma distorcida de justiça em Spiral, O Novo Capítulo de Saw. A trabalhar na retaguarda de um conceituado veterano da polícia (Samuel L. Jackson), o impetuoso detetive Ezekiel "Zeke" Banks (Chris Rock) e o seu novo colega (Max Minghella) ficam encarregues duma investigação sobre assassinatos que recordam, assustadoramente, atos horrendos ocorridos há muitos anos. Involuntariamente envolvido num mistério profundo, Zeke encontra-se no centro do jogo mórbido do assassino.

Opinião por Artur Neves

Os filmes “Saw” constituem uma saga de terror e suspense gerada em Hollywood pela mão de James Wan e Leigh Whannell produzida pela Lionsgate, cujo primeiro filme de 2004 (foi estreado em Portugal em 2005) com o nome de “Saw – Enigma Mortal” a que se seguiram seis sequelas até 2010 ao ritmo de uma por ano sempre numa vertigem gore que se pautou por uma sequência decrescente de qualidade no enredo, contrastado com o progressivo refinamento dos efeitos especiais e das mirabolantes ideias dos “castigos”… “desafios”… impostos às vítimas numa sanha justicialista com forte carácter de assassínio mórbido.

Na terceira sequela de 2006 “Saw – O Legado” mata-se o assassino original John Jigsaw (Tobin Bell) e o mundo tem o ensejo de pensar que seria o fim da saga. Erro crasso, a saga continua a produzir sequelas com narrativas esdruxulas para explicar como depois de morto o assassino e os seus aprendizes continuavam a torturar pessoas. Posteriormente em 2017 aparece ainda um último estertor com “Jigsaw – O Legado de Saw” e com o mesmo personagem demoníaco agora designado por John Kramer e interpretado pelo mesmo ator. Se a saga de “Saw” continuava a render então porque parar?...

Quero ainda deixar claro que o primeiro filme da saga constituiu uma novidade no seu enredo e na sua narrativa, considerando que os jogos de computador estavam ainda no seu início, a tecnologia era insuficiente para provocar as emoções que hoje consegue transmitir e assim a surpresa contida na história de Saw produzia os efeitos desejados para os mais corajosos que aceitavam o desafio e se empolgavam com os ardis criados pela mente perturbada e controversa de Jigsaw. Aliás a cena mais emblemática do 1º filme, um prisioneiro algemado a um tubo que só conseguirá libertar-se se serrar a própria perna com um serrote que lhe foi disponibilizado é repetida neste “Spiral – O Novo Capítulo de Saw” mas sem o efeito anterior, porque sem a inevitabilidade do acto a cena torna-se supérflua e passará despercebida aos espectadores de “primeira viagem” neste filme de 2021.

“Spiral, O Novo Capítulo de Saw” inverte os termos à ideia original e fabrica o suspense através de polícias que procuram descobrir o serial killer que concebe os assassínios punitivos. Em “Saw” o vilão intocável era Jigsaw para quem a polícia não passava de meros intervenientes secundários sem capacidade de intervenção contra a inteligência criativa do seu perpetrador. Contrariamente neste filme, aproxima-se a sua narrativa à de “Seven – 7 Pecados Mortais” de 1995, mas sem o brilho, a argúcia, a imaginação da narrativa perfeitamente lógica do assassino John Doe (Kevin Spacey), em transformar as vítimas em pecadores que morrem de acordo com o castigo para os seus pecados bíblicos, como mártires das suas fraquezas terrenas. “Spiral” não tem essa força, embora tenha o mérito de destacar o presumível conluio de corrupção e mau comportamento cívico e profissional das forças policiais regulares que vão sendo punidas sequencialmente com sofrimento e castigos tirados do catálogo de “Saw”, donde advém a sua referência a essa, esperemos, extinta saga.

