17 de junho de 2020

Opinião – “Irmãos de Armas” de Spike Lee


Sinopse

Do vencedor do Oscar, chega uma nova história oportuna e chocante de quatro veteranos afro-americanos; Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis) e Melvin (Isiah Whitlock, Jr.) que retornam ao Vietnam alegadamente, para procurar os restos mortais do seu líder de esquadrão caído em combate, Stormin Norman (Chadwick Boseman) e a promessa de recuperar o tesouro enterrado por eles na sequência da queda do avião que o transportava. Os nossos heróis são acompanhados pelo filho preocupado de Paul, David (Jonathan Majors), que os promete ajudar na força de combate entre o homem e a natureza, enquanto são confrontados pelos estragos duradouros, físicos e emocionais, da imoralidade e irracionalidade da guerra do Vietnam.

Opinião por Artur Neves

Com uma oportunidade digna de nota Spike Lee apresenta-nos um filme que resgata a participação dos negros americanos na guerra do Vietnam, numa altura das mais intensas manifestações anti racistas nos USA na sequência do assassinato do afro americano George Floyd às mãos (literalmente; sob o joelho) de um polícia de Mineápolis no dia 25 de maio de 2020. Este facto conduz a que este filme relembre a participação dessa população no conflito que traumatizou a América nos anos 60 e questiona a definição e o conceito de “supremacia branca”, e de “verdadeiros americanos”, quando homens e mulheres negras continuam a servir e a morrer pelo país noutros conflitos ao redor do mundo.

Com o resumo da história descrito na sinopse o filme começa com imagens reais de conflitos raciais anteriores, tal como a declaração de Muhammed Ali em 1978 de que “os vietcongs eram menos racistas do que o povo do seu próprio país” e que lhe custou o prémio de campeão de pesos pesados, seguindo com outras manifestações de protesto conhecidas à época e terminando com a morte de Martin Luther King Jr, como ensaio político sobre a violência histórica que a história pretende documentar.

Dos quatro amigos que se encontram na atual cidade de Ho Chi Minh, Saigão, cada um apresenta uma personalidade particular bem definida em que; Paul é um fervoroso adepto de Trump, Otis, o mais sério e responsável de todos, controla a aventura, Eddie, um empresário de sucesso (que posteriormente saberemos que não é bem assim) rico e gastador e Melvin que se apresenta como o mais apagado e indefinido de todos, constituem uma equipa de “irmãos de armas” cujas diferenças se vão acentuando ao longo da história de 154 minutos que não se sente tédio ao passar, decorrente da sua movimentada ação, sempre mostrando um frémito de energia e surpresa em cenas de elevado dramatismo.

O encontro entre os veteranos de guerra é de descontração, amizade e recordação à mesa de um bar chamado Apocalipse Now que nos trás memórias e sugere traumas. É o cinema a alimentar o cinema que só os bons realizadores sabem utilizar.

Os sucessivos eventos da história vão sendo apresentados tecendo uma intriga de textura multivariada de diálogos, gestos, atitudes e propósitos objetivos inconfessáveis, pondo em destaque a competência de Spike Lee para a ilustração de assuntos difíceis, já demonstrada nesse outro filme que também aborda o tema do racismo; “BlackKklansman” de 2018, em que os elementos de controvérsia política estão intrinsecamente unidos no diálogo entre a população de uma cidade e sua polícia local.

Com o desenrolar da ação vai-se tornando difícil distinguir a ironia entre amigos, da lealdade castrense e dos objetivos individuais que lentamente vão revelando a sua verdadeira natureza, graças aos extraordinários atores que desempenham personagens credíveis em fervor de conflitos e nuances de comportamento, manifestamente inspirados pelo sóbrio argumento escrito por Lee e Kevin Willmott, que nos trás outra leitura da guerra do Vietnam que nunca tinha sido abordada até agora, com muitas referencias explicitas ao legado americano em Saigão, tais como, os estabelecimentos de fast food, Pizza Hut, Rambo ou Chuck Norris como heróis remanescentes de uma guerra inútil.

“Da 5 Bloods” no título original, é uma experiência ainda desagradável da guerra do Vietnam que contém comédia, dor, morte e ganancia, como se uma guerra nunca terminasse depois de começada. Também tem alegoria à santidade, com a aparição do falecido Stormin 'Norman que perdoa Paul pela sua morte, como Cristo aos fariseus, mas fundamentalmente oferece-nos uma justificação condenatória sobre a relação entre racismo e guerra, com uma paixão alucinada de imagens e ideias fortes. Muito bom, recomendo.

Atualmente só pode ser visto na plataforma Netflix desde 12 de Junho.

Classificação: 8,5 numa escala de 10

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