3 de setembro de 2020

Opinião – “Roubaix, Misericórdia” de Arnaud Desplechin


Sinopse

Roubaix, uma noite de Natal. O comissário Daoud percorre a cidade que o viu crescer. Carros incendiados, altercações… Na esquadra, um novo elemento, Louis Coterelle, acaba de chegar. Daoud e Louis vão investigar a morte de uma idosa. Duas jovens mulheres, Claude e Marie, são interrogadas. Pobres, alcoólicas, amantes.

Opinião por Artur Neves

Este filme é cinema do Real, isto é, a história que nos é pormenorizadamente contada, aconteceu com todos os contornos que nos são apresentados no filme realizado por Arnaud Desplechin e representado por atores que interpretam os principais personagens de Claude (Léa Seydoux) e Marie (Sara Forestier), detidas para investigação de um crime ocorrido num bairro incluído na jurisdição da esquadra de Roubaix, sob a direção do comissário Daoud (Roschdy Zem).

Á semelhança do programa “Casos de Polícia” da SIC Notícias, Mosco Boucault, jornalista francês ao serviço do canal France 3, acompanhou durante o ano de 2002 uma equipa de detetives da esquadra de Roubaix, um bairro pobre de Paris habitado fundamentalmente por emigrantes magrebinos, uns legais outros ilegais, onde tomou contacto com este caso de assassínio de uma idosa, perpetrado por Stéphanie e Annie, que no filme são representadas por Claude e Marie anteriormente referidas, além de documentar com impressionante realismo a vida numa esquadra de subúrbios e os mistérios da alma humana.

As duas mulheres viviam na mesma casa, Stéphanie (Claude - Léa Seydoux) tem um filho que está institucionalizado e Annie (Marie - Sara Forestier) de sexo misto ou indefinido, nutre profundo amor carnal e forte dependência emocional por Stéphanie que por falta de melhores oportunidades se sente compelida a aceitar aquela situação que não revela a sua verdadeira tendência como mulher.

Para ambientar a história, o filme também contempla os casos de denúncia culposa de incêndio de um carro, para obter vantagens da seguradora, uma tentativa de roubo com violência, a fuga de casa dos pais de uma adolescente e uma violação, mas o “prato forte” documental centra-se nas duas mulheres, inicialmente confrontadas com um incendio num quintal próximo em que elas são interrogadas como testemunhas de acusação dos presumíveis autores por motivos criminais.

A descoberta do cadáver da senhora que habitava o apartamento contíguo ao delas volta a coloca-las sob os holofotes da polícia e desta vez, as suas declarações individuais revelam contradições de depoimento que nenhuma sabe explicar com razoabilidade. O comissário Daoud, profundamente conhecedor dos hábitos da população do bairro onde passou a infância e a juventude, começa a desconfiar dos seus depoimentos e aumenta a pressão sobre elas nos interrogatórios separados a Claude e Marie que começa a quebrar a sua resistência ao pacto de silêncio estabelecido entre as duas.

É aqui que o filme tem o seu ponto alto pela expressão do fardo de culpa do culpado que ao não aguentar a pressão da verdade que lhe é apontada, soçobra ao peso da sua culpa e começa a falar, primeiro vacilantemente e depois completamente revelador, do modo como cometeu o ato, de forma a aliviar todo o peso que já não suporta e para se sentir outra vez humano e em paz consigo mesmo. Depois dessa revelação está exausta e pede apenas que a deixem dormir.

Os interrogatórios continuam com todo o pormenor descritivo possível, primeiro na esquadra numa simulação com um boneco e depois numa reconstituição no local em que Annie reproduz sobre a cama da defunta o modo como pressionou o travesseiro sobre o rosto da vizinha, enquanto lhe apertava o pescoço e como pediu ajuda á sua namorada Stéphanie, que visivelmente mais consciente tenta atenuar as condições de realização do crime, embora revivendo no local todo o horror do ato praticado, entre duas cervejas e um cigarro fumado à pressa.

Toda a história contém uma realidade palpável, descrita minuciosamente num bairro com uma população carente mostrando uma polícia competente e conhecedora da humanidade que ainda assim existe sob a natureza destas duas criminosas, que coabitam com as misérias de uma sociedade arruinada pelo álcool, droga e pela ociosidade que lhes retira perspetivas de futuro. Este filme foi apresentado em competição oficial no festival de Cannes 2019, por somente agora ter sido autorizada a teatralização deste caso de 2002, após ter transitado em julgado. Muito bom, recomendo.

Classificação: 8 numa escala de 10

 

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