30 de junho de 2021

Opinião – “Funeral de Estado” de Sergei Loznitsa

Sinopse

A partir de imagens de arquivo únicas, muitas inéditas, Loznitza retrata o funeral de Estaline como o culminar do culto à personalidade do ditador. A notícia da morte de Estaline, a 5 de Março de 1953, deixou em choque a União Soviética. Milhares de pessoas estiveram presentes nas cerimónias fúnebres. Observamos todas as etapas da cerimónia fúnebre, descrita pelo jornal Pravda como “a Grande Despedida”. Loznitza aborda a questão do culto à personalidade de Estaline como uma forma de ilusão induzida pelo terror. Retrata a natureza do regime e o seu legado, que continua a assombrar o mundo contemporâneo.

Opinião por Artur Neves

Este filme, embora de absoluto interesse atual para que os mais jovens conheçam a história e a verdade por detrás dela, apresenta-se limitado no seu enquadramento histórico-político, considerando que se circunscreve a mostrar os dias de luto que durou o funeral de Josef Stalin em Março de 1953 sendo constituído fundamentalmente por três partes: A receção às representações oficiais dos mais altos dignatários da Repúblicas Soviéticas integradas na URSS, as incomensuráveis procissões de muitos milhares de cidadãos russos que por toda a Rússia e repúblicas anexas visitavam a urna do ditador em Moscovo (muitos provavelmente para confirmarem que ele estava realmente morto) e milhares de outros em cada cerimónia organizada pelo partido comunista em cada capital das repúblicas integradas na URSS e finalmente pelos discursos inflamados, imediatamente antes da procissão do féretro, proferidas por; Geórgiy Malenkov, Lavrenti Beria e Vyacheslav Molotov, mas sem qualquer referência ou indicação da significância política do envolvimento destes homens no entourage que compunha o Politburo e o secretariado do partido comunista da URSS na época.

É assim o que pode chamar-se um documento ilustrativo do funeral puro e duro de Josef Stalin que terá pouca utilidade se for visto sem o conhecimento histórico, ainda que sumário da envolvência política do que foram os anos de chumbo da presidência de Josef Stalin à frente dos destinos da União Soviética desde meados da década de 1920 até à sua morte, tendo ocupado os cargos de Secretário-geral do PCUS entre 1922 e 1952 e primeiro-ministro entre 1941 e 1953 até ao dia da sua morte.

Refira-se ainda que no final do filme aparece uma nota que informa o espectador, que durante a governação de Stalin foram executados, deportados, presos e torturados até à morte mais de 27 milhões de cidadãos soviéticos e nos campos agrícolas (kolkhozes) coletivizados, morreram de fome mais de 15 milhões de cidadãos, havendo até notícias de se ter praticado canibalismo, decorrente da total ausência de meios de subsistência. Em 1956, o 20º congresso do PCUS condenou finalmente a governação de Stalin e preconizou a “desestalinização” do país.

É pois com base neste conhecimento (só disponível no fim do filme) que se deve observar com atenção os cortejos e as homenagens fúnebres dos muitos milhares de cidadãos russos, que, de rosto fechado, sem qualquer expressão significativa desfilam lentamente em frente da urna do ditador, ou em frente dos símbolos que o representam nas diferentes capitais das repúblicas da URSS. São imagens de época, algumas inéditas, mas todas muito bem tratadas, “remasterizadas” e até coloridas tecnicamente, que mostram os duros rostos do povo martirizado pelo tirano que os seus pares candidamente apelidaram de “pai do povo”.

É com esta ideia em mente, que o filme não transmite, que devem ser ouvidos os discursos finais de Malenkov, que sucedeu a Stalin e foi primeiro-ministro da União Soviética de 1953 a 1955 tendo sido forçado a abandonar o cargo por motivo da sua ligação próxima com Beria (que já havia sido executado como traidor em Dezembro de 1953) e pelo ritmo lento dado às reformas do regime e à reabilitação dos presos políticos do tempo de Stalin.

Lavrenti Beria é lembrado como o executor do Grande Expurgo de Stalin na década de 1930, tendo comandado o massacre de Katyn, no qual mais de 22 mil oficiais e intelectuais polacos foram assassinados, para lá de outros crimes de guerra. Em Julho de 1953 foi processado por prática de “atividades criminosas contra o partido e contra o estado” por perseguir e violentar mulheres e por ser responsável pelo laboratório onde eram produzidos os venenos usados contra os alegados “inimigos” do regime.

Vyacheslav Molotov é lembrado por ter sido um dos mentores pela campanha de apreensão das colheitas na Ucrânia, responsáveis pela fome e genocídio entre 1932 e 1933 e em conjunto com Beria um dos principais colaboradores de Stalin. Em 1957 foi afastado do partido por Nikita Khrushchov, por ser contrário à “desestalinização” do regime e nomeado para embaixador na Mongólia. O seu nome tornou-se célebre pela associação à arma química caseira “coquetel molotov” que foi de sua autoria, mas sim, a resposta finlandesa aos bombardeamentos soviéticos à Finlândia durante a Guerra de Inverno, que foram descritos por Molotov como sendo um “envio de alimentos” ao povo.

Visto com este sumaríssimo conhecimento histórico, ou outro mais profundo, o filme já terá algum sentido e constituirá o documento que se pretende. Sem ele, são apenas 135 minutos de um longuíssimo cortejo anónimo e sem conteúdo. Pode ser visto nas salas a partir de 1 de Julho.

Classificação: 6 numa escala de 10

 

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