Assim, ficamos com o 1º episódio de uma nova saga que começa por emparceirar o género policial numa esquadra com polícias corruptos e seguindo no género de terror que lhe deu origem, com armadilhas semelhantes mas mais sofisticadas que as anteriores, concebidas por um imitador de Jigsaw que se apresenta com uma máscara de porco e que obriga as suas vítimas a fazerem as escolhas que selam o seu destino. A razão das mortes faz parte do enredo da história, todavia sem uma razão convincente para reivindicar o culto de Jigsaw podendo concluir-se ser a Lionsgate a querer fazer renascer o “Saw” na espectativa de reativar o filão anterior. Para mim seria mais produtivo a reinicialização do género com um personagem totalmente novo mas eles é que sabem.

No original, Jigsaw sempre afirmou nunca ter matado ninguém e os seus jogos serem apenas uma maneira de ensinar às pessoas o sentido da vida enquanto a possuímos e podemos agir. Em “Spiral”, ao combater a corrupção policial através do incorruptível Zeke Banks (Chris Rock) esbatem-se os dilemas morais que distinguiram os melhores dois filmes da saga anterior; “Saw I” e “Saw II”, todavia um revivalismo duma história com estes contornos poderia ainda ser pior.

Estreia nas salas de cinema em 12 de Maio

Classificação: 5 numa escala de 10

 

6 de maio de 2021

Opinião – “Estados Unidos vs Billie Holiday” de Lee Daniels

Sinopse

A lendária Billie Holiday, uma das maiores intérpretes de jazz de todos os tempos, foi adorada por fãs de todo o mundo durante a maior parte da sua carreira. Na década de 1940, em Nova Iorque, o governo federal perseguiu Holiday no âmbito de um esforço crescente para escalar e racializar a guerra contra a droga, procurando impedi-la de cantar a sua controversa e comovente balada Strange Fruit.

Com realização do nomeado para Óscares® Lee Daniels (realizador de 'Precious' e 'O Mordomo'). e com participação da cantora e compositora nomeada para Grammys® Andra Day, Estados Unidos vs. Billie Holiday apresenta com frontalidade a vida complicada e irreprimível deste ícone musical. A argumentista Suzan-Lori Parks, a primeira afro-americana a ganhar um Prémio Pulitzer de Teatro, escreveu esta íntima história sobre uma destemida pioneira, cuja rebeldia na música ajudou ao crescimento do movimento dos direitos civis. Vencedora do Globo de Ouro para Melhor Atriz na categoria Drama, Andra Day está nomeada ao Óscar de Melhor Atriz.

Opinião por Artur Neves

Este é mais um biopic da dramática vida de uma mulher que fez carreira como intérprete de jazz com ampla aceitação de um público vasto que incluía os seus semelhantes raciais mas também uma América na euforia do progresso, saída recentemente da grande recessão e como tal ansiosa por tempos melhores de descontração e lazer que fizessem esquecer os anos de chumbo, cujas consequências estavam ainda visíveis em muitas comunidades, principalmente na comunidade negra que constituía a população alvo das acusações de desagregação de um povo que se assumia como superior. Em termos práticos, nada de novo, ontem como hoje, relativamente a um passado recente de má memória de que estamos bem lembrados.

O filme começa com uma entrevista a um jornalista de costumes, Reginald Lord Devine (Leslie Jordan) de aparência e comportamento francamente efeminado que sem qualquer pudor, considerando a história de Billie Holiday, lhe pergunta “Como é ser uma mulher de cor?” ao mesmo tempo que exibe um sorriso idiota sem transmitir o mínimo sinal de empatia a uma mulher visivelmente debilitada, claramente doente pelo vício da droga e pela perseguição que lhe foi movida durante toda a vida para que não cantasse a sua comovente balada “Strange Fruit” que constituía a mais flagrante denúncia contra a perseguição sofrida pelos negros numa américa de raiz esclavagista que apesar de formalmente democrática, dificilmente continha o espírito sulista fiel seguidor de práticas condenadas por uma sangrenta guerra civil. A sua polémica canção em tons de profundo lamento, pretende dar voz a todos os que sofrem por si próprios e pelos mais próximos e resistem sofrendo com medo de serem linchados. Este lamento cantado incomodava a elite por receio que dele resultasse uma revolta popular em defesa dos direitos civis dos negros.

