15 de fevereiro de 2020

Opinião – “Retrato de uma Rapariga em Chamas” de Céline Sciamma


Sinopse

1770. Marianne é pintora e tem de pintar o retrato de casamento de Héloïse, uma jovem que acaba de sair do convento. Héloïse resiste ao seu destino de esposa, recusando posar. Marianne tem de a pintar em segredo. Apresentada como dama de companhia, observa-a todos os dias.

Opinião por Artur Neves

Céline Sciamma, autora e realizadora francesa nascida em 1980, mostra-nos este drama humano de sensualidade reprimida situado na frança do século XVIII, que se assume como um manifesto feminista corajoso e direto contra o sexismo patriarcal da época, mas que ainda hoje se pode entender como atual.
O filme foi nomeado para competir no Festival de Cannes de 2019, tendo ganho o Queer Palm sendo o primeiro filme com este galardão realizado por uma mulher. Céline Sciamma ganhou o prémio de melhor argumento e numa primeira apreciação posso dizer tratar-se de um filme magnífico, considerando a subtil delicadeza com que a autora nos consegue transmitir a indução amorosa estabelecida entre duas mulheres. O resumo do argumento está bem condensado na sinopse deste filme, só de mulheres e em que os homens são totalmente secundarizados e circunscritos a interpretações marginais absolutamente descartáveis.
A história real do filme é o desenvolvimento do amor devastador, absoluto e completo que desponta entre Marianne (Noémie Merlant) e Héloïse (Adèle Haenel) muito embora ambas saibam ser impossível por corporizar um casal incompatível com as convenções da época. Embora numa primeira fase elas tentem ignorar a atração irresistível que experimentam no amor proibido, a paixão é mais forte e os corpos sucumbem ao desejo que as consome.
Céline Sciamma sabe mostrar-nos os artifícios dos olhares roubados, dos silêncios plasmáticos, que servem para reter a imagem a representar na pintura, mas nós o que vemos é o exercício de observação de Marianne, que observa Héloïse, que observa Marianne num crescendo de interesse mútuo, de erotismo, de sensibilidade feminina contida pela conveniência das posições que cada uma ocupa e da coragem individual para revelar as suas pulsões, mas que o público fica completamente informado aonde isso levará.
Sciamma não está só, pois a diretora de fotografia Claire Mathon que a acompanha, sabe extrair das imagens toda a sinceridade do amor descoberto, que conferem à história uma fluidez e uma beleza visual que se adapta perfeitamente à placidez do relacionamento entre uma aristocrata e uma pintora contratada pela futura sogra, La Comtesse (Valeria Golino) para lhe fazer um retrato que será apresentado ao futuro marido de quem ela apenas sabe, ser natural de Milão.
Para lá do assunto central temos ainda a jovem criada da casa Sophie (Luàna Bajrami) grávida não se sabe de quem, mas que pretende interromper a gravidez e é levada a correr a “via sacra” das parteiras e curandeiras da vila com a complacente ajuda de Marianne e Héloïse, conferindo ao papel de Sophie uma dimensão maior no lugar destinado às mulheres na sociedade daquele tempo que só adiciona valor ao propósito que motivou Sciamma a desenvolver este argumento.
O guarda-roupa de Dorothée Guiraud é igualmente impressionante conferindo aos personagens a dignidade das suas posições sociais, sem adornos supérfluos e com uma precisão minimalista, austera, convincente e real. “Retrato de uma Rapariga em Chamas” faz parte de uma cinematografia sensual que se afirma por amor silencioso e olhares tristes e profundos, desempenhado por mulheres lindas no corpo de atrizes ótimas. Gostei e recomendo.

Classificação: 8 numa escala de 10

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