10 de maio de 2020

Opinião – “Rainha de Copas” de May el-Toukhy


Sinopse

Anne, uma bem-sucedida advogada, vive numa belíssima casa modernista com as suas duas filhas e o marido Peter. Quando Gustav, o filho problemático de Peter, fruto de uma relação anterior vai viver com eles, Anne cria uma relação íntima com o jovem que põe em risco a sua vida perfeita. E aquilo que parecia inicialmente um acto de libertação, transforma-se numa história de poder, traição e responsabilidade, cujas consequências são devastadoras.

Opinião por Artur Neves

Pela mão de May el-Toukhy, uma realizadora dinamarquesa de origem egípcia, que igualmente participou em conjunto com Maren Louise Käehne na construção final do argumento, temos este excelente filme, vencedor do Prémio do Público no Festival de Sundance em 2019 e indicado pela Dinamarca para os óscares na categoria de Melhor Filme Estrangeiro que a Academia Americana se apressou a eliminar liminarmente, nem sequer o citando como candidato, considerando que a história aborda o assédio sexual de uma mulher a um rapaz de 17 anos seu enteado, o que iria frontalmente contra os ventos da época, engajados nos movimentos Time’s Up e #MeToo acérrimos promotores das denúncias de assédio sexual e moral a senhoras impolutas.
Sem prejuízo da aplicação da justiça ao mais famoso indiciado nessas práticas; o magnata Harvey Weinstein, fundador com o seu irmão da produtora Miramax, o filme ilustra como o assédio é um assunto transversal a ambos os sexos não havendo justificação objetiva à demonização do sexo masculino com a consequente vitimização do sexo feminino.
Anne (Trine Dyrholm, uma das mais conceituadas atrizes dinamarquesas) advogada da área familiar sobre casos de abuso e violência doméstica, vive com o seu marido Peter (Magnus Krepper) um médico de Estocolmo, viciado em trabalho, de trato rude e frequentemente ausente da maravilhosa casa onde o casal habita, situada em meio rural, circundada por árvores esguias de troncos nus e pouco frondosas mas que servem de filtro esparso à luminosidade do verão nórdico em fim de tarde e propiciam o tapete de folhas no solo que convida a passeios nostálgicos e mergulhos ocasionais na lagoa próxima.
Gustav (Gustav Lindh) é um jovem de rosto duro, revoltado com sua situação, fruto do primeiro relacionamento de Peter e que provisoriamente veio habitar com eles por desavenças com sua mãe, mas que estabelece excelente relação com as gémeas filhas de Anne, Fanny e Frida que podem ser representadas pelos personagens fictícios do romance de Lewis Carroll “Alice do Outro lado do Espelho” considerando a sua proximidade constante, sempre vestidas de igual, recebendo presentes iguais e ambas praticando equitação, com uma apetência cultivada pela mãe. Aliás, Anne também possui uma irmã, que neste contexto pode ser comparada à rainha má do mesmo conto e com quem não possui uma relação amistosa, decorrente das várias diferenças de sucesso alcançado profissionalmente por cada uma.
Os povos nórdicos têm esta tendência de submeter às suas tradições o seu modelo de vida atual, como forma de validação das suas premissas.
Anne, de rosto calmo com rugas de expressão, habita um palácio de cristal (a casa está repleta de amplas superfícies vidradas) num ambiente paradisíaco, de natureza, silencio e comodidade onde se sente demasiadamente só. O seu casamento já terá atingido a fase do apaziguamento da paixão embora ela incentive o seu marido a outros voos que são delicadamente suspensos pelas ocupações diárias e pelo cansaço. Eles reúnem frequentemente amigos em casa para passar a ideia de perfeição e felicidade, como é apanágio frequentemente reconhecido na sociedade dinamarquesa, quando o que realmente perdura é a monotonia e a solidão. Eles estão reféns da salvaguarda dos seus papéis sociais e absorvidos pelas aparências. Refletindo sobre si, ela desnuda-se em frente do espelho e exibe todas as suas rugas e estrias de um corpo de meia idade e sem ser uma femme fatale, longe disso, reúne espiritualmente todas as condições para amar e ser amada e da capacidade erótica de cativar o outro num amplexo amoroso.
O clique com Gustav dá se num banho na lagoa em que ambos se molham furiosamente, espargindo água num despique de inconsequente aproximação. Ela está reconhecida a Gustav pela companhia que faz às filhas e pergunta-se secretamente se lhe poderá também fazer companhia a ela e daí, como consequência do seu desejo de fuga à solidão acende-se o seu desejo sexual por Gustav, consumado numa noite de insónia em que deliberadamente o procura no seu quarto.
O filme é bastante completo na complexidade da temática que aborda e a realizadora não nos apresenta personagens unilaterais, pelo contrário, todos os personagens podem ser analisados nas suas múltiplas facetas e se as cenas entre Anne e Gustav representam a libertação das convenções e o amor, a relação entre Anne e Peter está eivada da dificuldade que ela sente na cama em se submeter ao marido assumindo uma atitude agressiva, representando a perda que o poder do homem, no conjunto do casal, se tem vindo a verificar através dos tempos devido á progressiva autonomização da mulher.
Todavia, nesta história não há culpados, há apenas seres que sofrem e se enredam na ilusão do amor total cometendo erros, e seres em formação, inconscientes do poder dos seus sentimentos que desmentem o chavão de que o envolvimento entre mulheres adultas e adolescentes jovens é mais romântico do que a relação que se estabelece entre mulheres adolescentes e homens adultos. A finalizar não quero deixar de referir a excelente banda sonora de Jon Ekstrand que prolonga e intensifica a ansiedade produzida pela história, ora frenética, ora colérica. Muito bom, completo, sem falhas.
O filme está disponível nos video clubes das televisões nacionais; MEO, NOS e Vodafone e pode ainda ser visto na plataforma eletrónica FILMIN Portugal pelo preço de €3,95, estando disponível para visionamento durante 72 horas.

Classificação: 9 numa escala de 10

NOTA: O filme está referenciado negativamente por uma cena de sexo explícito durante 4 segundos, mas na minha interpretação trata-se de uma simulação praticada com um vibrador ou com um brinquedo sexual semelhante. A história tem suficientes motivos de interesse por si mesma, para necessitar desses subterfúgios que não acrescentariam qualquer valor ao filme.

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