É na sequência de a quererem calar que a polícia a acusa de consumo de drogas exigindo a denúncia dos seus fornecedores, que ela de facto não conhece mas que é entendido como uma ocultação do tráfico e punido como tal. Para a tentar apanhar em flagrante atribuem a Jimmy Fletcher (Trevante Rhodes) um polícia negro, a tarefa de a seguir e incriminar mas o resultado é contrário ao objetivo porque ele apaixona-se por ela, reconhece os seus motivos e defende-a em tribunal carreando o ódio do seu chefe, Harry Anslinger (Garrett Hedlund) e sendo expulso da organização. Ele constituiu o verdadeiro amor da sua vida, porque da parte do marido só recebia maus tratos e droga.

Lee Daniels pretende mostrar-nos isso através da representação de múltiplas cenas da vida de Billie Holiday que não foram escolhidas com a mesma atenção da cena da entrevista, desqualificando-a e retirando-lhe o poder que o espectador perceciona nas primeiras imagens. As tentativas de conferirem profundidade à história como uma conversa entre o polícia apaixonado por Billie, Jimmy Fletcher e o ascensorista do hotel (Furly Mac) são demasiado rápidas e fugazes para refletirem o debate de ideias que a vida de luta de Billie merece. Percebe-se a intenção, mas neste caso é necessário saber o que se quer contar e como apresentá-lo numa sequencia coerente. Neste filme isso é entendido como o regresso à “casa da partida” (a entrevista) mas ao contrário, só faz e reduzir o vigor daquela conversa.

A história vale sobretudo pela soberba interpretação de Andra Day, inerentemente nomeada ao Óscar 2021 sem todavia lho ter sido concedido, pela sua superior atuação num papel exigente que polariza a atenção do espectador durantes os 130 minutos do filme pela tão convincente representação de uma das maiores cantoras de jazz da história que para além do seu lado artístico personifica uma lutadora pelos direitos dos negros. Pena é que a história se centre mais no melodrama sentimental e menos na luta de classes que permaneceu constante nos 44 anos de vida de Billie Holiday. Morreu no hospital, vítima dos seus excessos de droga, bebida e de cancro mas teve uma vida cheia, foi amada e é um ícone do seu tempo.

Te estreia prevista nas salas em 20 de Maio

Classificação: 6 numa escala de 10

 

4 de maio de 2021

Opinião – “Minari” de Lee Isaac Chung

Sinopse

Uma terna e arrebatadora história sobre o que nos faz criar raízes, Minari acompanha uma família coreana-americana que se muda para uma pequena quinta no Arkansas em busca do seu próprio sonho americano. A casa da família sofre uma enorme mudança com a chegada da avó, matreira e desbocada, mas extremamente carinhosa. Por entre a instabilidade e os desafios desta nova vida nas rudes montanhas Ozark, Minari mostra-nos como a família é resiliente e como se constrói um lar.

Com Steven Yeun (Walking Dead; Burning) num dos principais papéis, Minari foi o filme vencedor do Grand Jury Prize e do Audience Award no Festival de Sundance de 2020. Vencedor do Globo de Ouro para o Melhor Filme Estrangeiro de 2021, Minari foi nomeado para seis prémios BAFTA e 6 Óscares® da Academia, nomeadamente para ‘Melhor Filme’, ‘Melhor Ator’ (Steve Yeun), ‘Melhor Realizador’, ‘Melhor Atriz Secundária’, ‘Melhor Banda Sonora Original’ e ‘Melhor Argumento Original.

Opinião por Artur Neves

Minari é um filme simpaticamente desconcertante… 

Simpaticamente por ser uma história de família, que valoriza a célula familiar, a entreajuda que deve existir (e existe neste caso) entre os membros que a constituem, as pequenas disputas familiares, o quotidiano de uma família coreana que resolve abandonar a sua terra em busca do sonho americano, no Arkansas rural e temente a Deus, na década de 60, com uma filha pré adolescente e um filho em idade infantil que serve como polo de atração para toda a narrativa que seria ainda mais pobre se ele não existisse.

