1 de fevereiro de 2020

Opinião – “Corpus Christi – A Redenção” de Jan Komasa


Sinopse

O filme conta a história de Daniel, um jovem de 20 anos, preso num centro de detenção juvenil que, após uma experiência espiritual transformadora, pretende dedicar a sua vida à igreja e servir como padre. No entanto, por causa do seu antecedente criminal, esse desejo é praticamente impossível de concretizar.
Quando Daniel sai do centro de detenção é contratado para trabalhar na serração de uma pequena aldeia, onde chega vestido com o hábito de padre e, quase acidentalmente, toma posse da paróquia local. A presença de um jovem e carismático orador é a oportunidade para a comunidade local começar o processo de cura depois da tragédia que aconteceu lá.
Este é um dos filmes nomeados na categoria de Melhor Filme Internacional da edição de 2020 dos Oscars® da Academia.
Em Portugal, o filme tem data de estreia confirmada a 6 de Fevereiro.

Opinião por Artur Neves

Da Polónia chega-nos uma história arrebatadora de várias convenções de comportamentos humanos, particularmente os ligados à fé e à prática católica, numa comunidade rural que vive o tempo presente amarrada ao cisma dogmático de uma religião, que acusa, condena e espartilha os seus fiéis, em vez de perdoar, agregar e conciliar as atitudes desviantes a que o espírito humano está sujeito.
O filme é livremente adaptado de um caso real ocorrido na Polónia, em que um leigo faz-se passar por padre durante algum tempo, numa paróquia rural. No filme, Daniel (Bartosz Bielenia) assume esse papel quando se dirige para uma serração de madeira para cumprir o período de liberdade condicional e pára numa igreja para refletir sobre a epifania que sentiu na última missa em que assistiu o padre Tomasz (Lukasz Simlat) na sua função de acólito. Por mero acaso ele vê-se nessa situação, que se complica quando o padre da vila cai enfermo numa cama por excesso de álcool e lhe pede para assumir temporariamente as suas funções.
Daniel, entre o constrangimento e a felicidade de realizar o seu sonho, aceita o encargo. Ele é um condenado jovem e simultaneamente um convertido que assume uma mentira e constrói um personagem ambíguo que tenta reinventar-se noutra dimensão, ao mesmo tempo que a sua consciência o impele a compensar a mentira com a prestação de um serviço útil aos fiéis.
O povo é simples, crente e segue a determinação da igreja em modo de ovelha obediente, sem questionar, sem contrapor o que facilita a aceitação de Daniel no seu seio, através do seu carisma, das suas alegações inovadoras, da sua bela voz ao cantar hinos de redenção e da sua palavra que vem dar corpo à crescente apatia social com a religião tradicional, com a hipocrisia e a corrupção na igreja a que se juntam os casos de abuso sexual de menores e o recente problema do celibato dos padres, que embora neste filme sejam abordados de “raspão”, não deixam de constituir o “elefante na sala”.
A pessoa corresponsável pela confusão em que ele está metido é Eliza (Eliza Rycembel), filha de Lídia (Aleksandra Konieczna) a conservadora da igreja e cuidadora do pároco. Entre Daniel e Elyza desenrola-se uma tensão sexual desde o primeiro encontro que vem a consumar-se depois mostrando que homens e mulheres foram feitos para se encontrarem sem condições prévias, porém, na fé católica quando um homem adota a via clerical, abdica da sua natureza humana por obediência a um Deus castrador.
Ao manter a sua mentira continuadamente Daniel desafia não só a fé, mas também a autoridade civil da povoação, habituada a controlar ordeiramente o pastor do rebanho e o que começou como um impulso de fé transforma-se em algo mais sério e mais difícil de gerir quando ele se apercebe que o povo da vila está profundamente dividido e ainda sofre a dor causada por um dramático acidente ocorrido anos antes que dividiu as pessoas em duas fações antagónicas, que ele se desafiou em conciliar.
Na sua essência este filme tem uma história simples, que cedo se percebe ser muito mais do que isso e que além de cativante, pelos rostos, olhares penetrantes e expressões dos personagens entre si, exalta uma vivência assustadora que perdurará na nossa memória para lá dos 115 minutos de duração. A cena crucial final, que faz lembrar, noutro contexto, a violência final de “No Coração da Escuridão” de 2017, exprime a devastação e o desinteresse a que a sociedade devota os seus membros. Muito bom.

Classificação: 8,5 numa escala de 10

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