23 de dezembro de 2020

Opinião – “Crash” de David Cronenberg

Sinopse

"CRASH" é um dos maiores êxitos da carreira de David Cronenberg e, também, um dos seus filmes mais controversos e polémicos. Adaptado do romance de J.G. Ballard, “CRASH” é um filme demencial sobre o fascínio do sexo e da morte sobre rodas, uma macabra visão sobre a combinação entre erotismo e mutilação, autodestruição calculada e desejo sexual, morte violenta e acidentes rodoviários.

James Ballard (James Spader), um produtor de filmes publicitários, tem um grave acidente de viação ao colidir com outro automóvel, que resulta na morte do outro condutor e deixa a mulher dele, ferida. No hospital, Ballard perde-se e volta a encontrar Helen Remington (Holly Hunter), a viúva da vítima mortal do acidente. Na sua companhia conhece Vaughan (Elias Koteas), um cientista e fotógrafo fascinado pela beleza erótica dos ferimentos e das mutilações originadas por acidentes de viação. Ballard começa por se sentir curioso em relação a Vaughan e às suas ideias de recriar acidentes célebres, como o que vitimou James Dean. E, lentamente deixa-se contagiar pelo erotismo que emerge da insólita combinação.

Opinião por Artur Neves

Em 1996 este foi o filme choque do ano que levantou grande polémica no Reino Unido tendo sido objeto de análise pelo conselho de Westminster que emitiu um édito solene proibindo a sua exibição nos cinema como proteção para os bons costumes, cujos guardiões se sentiram atingidos nessa época com tanta exibição sexual associada ao erotismo provocado por um acidente automóvel. Basicamente após um acidente com feridos e eventualmente mortos, na opinião do realizador David Cronenberg e segundo a prosa macabra de J.G. Ballard no seu romance “Crash”, original de 1973, com uma história sobre uma parafilia designada por sinforofilia, (fetichismo sexual em acidentes de automóvel) em que os sobreviventes são assaltados por um erotismo avassalador que os convida à prática sexual imediata, até junto aos destroços do carro sinistrado como mostram as últimas imagens deste filme.

Vinte e quatro anos depois surge-nos esta versão “remasterizada” para alta definição (1080p) e 4K (2160p) UHD com HDR (High Dynamic Range) supervisionadas por Cronenberg e pelo diretor de fotografia Peter Suschitzky que nos garante fidelidade ao original e que tem como vantagem clarear muitas das cenas que foram filmadas à noite e que se apresentavam muito escuras. O upscaling deste filme revelou-se uma boa solução acentuando os espaços menos escuros mas sobretudo valorizando os espaços internos, opressivos e apertados dos carros sinistrados onde se passa muita da ação da história, permitindo ao espectador uma visão mais nítida do seu interior.

A história está suficientemente descrita na sinopse pelo que não irei acrescentar mais nada, exceto que a sua sequência não é muito linear privilegiando-se a exibição das cenas que causam impacto no espectador em vez da construção da relação que as suporta. O filme pretendia quebrar os tabus ainda vigentes na época mostrando inconformismo perante comportamentos e crenças normativas que limitavam a liberdade individual mutuamente aceite. Crash foi feito com a nítida intenção de ser polémico, de chocar de frente com a generalizada hipocrisia das crenças sociais e religiosas que conduzem à castração da líbido e à normalização e controlo dos comportamentos humanos.

Cronenberg filma a história sem valorizar muito o ambiente em que ela se desenrola, a cidade é apenas o lugar, um labirinto de cimento e asfalto que se sobrepõe à empatia e ao contacto humano e confere palco ao acidente que potencia o lado primitivo e carnal das personagens que na história levam vidas desinteressantes e paradas, sem interesses para lá da sua fixação obsessiva no desastre donde retiram toda a sua humanidade. O desastre, o choque entre os automóveis funciona tanto como o evento nocivo resultante, como a metáfora que acorda os personagens e os retira do marasmo das suas vidas vazias porque é só para aquilo que eles existem, para o sexo, para a partilha derradeira dos seus corpos, depois de mutilados pelo acidente ou pelo choque deliberadamente provocado donde resulta esta derradeira comunhão.

A narrativa é circular, centrada no sexo quase explícito, embora sem nunca ser pornográfico, o filme repete-se das formas mais esdruxulas de sexualidade humana das quais destaco o personagem de Gabrielle (Rosanna Arquette), uma mulher de porte atraente mas com ambas as pernas suportadas por um aparelho que forma um exosqueleto que lhe permite a locomoção, vestida com um fato de cabedal rígido que serve de suporte ao tórax. Apesar das dores que deve sentir por todo o corpo e de cicatrizes visíveis nas pernas não perde o desejo sexual nem a apetência pelo desastre.

Quando estreou em Cannes e desde logo polémico, embora tendo ganho o Prémio Especial do Júri pela ousadia da sua originalidade, “Crash” ganhou aquela aura do extraordinário e do diferente por abordar as relações humanas de uma forma tão violentamente inquietante que se torna hipnotizante. Não nos seduz mas questiona-nos na nossa humanidade onde não cabe a indiferença. Deve ser visto pelo menos uma vez na vida e estará disponível a partir de 7 de Janeiro nos cinemas.

Classificação: 7 numa escala de 10



 

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