Desconcertante… porque nos faz pensar; então e depois?... são imigrantes a lutar pela vida, pelo sustento do dia a dia obtido á custa da observação do sexo de pintos para os separarem em caixas diferentes, privilegiando as fêmeas que no futuro podem resultar em galinhas poedeiras e queimando os machos que por não porem ovos não podem esperar outro destino que não a incineração.

Minari é apenas uma erva aromática que a avó, Soonja (Yuh-jung Youn) trouxe da Coreia e plantou nas margens de um pequeno riacho nos limites da quinta, quando veio viver com a filha Monica (Yeri Han) a pedido desta e que já tinha motivado alguns atritos com o marido Jacob Yi (Steven Yeun) que privilegiava com maior interesse a rentabilização do terreno da pequena quinta para exploração agrícola de vegetais para vender na cidade, do que para cultivo de flores como era a preferência de Monica. Quero ainda deixar claro que acho forçada a atribuição a Yuh-jung Youn o prémio de Melhor Atriz Secundária na cerimónia dos Óscares 2021, quando comparando o seu desempenho com o de Olivia Colman em “O Pai” ou Glenn Close (muitas vezes nomeada e nunca premiada) em “Lamento de uma América em Ruínas” (ainda não anunciado em Portugal) que na minha opinião devem justamente sentir-se frustradas com as suas desqualificações neste certame.

Não é que o desempenho de Yuh-jung Youn tenha sido menor ou despiciente, mas o papel que lhe foi atribuído não exigia mais para lá de uma avó carinhosa, sim, matreira e desbocada como se refere na sinopse, não, mas apenas avó, coreana tradicional, com hábitos desajustados à nova vida, que após ter sofrido um AVC provoca um incêndio de consequências devastadoras a toda a família.

A vida decorre monótona, tendo no pequeno David (Alan S. Kim) o centro das suas preocupações, no seu problema cardíaco que preocupa todos e carece de cuidados especiais que o pequeno coreano nem sempre segue. O trabalho na quinta após as obrigações profissionais de Jacob Yi também é difícil de manter, só com a ajuda do seu vizinho Paul (Will Patton) um religioso fanático iluminado por uma fé religiosa que o faz caminhar cambaleante pelas ruas com uma cruz às costas, celebrando o caminho para o calvário de Jesus Cristo e impondo a sua presença a Jacob Yi que acaba por aceitá-lo como colaborador, o que faz deste filme uma história sem heróis em que apesar das suas diferenças intrínsecas ninguém é minimizado ou ridicularizado, nivelando igualmente todos os personagens.

Jacob e Monica trouxeram diferendos conjugais da Coreia que são dificilmente ultrapassáveis e o seu afastamento é dolorosamente tangível nos conflitos amargos nunca resolvidos e relegados para um limbo que o filme prefere ignorar, mostrando-nos apenas um hiato de vivência de um casal que resolveu arriscar fora do seu meio natural. “Minari” fica assim reduzido a uma erva aromática num “cozinhado insonso” que se esgota em si próprio e cujo “cozinheiro”; Lee Isaac Chung, parece que perdeu a mão.

Tem estreia prevista para 13 de Maio nas salas de cinema

Classificação: 5 numa escala de 10


2 de maio de 2021

Opinião – “Undine” de Christian Petzold

Sinopse

Undine é uma historiadora de arte que dá conferências sobre o desenvolvimento urbano da cidade de Berlim. Certo dia, apaixona-se por Johannes, com quem inicia um relacionamento amoroso. Quando ele a troca por outra mulher, Undine vê-se tomada por um desejo incontrolável de o matar.

Opinião por Artur Neves

Christian Petzold, realizador alemão de créditos firmados na arte cinematográfica habituou-nos à demonstração de personagens fortes, bem caracterizados e bem definidos, tais como em “Barbara” de 2012, a história de um casal com ideias bem definidas entre si, ou "Phoenix" de 2014, ou ainda, "Em Trânsito" de 2018, onde contracena com o mesmo par romântico deste seu filme mais recente, em histórias centradas no real, aparece-nos agora misturando amor e fantasia recriando a figura mitológica de Ondine uma ninfa habitante dos mares que somente se concretiza através do amor fiel, punindo-o com a morte desde que conheça uma infidelidade da parte deste.

