2 de novembro de 2021

Opinião – “Titane” de Julia Ducournau

Sinopse

Vencedor da Palma de Ouro no último Festival de Cinema de Cannes. Após uma série de crimes sem explicação, um pai reúne-se ao seu filho que estava desaparecido há 10 anos. Combinando terror e “body horror”, eis um filme que a realizadora Julia Ducournau descreve deste modo: "para dar a ‘Titane’ a sua forma definitiva, concentrei-me na ideia de que através de uma mentira, podes dar vida ao amor e à humanidade. Quis fazer um filme que, pela sua violência, pudesse parecer ‘desagradável’ a princípio, mas que depois nos levasse a apegar-nos às personagens e, em última análise, a receber o filme como uma história de amor. Ou melhor, uma história sobre o nascimento do amor”.

Opinião por Artur Neves

É o segundo longa metragem de Julia Ducournau e ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2021, estando selecionado pela França para competir aos Óscares 2022 na categoria de filmes estrangeiros. Como era quase uma desconhecida para mim e uma surpresa a sua vitória, pesquisei os seus antecedentes tendo verificado que são poucos; Dois filmes para a televisão, uma curta metragem, e “Row” de 2016, o seu primeiro filme como realizadora, com a história de uma jovem estudante sedenta de carne crua. É um filme complexo e chocante, mas pela novidade imaginativa da história (não se trata de vampirismo) pareceu-me até mais interessante que este “Titane”, muito embora, e tal como nos diz a sinopse, se procure um caminho alternativo para o amor, a compaixão, o sentimento de pertença, a compensação da perda de um homem envelhecido que só procura a sua continuação, o seu legado. É assim um nome para acompanhar com atenção pois promete surpresas.

“Titane” é assim um filme de terror corporal, significando isso que a sua negatividade resulta da sua malformação, seja ela genuína ou adquirida. No presente caso trata-se de Alexia, uma garotinha que viaja no banco de trás do carro de seu pai e o irrita com palavras e acusações. No extremo da discussão ela solta o cinto de segurança e o pai volta-se para a repreender, desviando os olhos da estrada e provocando um despiste donde resulta um grave ferimento na cabeça de Alexia, com quebra do osso craniano que é tratado com a implantação de uma placa de titânio que lhe provoca uma particular cicatriz demasiado evidente e uma alteração comportamental que justifica o enredo da história.

O que quer que o desastre lhe tenha provocado, a criança Alexia (Adèle Guigue), era já de si uma criança problema, uma “semente ruim” na opinião do seu inútil pai, de olhos mortiços que se acendem com fúria quando o provoca e a história não exclui a ideia de que ela quereria provocar o desastre para se ver livre dele. Depois de ela sair do hospital e algum tempo passado, Alexia (Agathe Rousselle) adulta, ganha a vida fazendo dança erótica e soft strip-tease em feiras e salões de exposição automóvel, despertando paixões em alguns frequentadores que ao tentarem interagir com ela são mortos sem piedade, de forma cruel e sanguinária. São vários assassínios em série que lançam a suspeita sobre ela de cuja publicidade tem de se esconder.

No final de uma sessão ela sente o chamamento de um Cadillac da década de 50, bebedor de gasolina mas bem conservado, por quem ela sente uma atração arrebatadora e com quem pratica sexo louco, do qual resulta uma gravidez que ela não esperava, mas que lhe faz crescer a barriga e inchar os seios donde brotam gotas de óleo negro, assim como pela sua vagina durante o banho. É como se o seu corpo fosse somente o recetáculo de algo que ela não domina, não conhece, nem lhe pertence.

Para se esconder do retrato robot publicado pela polícia, ela parte o nariz a si própria, corta o cabelo até manter escondida a peculiar cicatriz, cinta-se com ligaduras para esconder o peito e a barriga em desenvolvimento, veste roupas largas e entrega-se numa esquadra de polícia como sendo o desaparecido Adrien, há muito procurado pelo pai, Vincent (Vincent Lindon) chefe de bombeiros da corporação local, que se desmancha em lágrimas por ter encontrado o seu filho continuamente procurado.

E é aqui que a história passa da escuridão para a luz, da fantasia para a realidade. Vincente é um personagem sóbrio, com princípios, com regras, é atlético, embora a idade já lhe negue a frescura muscular de outros tempos que ele tenta compensar sem sucesso com esteroides, revelando o medo e a confusão de menino que foi forte noutros tempos. Aqui revela-se a inteligência da realização deixando propagar-se um misto de emoções contraditórias que culminam com o aconchego de Alexia à cabeça de Vincente deitada no seu colo, que faz lembrar uma Pietá acariciando o seu filho, constituindo a mais forte metáfora do filme.

Estes dois personagens são o “alfa” e o “ómega” de toda a história ao perceberem que precisam um do outro. Alexia ansiava por um pai cuidador que não denegrisse a sua integridade. Vincente precisava ver-se como pai, mesmo que seja de um filho que ele sabe não lhe pertencer nem compreender, mas não julga, apenas aceita conforme se apresenta. Ambos encontram assim a redenção das suas vidas, entre horrores inclassificáveis, entre atos de violência e sexo, entre traumas inconfessáveis, apenas procurando a bênção um do outro.

É isto que Ducournau nos traz neste “Titane”, na forma de um corpo transmogrificado, um bebé de automóvel humanoide e um pai em perda de si e da função que persegue. Nem todos são reais mas todos procuram aceitação e amor. É muito interessante ver como esta distopia foi apresentada por Ducournau. Eu gostei e recomendo.

Em cena nos cinemas em sala e sem replicação por streaming até agora.

Classificação: 7 numa escala de 10

 

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