Aliás, “Ondinas” (ou Undine na versão original da mitologia clássica) são entidades descritas com características femininas, associadas à água, mencionadas por Paracelso, encontradas na literatura clássica, particularmente em “Metamorfoses de Ovídeo” que modernamente foram utilizadas na literatura e no cinema como em “A Pequena Sereia”, que sem possuírem alma ou forma humana, podem adquiri-la pela sua proximidade com os humanos a quem se dedicam para toda a eternidade até serem alvo de uma rejeição por parte destes.

É neste particular que entra a história contada em “Undine” e que se estranha ter origem em Christian Petzold, considerando o seu sóbrio pragmatismo nos trabalhos anteriormente referidos, até porque, morrer de amor já não se usa e matar por despeito de ser deixada pode não ser a forma mais fácil de acabar com uma relação esgotada.

O filme começa precisamente pela declaração de uma personagem feminina, forte e determinada, Undine (Paula Beer) declarando ao seu atual companheiro, Johannes (Jacob Matschenz) a necessidade imperiosa de o matar se ele deixar de amá-la ou a trocar por outra, coisa que ela já suspeita considerando as dúvidas demonstradas na conversa com ele, á mesa da esplanada situada em frente do Departamento de Desenvolvimento Urbanístico de Berlim onde ela trabalha como historiadora e palestrante sobre a evolução arquitetónica da cidade, antes e depois da queda do muro que dividiu a cidade sob a gestão dos dois regimes políticos diferentes que a governaram no pós 2ª guerra mundial.

A declaração fria e definitiva da sua intenção de matar inspira-se no mito de Ondina, como uma espécie de vertigem feminina de uma mulher fria, mas também capaz de se entregar sem limites numa relação impolutamente recíproca. Aqui não quero deixar de referir a interpretação convincente e perfeita de Paula Beer, como sendo o melhor registo que o filme nos oferece.

A história desenvolve-se pela falência do atual romance e pela transferência do amor para Christoph (Franz Rogowski) num encontro fortuito que resulta em espetacular acidente, onde se evidenciam as caraterística e o ritual do amor à primeira vista. O elemento marcante do acidente fica corporizado num boneco de porcelana que representa um mergulhador de escafandro que se vai revelando ter poderes sobrenaturais (tal como em “A Forma da Água” de 2017 mas não tão exuberante) que poderá simbolizar metaforicamente a premonição da sua relação com Christoph, considerando que este é soldador profissional em trabalhos realizados em ambiente submerso.

É aqui que se desconhece Petzold porque no seguimento o filme assume duas linguagens e dois planos diferentes entrando progressivamente no domínio do presságio e do sonho, misturando repetidamente o real com o pesadelo e com o fantasmagórico que se apresenta a Christoph como inevitável e potencialmente mortal. A narrativa prossegue entre o mítico e o real, numa luta simbólica entre o transcendente e o real onde parece que Petzold não teve fôlego para descodificar entre o amor generoso e o amor obsessivo mantendo ambos os sentimentos na dualidade incerta das suas verdadeiras dimensões.

Para lá da vertente do amor mitológico o filme também se detém no desenvolvimento arquitetónico de Berlim, focando-se particularmente no Forum Humboldt que foi reconstruído neste século à semelhança do que era antes de ser demolido, mas que, para quem não conhecer a problemática subjacente ao processo, conduz-nos à perplexidade e confusão sobre o que Petzold pretende ao seguir por aquele caminho, guiado por um amor de contornos transcendente que nos faz pensar que o realizador não soube objetivar a narrativa em que se meteu.

Não posso dizer todavia que seja um filme desinteressante, mas antes, diferente do que Petzold nos habituou, fazendo-nos pensar que, a ambição de querer construir um mistério de amor assente numa tese de história da cidade de Berlim pautada pelo amor á cidade, tenha confundido ambos os objetivos prejudicando-os reciprocamente.

Em exibição nas salas de cinema

Classificação: 5 numa escala de 10